Ricky Gervais, o ator, autor, argumentista e comediante britânico que se deu a conhecer ao mundo com a série The Office (a original, inglesa, que durou de 2001 a 2003), veio recentemente a Lisboa para nos fazer rir com a sua visão de um mundo que se vai metamorfoseando inexoravelmente em direção ao fim. E as mudanças que vão sendo operadas nesse mundo resultam, segundo Gervais - e parecem concordar com ele, pelo menos, 10 mil pessoas, quantas estavam presentes na Altice Arena para assistir ao espectáculo (eu também estava lá, portanto, também me incluo neste grupo) -, de uma mistura entre os condicionamentos da linguagem e a progressiva clausura das perspetivas, que se afunilam cada vez mais com base em pressupostos raramente claros.
Estamos na era do wokismo e ser-se woke habilita qualquer praticante dessa nova religião com a superioridade moral e cívica que se estende perigosamente, em muitas circunstâncias - diria em cada vez mais circunstâncias -, até a uma nova espécie de autoritarismo através de uma prática pós-moderna a que chamamos cancelamento ou, no inglês original, cancel culture. Tudo isto são sintomas de um abominável mundo novo, onde se perdeu progressivamente a noção do que é essencial e onde se debatem com fervor fundamentalista assuntos que são merecedores de uma atenção sensível e lógica, e acima de tudo do bom senso e da empatia de todos.
Empatia é, também, uma palavra que hoje ocorre em qualquer texto escrito ou discurso proferido, mas continua a significar, ainda assim, aquilo que sempre significou, mesmo que algumas pessoas ignorem aquilo que, de facto, quer dizer: é a faculdade de compreender emocionalmente o outro, ou a capacidade de se identificar com o sentimento de outra pessoa. No fundo, é a cola com que a mãe-natureza nos dotou de maneira a que fôssemos capazes de nos respeitarmos e de nos ajudamos mutuamente, e ainda de estabelecer um sentido de comunidade ou de desenvolver ferramentas sociais tão admiráveis como a solidariedade, por exemplo.
As palavras são muito importantes, mas a maneira como as combinações que fazemos com elas vão sendo corrosivamente deturpadas é capaz de criar um novo universo perigoso onde vigoram novas formas de censura, possivelmente menos musculadas do que outras que existiram no passado, mas nem por isso menos agressiva nem insidiosa. Hoje em dia, não é raro ouvirmos figuras públicas, sobretudo (mas não só), queixarem-se de que têm de medir palavra por palavra cada declaração, sob pena de se tornarem no novo objeto da massa anónima e irada que patrulha as sociedades, principalmente as virtuais, debitando sentenças a partir do tal pedestal onde se dedica a encarnar a superioridade com que se acredita besuntada.
Assistia com gosto a todo o desenrolar do texto inteligente de Ricky Gervais, ia apreciando os elos de ligação, as premissas, os processos e as conclusões com que nos divertia enquanto nos fazia pensar. E corroborava uma ideia que vou formando desde há algum tempo, a de que os comediantes têm sido, nos tempos mais recentes e diante desta nova realidade minada com sensores e censores, os principais agentes sociais na arte de decifrar e processar a realidade, devolvendo-a às massas em formato lúdico e didático.
Houve, no entanto, momentos em que a crítica ao wokismo gratuito e bacoco me pareceu pisar arriscadamente a linha que separa os patetas daqueles que têm bom senso, cruzar a fronteira que separa os que procuram afirmar-se superiormente por via destas jigajogas morais pós-modernas dos outros que procuram realmente um mundo melhor e mais justo, onde as diferenças, continuando a existir, sejam aceites e não ostracizadas nem ignoradas, por exemplo. E nesta diferença, uma diferença que é demarcada pela linha da decência, cabe também o discurso: aquilo que se diz e pode ser de uma extraordinária agressividade e de uma grande injustiça para o outro. A julgar pelo epílogo do espetáculo de Gervais - talvez não tenha sido um epílogo, é possível que se tratasse mesmo de um posfácio, já que teve a clara intenção de esclarecer a audiência -, acredito que o próprio humorista saiba que essa linha existe e que essa diferença está lá, e que estas preocupações, quando não são motivadas pela palermice e pelo desejo de protagonista, são não só válidas, como legítimas e até essenciais.
