Havia esse cheiro demasiado característico que me enchia de sentimentos bons, assim que o sentia. Era um sinal de que estava perto dele. Refiro-me ao meu avô Miguel, também conhecido pelos meus sentidos como o homem mais cheiroso do mundo, o homem mais charmoso de sempre ou o homem mais impecável da história – por dentro, mas também por fora. Nos últimos anos da sua vida, esse aroma pertencia à Água de Colónia 4711, mas também acontecia o ar encher-se da essência de Jean Marie Farina Extra Vieille, um perfume da marca francesa Roger & Gallet que lhe inundava a roupa, o pescoço e o cabelo (acuradamente penteado para o lado). Todos os dias levantava-se à mesma hora (independentemente das horas a que se deitava), bebia um copo de água gelada, acendia um cigarro e ia à casa de banho. A toilette, essa, já estava escolhida desde a noite anterior e esmeradamente colocada no cabide à espera de ser vestida. "Era uma pessoa que nunca aparecia com um ar desmazelado, fosse para onde fosse." As palavras são da minha avó Emília: por um lado, a mulher que o acompanhou até à hora da sua morte; por outro, a mulher que teve a sorte de ter um marido com um sentido de estética apuradíssimo – e que não tinha medo de o usar. A minha avó era também a mulher cujo marido mimava tremendamente, enchendo-a de presentes, e ainda a vestia da cabeça aos pés. Só porque não há mundos perfeitos, a minha avó era também a mulher que não devia cortar o cabelo curto: "Era a única coisa que ele não gostava que eu fizesse – cortar o cabelo curto. Nesses dias [se eu o cortasse] sabia que [ele] iria chegar a casa e que iria fazer uma minicena. Passava rápido, mas não deixava de mostrar o seu descontentamento." A minha avó era muito prática. O meu avô muito vaidoso. Ela nunca ligou patavina a toilettes, raramente usava maquilhagem e, ainda hoje, o creme que coloca na cara é aquele do boião azul da Nivea (apresentando, aos 90 anos, uma pele de fazer inveja a muitas senhoras de 50 com as suas tezes demasiado queimadas pelo sol).
Como eu dizia, a minha avó não ligava nada a toilettes. Mas o seu marido sim, o meu avô sim, e isso fazia toda a diferença. "Eu detestava ir para as lojas ou mesmo às costureiras. Na verdade, eu não tinha a menor das paciências para tudo o que incluísse a palavra ‘compras’. Para mim, era chegar à loja, ver um vestido que gostasse, pedir o meu tamanho, experimentar – geralmente ficava bem –, pagar e sair da loja. Mas com o Miguel as coisas não se ficavam por ali. Se havia outros [vestidos] igualmente bonitos, igualmente bem cortados, igualmente úteis a um guarda-roupa cheio de festas e eventos ainda por ir, ele comprava-os e oferecia-mos naquele preciso momento ou então comprava-os às escondidas para me fazer uma surpresa." Importa lembrar que se estava numa época em que a fast fashion não existia. E depois havia muitas viagens, tal como a minha avó me conta: "Ele viajava imenso. E sempre que o fazia trazia-me presentes: roupa, sapatos, carteiras, perfumes…" O guarda-roupa da minha avó, ainda que hoje mais envelhecido, confere: etiquetas como Chanel, Hermès, Loewe ou Lacoste demonstram como o caro sai barato. Falamos de peças com décadas e décadas de existência em perfeito estado. Do lado do meu avô, o apreço e o cuidado em andar, também ele, bem arranjado não se ficava nem um bocadinho atrás: "Como media um metro e 91 de altura, ele tinha de mandar fazer praticamente toda a sua roupa em alfaiates. Depois, no El Corte Inglés, em Espanha, comprava as cuecas e as meias. Tudo o que era malhas, como camisolas e casacos, comprava-as em Londres, no High & Mighty, que é uma loja que se dedica aos tamanhos maiores. E depois, claro, havia o Harrods, também em Londres". [A minha avó levanta-se e regressa com uma carteira na mão, enquanto me relembra um certo episódio.] Haviam passado 15 dias sobre a morte do meu avô, quando a minha avó recebeu em casa uma encomenda. Era uma carteira preta em pele de crocodilo sem etiqueta, estilo clutch. Linda e mais trendy seria difícil. Estava paga e era um presente dele para ela. Enquanto esteve doente (e foram alguns anos), alturas houve em que ele tinha de estar deitado na cama ligado ao oxigénio, sobrando-lhe pouca margem para fazer os mil afazeres a que estava habituado. Isso, porém, não constituía um problema para que a sua missão em mimar a mulher da sua vida (e garantir que ela andasse sempre para lá de impecável) se mantivesse. À distância de um telefonema e de uma agenda repleta de contactos, o meu avô, a poucos meses da data que assinalava a sua morte, havia tratado de idealizar e encomendar uma carteira para a sua mais-que-tudo. Doente, mas com o seu sentido de estética alive and kicking. E este seria aquele momento em que faríamos uma pausa para que as mulheres deste mundo moderno, habituadas a esconder os sacos das compras assim que metem a chave na porta de casa, acostumadas a ouvir os maridos suspirar de enfado por terem de esperar, impacientemente, à porta de uma qualquer loja, familiarizadas a homens que detestam lojas e roupas e tudo o que marine em torno destes dois universos, questionariam: mas onde é que estão esses homens?
