É um dos quatro curadores da exposição que o Centro Cultural de Belém pensou a meias com o MAXXI, o Museo Nazionale Delle Arti del XXI Secolo em Roma, ao lado de Margherita Guccione, Pippo Ciorra e Sérgio Catumba. Reuniram exemplos italianos, do mundo e portugueses, históricos e contemporâneos, para "muitas visitas cruzadas e roteiros de descoberta", diz-nos André Tavares, enquanto ziguezagueamos entre desenhos e maquetes, e pequenos jardins de plantas, na Garagem Sul do Centro Cultural de Belém. Para ver até setembro, uma mostra de projetos que realçam o humanismo na Arquitetura, casas pensadas para as pessoas.
A maneira como habitamos tem um impacto profundo no planeta e a casa que temos obriga-nos a viver de uma determinada maneira: assistimos a que transformações?
As casas sempre se transformaram muito, mas no século XX transformaram-se radicalmente porque a sociedade também se transformou radicalmente: a quantidade de pessoas aumentou e aumentaram as diferenças de relação entre as pessoas. As funções fundamentais da vida não mudaram, temos de comer, dormir, etc, mas a maneira como o fazemos mudou bastante, e as casas acompanham. Ao longo do seculo XX formalizaram-se de muitas maneiras, talvez mais do que no arranque do século XXI, vamos ver o que acontece pós-pandemia, depende da maneira como a sociedade se transformar e das nossas exigências como cidadãos.
A pandemia fez-nos repensar o espaço. Houve quem mudasse para o campo ou para uma casa com pátio. O que vai acontecer?
A sensação que tenho é que as casas nos últimos 20, 30 anos deixaram de ser espaços de habitar para passarem a ser um produto financeiro. E o acesso ao crédito foi fundamental nessa transformação. Esse processo fez com que as casas passassem a estar muito padronizadas - caixa de escadas, esquerdo e direito, sala e cozinha para a frente, quartos para trás, vamos embora - e se não forem assim, não encaixam no padrão do produto que o mercado "precisa". Com o que é que fomos confrontados este ano? Que não é muito bom viver num produto financeiro, se calhar é melhor viver numa casa que responda às nossas aspirações e necessidades que, pelas piores razões, ficaram muito condicionadas, a casa transformou-se em muitas coisas. Tenho uma esperança, e espero que esta exposição contribuia, que é exigirmos outras coisas das nossas casas. Se isso acontecer vão mudar muito.
Os materiais parecem evoluir para escolhas mais naturais e tactéis.
Têm evoluído, sim. Dizia-se no século XIX: o futuro do planeta passa pelo betão. E passou de facto: para o melhor porque trouxe-nos progressos sociais poderosíssimos, que não seriam possíveis; mas também para o pior, sabemos agora o impacto ecológico que está a ter e os problemos que vêm associados. Claramente o betão e o aço são dominantes porque correspondem a uma industrialização extremamente forte ao longo do século XX, que alterou os padrões normais de consumo e, portanto, as soluções de concorrência que aparecem são pontuais e não têm a capacidade de lutar contra esses gigantes. E aquelas soluções talvez sejam as melhores, não uma, mas muitas soluções capazes de diminuir a escala dos transportes, da logística e com isso diminuir o impacto ecológico. E qual é a desvantagem? Do ponto de vista do negócio são menores. A tendência será encontrar soluções mais naturais que sejam capazes de nos preservar num meio ambiente mais organizado, mas sobretudo que diminuam a tal escala da logística. Há uma tendência para essa variedade e para a sua convivência, um pouco como a biodiversidade das espécies.
Até na decoração é evidente uma preocupação, enchemos a casa de plantas para viver melhor.
A arquitetura constrói um suporte e depois cada um apropria-se, dá a sua personalidade. O suporte acaba por moldar a vida de certa maneira e a vida acaba por moldar esse suporte de outra maneira. Se há uma consciência maior da casa? Penso que sempre houve nas coisas mais simples, o que há, talvez, é maior noção dessa consciência. E maior disponibilidade. Vive-se muito melhor do que se vivia há 50 anos atrás, há mais tempo livre, mais economia de consumo, e isso gera espaço para haver essa alimentação e expressão. É óbvio que se compararmos com as casas do século XVIII, as imagens que vemos são as das pessoas que podiam ter casa. Mas tenho a certeza que qualquer pessoa poria um raminho de flores, e teria prazer nesse raminho, assim que pudesse.
Como sociedade começamos a fazer uma reflexão sobre o consumo: teremos coisas demais? Seremos felizes em casas mais pequenas?