É que há gente que ainda não percebeu que este mundo mudou - e que nem tudo é mau, nem tudo é sinal do armagedão, como o espetáculo de Ricky Gervais, Armageddon, sugere - até porque se trata de uma sugestão exagerada, extrapolada, enfim, cómica. "Onde é que nós vamos parar?" Bom, naquele caso, fomos todos parar a uma arena gigantesca para assistir a um espetáculo sem censuras, pagando caríssimo por cada bilhete, com toda a gente a rir-se acerca do estado do mundo.
Voltemos ao mundo que mudou e às pessoas que não entenderam, por exemplo, que a linguagem desempenha um papel importante nessa mudança - e no pensamento geral (quando sentirem dúvidas acerca da importância da linguagem, lembrem-se que é com ela que se redigem as leis). Há assuntos que merecem um certo cuidado e muita ponderação. Assuntos complexos acerca dos quais temos dificuldade em discernir - e é normal, e não temos a toda a hora de ter uma posição concreta e empedernida sobre tudo e mais alguma coisa. O mundo, como vimos, está a mudar, e muda depressa, nem sempre conseguimos acompanhar as mudanças.
Lembro-me de uma questão que recentemente tem vindo a ganhar mediatismo: as mulheres e as mulheres transexuais. De um modo geral, quem é dotado de bom senso e da tal empatia de que falava há pouco reconhece à mulher transexual o direito a ser uma mulher plena. Claro que sim. Só que depois há as nuances, os imprevistos, os detalhes - o diabo está sempre nos detalhes. Nas competições desportivas, a questão já não é apenas um detalhe: faz muita diferença, fará toda a diferença. Portanto, a questão, no seu todo e contemplando os tais detalhes, não é preto no branco. Por exemplo, não tem o caráter óbvio de uma condenação à brutalidade dos ataques de Israel na Faixa de Gaza, naquilo que parece ser um extermínio em curso - e mesmo assim há quem surpreendentemente tenha dúvidas sobre o dever de condenar esses ataques (cada um viverá com a sua consciência).
Depois do desporto, em Portugal o assunto estendeu-se à eleição da Miss Portugal. Marina Machete, mulher trans, conquistou o júri do concurso e representará Portugal concorrendo ao título de Miss Universo. E eu acredito que seja normal que nem toda a gente aceite, à primeira, esta notícia sem pelo menos lhe dedicar uns minutos de pensamento. A transexualidade, em geral, e a eleição de uma miss feminina que é uma mulher transexual é um tema que, para o cidadão comum, como eu, requer algum pensamento a que não estava habituado, até porque se trata de uma situação rara, senão mesmo inédita. É normal que estejamos desprevenidos quando somos chamados a raciocinar e refletir sobre ela.
O que não é admissível é que se ponha o caso nos termos em que Miguel Sousa Tavares e Carlos Alberto Carvalho puseram, questionando-se mutuamente se se casavam com ela e rindo, muito cumplicemente ao concluir que é claro que não, pois claro que não, e rindo mais um pouco. Faltou-lhes, talvez, um copo de whisky a cada um sobre a mesa para que pudessem brindar e continuar a sua demanda pela ignorância galhofeira, esquecendo que, do lado de lá, fazendo de alvo fácil, está uma mulher - com a qual duvido que algum deles tivesse a menor hipótese de casar, já agora, e deixo esta nota irrelevante só porque acho interessante que as pessoas tenham mais consciência de si mesmas e sejam menos críticas com as outras - que, é antes de mais e no fim de tudo, um ser humano. Parece que às vezes se reduz essa condição a um detalhe. Mas isso também diz muito mais de quem o faz do que de quem é o alvo.
Num mundo novo onde o wokismo impera - que exagero, não impera nada: chateia, aborrece, quando muito estorva e principalmente faz desvalorizar as causas que lhe deram origem e que são sérias, legítimas, por vezes urgentes -, é bom que existam comediantes como Ricky Gervais que nos mostrem o caminho para lá das novas trevas. Mas também é preciso que continue a existir quem chame à razão, sem exageros nem superioridades morais, aqueles que parecem ter ficado para trás no tempo e cujo discurso reflete o atraso, a tacanhez e o raciocínio rudimentar, simplificado em tiradas de macho muito macho que dá gargalhadas enquanto vira mais um copo e manda piadas de caserna.