Pero que los hay, los hay
Não consigo incluir o meu avô na categoria de metrossexual. Nada contra essa definição, mas apenas porque o bom gosto do meu avô era superior ao ato de bem vestir. Era um gosto pela vida e pelo seu lado mais belo, aliado a uma genética fortíssima que o encaminharia neste sentido. "Era uma coisa de família. Já a mãe dele tinha muito bom gosto. Todos os dias ela ia às compras à Baixa e todos os dias visitava o cabeleireiro. Andava sempre chiquíssima. Em casa, esse cuidado e apreço pelas coisas boas e bonitas mantinha-se: à mesa tudo era servido em serviços Companhias das Índias, talheres de vermeil, etc…", relembra a minha avó. O avô do meu avô já era considerado um homem "muito à frente" para a época e com o tal bom gosto que acabaria por caracterizar a família. Este senhor [Frederico de Lima Mayer], que hoje podemos ver numa estátua à entrada restaurante JNCQUOI, que foi parte do cinema Tivoli, em Lisboa, teria sido responsável pela construção daquela sala de espetáculos e havia feito um belíssimo roseiral que hoje pode ser apreciado no Jardim Zoológico de Lisboa. É que nem todo o homem munido de bom gosto e com forte sentido estético tem, necessariamente, de ser um metrossexual. Com efeito, nem é acerca de homens com esmero que trata este artigo. Falamos do sexo masculino ao serviço das mulheres, num mundo habituado a que o mesmo se passe precisamente ao contrário. Por norma, são elas que cuidam do guarda-roupa deles.
Joana e João são um casal, ambos com 37 anos, que também foge à regra. Ela estuda astrologia e ele trata de um negócio de família. Bonita e inteligente, esta lisboeta muito virada para o lado mais espiritual da vida pouco (ou nada) liga a roupa e aos arredores desse mundo. Conta à Must que no seu armário tem peças que vêm da altura do liceu – e, importa ressaltar, trata-se de peças que usa e que não estão lá apenas para fazer número. Retira um casaco de caxemira de aspeto envelhecido: "Este aqui era do meu avô. Passo a vida com ele." É óbvio que nos rimos. Mas é verdade. Joana detesta compras e não liga rigorosamente nada à forma de se vestir. O mesmo não se passa com o marido que, no momento em que ambas conversamos, irrompe pela casa com um saco contendo uma peça de roupa e o oferece. Esclarece a Joana: "Experimentei estas calças na loja, há dias, com ele… Mas não as queria comprar! Para quê? Não preciso de roupa para nada…" Eu e ele rimo-nos porque, convenhamos, quem são os maridos que têm estes gestos e quem são as mulheres que respondem assim? As calças, claro, eram a cara dela e ficavam-lhe a matar. "Sou eu que compro praticamente toda a roupa da Joana e também a do Tomás" – o Tomás, de 4 anos, é o filho de ambos e é também, provavelmente, o pequenino mais fashion da sua escola. Com a Isabel e com o Alexandre passa-se mais ou menos o mesmo. Ele é dono de uma loja de roupa para homem situada nos meandros do Chiado, onde só convivem marcas high fashion. Uma vez que viaja com frequência a Paris, para ir a feiras e a showrooms escolher as coleções, é comum regressar munido de presentes – ou seja, de roupa, de botas, de ténis… – para a namorada Isabel. E ela regozija com isso: "Ele tem muito mais jeito para roupa do que eu! Aliás, hoje em dia o meu armário é praticamente todo ‘assinado’ por ele. O olho que ele tem para escolher as coleções para a loja é o mesmo com que seleciona peças para mim. Mesmo quando estas são masculinas, ele escolhe-as na perfeição. Assentam-me sempre que nem uma luva e são sempre de qualidade. Não há cá fast fashion" [ri-se].
Num artigo publicado em 2017, no The Telegraph, a propósito deste tema, Sarah Ivens, na altura diretora da revista OK!, a viver em Manhattan num estilo de vida que variava entre semanas de moda e red carpets, conta porque é que ter um marido que também era o seu stylist foi a melhor coisa que lhe aconteceu: "[Quando me mudei para Nova Iorque] contratei um personal shopper da Bergdorf Goodman. Ele, de facto, escolhia peças-tendência que não podiam ser mais atuais. Mas eram, geralmente, peças que não combinavam com a minha personalidade – ou até com a forma do meu corpo – e elas acabavam por ficar a ganhar pó no meu armário. Eu escondia-me por detrás de muito bronzeado falso e de sobrancelhas supercarregadas. A minha aparência externa podia parecer feroz e inabalável, mas não combinava nada com as minhas inseguranças. O [meu marido] Russ não só voltou a colocar a minha autoestima lá em cima, como passou a ajudar-me na tarefa de vestir e eu nunca me senti tão bem." Pois é, homens que nos leem: ela "nunca se sentiu tão bem". Afinal, uma loja é só uma loja e nunca se ouviu uma morte registada por uma ida a uma delas. Verdade? Fica o estímulo.