Estamos, sim. Casa há muitas, mas em Portugal, e é escusado ir mais longe, há muita gente que ainda precisa de casa no seu limite básico, digamos assim. E há pressões sociais, sobretudo em Lisboa e no Porto, mas não só, que tocam num aspecto-chave que é a relação da casa na cidade e na comunidade, e isso está a ser muito transformado. Eu diria que essas transformações estão a ser mais violentas do que as individuais na maneira que ocupamos o espaço. A pandemia e o teletrabalho tornaram evidente que a maioria das casas que habitamos são muito limitadas, dão para pouca coisa. Se calhar a mesma área organizada de outra maneira por um arquiteto que estivesse atento, e sobretudo que tivesse ao seu lado um promotor de obra disponível para ouvi-lo, daria às casas uma maior flexibilidade de programa e de relação entre os diferentes espaços, uma maior capacidade de responder às nossas aspirações e desejos.
A visão da comunidade é muito importante e vamos ter de começar a pensar nela, pela chegada da imigração ou da nossa própria velhice.
Temos muito que pensar nisso e temos sobretudo de mudar os mecanismos com que isso não está a ser feito. O que a História nos ensina quando procuramos ignorar esses movimentos é que, em geral, dá asneira, cria situações de separação que são péssimas para as comunidades segregadas e ainda piores para quem já cá estava. A integração é uma necessidade fundamental. Em Portugal isso é muito evidente, a maioria da p
opulação portuguesa andou a emigrar e ainda emigra. Obviamente que é fundamental pensarmos nessas transformações a partir da organização da cidade como um todo e da casa como sendo uma célula fundamental.
Quando olhamos para a Cova do Vapor ou para a Fonte da Telha a primeira reação é: como é que isto é possível? Se tivesse sido pensado não tínhamos aqueles atentados… à própria natureza.
As situações informais são trágicas, porque correspondem a exclusões sociais muito agressivas e difíceis para quem as vive, mas ao mesmo tempo extremamente ricas porque quem as constrói, constrói-as com o suor do seu corpo e cria uma sensação de pertença muito intensa e rica com aqueles lugares. Além disso, com uma imaginação que os sistemas de planeamento formal normalmente não têm. E essa liberdade, se pudermos chamar assim, é muito difícil para os arquitetos porque muitas vezes nos põem a pensar: porque é que não somos capazes de fazer coisas tão boas quando temos condições? Há aqui uma necessidade de "não recuse à partida uma ciência que desconhece", de olhar para estas situações de construção não apenas como um problema, que também são, mas como um espaço onde a sociedade se exprimiu de uma maneira informal e que tem pistas e informações e qualidades que são fundamentais se quisermos reabilitar e integrar aqueles lugares na cidade. E com isso fazer uma relação mais integrada entre quem lá está e quem não está, para que que
m não está possa ir lá e disfrutar e viver e conhecer a qualidade das pessoas, entusiasmar-se com aqueles lugares, e vice-versa. Para não haver na cidade zonas excluídas e impossíveis.
A população europeia está cada vez mais envelhecida, teremos de repensar as cidades nesse sentido?
Definitivamente. A questão das acessibilidades está em cima da mesa, mas falta consenso devido a uma certa dureza da lei, que é importante para que se cumpram determinadas metas, mas que faz com que esses objectivos sejam estratósféricos e raramente cumpridos. Aí os arquitetos têm a capacidade de usar o bom senso e encontrar soluções de equilíbrio entre desejos muitas vezes contraditórios, e ter casas habitadas por jovens ao lado de casas habitadas por séniors, essa convivência é fundamenteal para o futuro das cidades.
A população não pára de crescer, as cidades estão cheias, agora que trabalhamos remotamente vamos espalhar-nos mais?
Espalharmo-nos mais já está a acontecer há muitos anos. A concentração e a densidade, mesmo com arranha-céus a serem construídos, é cada vez menor e isso tem um impacto absolutamente destruidor na performance ecológica do planeta…
Qual é o grande desafio dos arquitetos no futuro?
Encontrar trabalho. E não estou a brincar! Há uma desvalorização profundíssima da profissão da arquitetura porque o arquiteto aparece como intermediário para fazer a síntese de vontades contraditórias: o investidor tem uma vontade, o político tem outra, o promotor tem outra, o construtor tem outra. A arquitetura ideal deixa todos descontentes, mas todos estão a ganhar um pouquinho mais em conjunto. O que é que acontece muitas vezes? Há dois espertos nesta cadeia que acham que se se juntarem e chutarem o arquiteto para canto, ficam a ganhar. E talvez fiquem naquele momento, mas como sociedade ficamos todos a perder. As pessoas que vão morar naquelas casas vão chamar muitos nomes àqueles espertos.