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O verdadeiro Hannibal Lecter: como um médico psicopata inspirou O Silêncio dos Inocentes

O thriller de Thomas Harris foi escrito após o encontro do autor com um médico que cortou o seu amante aos pedaços… e ameaçou fazer-lhe uma visitinha.

Foto: IMDb
23 de abril de 2021 | Tom Fordy
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Em 1963, no âmbito de um trabalho na Penitenciária de Topo Chico, em Nuevo León, no México, onde se dirigira para entrevistar um assassino, um jornalista de 23 anos chamado Thomas Harris ficou à conversa com o médico da prisão. Tencionava perguntar-lhe como salvar a vida do assassino, um texano chamado Dykes Askew Simmons, depois de este ter sido baleado no decorrer de uma tentativa de fuga fracassada, mas em vez disso, foi o médico que acabou por fazer a maior parte das perguntas.

"Sr. Harris, como se sentiu quando olhou para Simmons?... Acha que os óculos de sol acrescentam um elemento de simetria ao seu rosto?... Acha que Simmons foi perseguido e gozado no recreio da escola por estar desfigurado?... Já viu fotografias das vítimas?... Diria que eram jovens atraentes?"

Se isto lhe soa sinistramente como as conversas entre a agente novata do FBI Clarice Starling e o psiquiatra assassino Hannibal "The Cannibal" Lecter, é porque, 25 anos mais tarde, Harris viria a publicar O Silêncio dos Inocentes. A icónica adaptação cinematográfica, cuja estreia fará 30 anos no próximo mês de maio, transformou a sua mais infame criação numa mega-estrela, brilhantemente interpretada por Anthony Hopkins. Poucos sabem que se baseava numa pessoa real. Harris descreveu o médico, a quem chamou Dr. Salazar [o autor criou este nome falso com a intenção de proteger a identidade verdadeira do médico], como "um homem pequeno e ágil com cabelo ruivo escuro. Ele sentava-se muito quieto e havia uma certa elegância nele." O seu estilo de conversa inspirou a forma como Hannibal sonda curiosamente a psique e o trauma de infância da inexperiente Starling (o papel que deu o segundo Óscar a Jodie Foster), exigindo que ela responda às suas perguntas em troca da sua ajuda para capturar o assassino em série "Buffalo Bill". ("Quid pro quo, Clarice").

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Quando Harris se despediu, convidou o Dr. Salazar a contactá-lo, talvez para beberem um copo ou jantarem, caso o médico fosse algum dia ao Texas. "Muito obrigado, Sr. Harris. Farei isso, com toda a certeza, na minha próxima viagem", respondeu Salazar. Quando estava a sair da prisão, Harris perguntou a um guarda há quanto tempo o médico lá trabalhava. "Hombre! Não sabe quem ele é?" disse o guarda. "O doutor é um assassino… Ele nunca vai sair daqui. Ele é louco."

Thomas Harris – conhecido por ser um homem reservado e tímido em público – partilhou finalmente esta história na edição especial do 25º aniversário de O Silêncio dos Inocentes, publicada em 2013. Ele escreveu no prefácio: "O meu detetive precisava de falar com alguém com um conhecimento particular da mente criminosa. Perdido no túnel do trabalho, acompanhei o meu detetive quando ele visitou o Hospital Estadual de Baltimore para Criminosos com Doença Mental para entrevistar um recluso. Quem lhe parece que estava à espera na cela? Não era o Dr. Salazar. Mas graças ao Dr. Salazar, fui capaz de reconhecer o seu colega, que partilhava os seus hábitos, Hannibal Lecter."

Harris optou por não dar a conhecer o nome verdadeiro do médico – "Quero deixá-lo em paz", escreveu – mas os repórteres não tardaram a descobrir que era Alfredo Ballí Treviño. Quando foi detido, em 1959, Ballí Treviño, era conhecido na imprensa como "O Lobisomem de Nuevo León", "O Médico Assassino", "O Monstro de Talleres" e "O Vampiro Ballí".

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Em outubro de 1959, Ballí Treviño – na altura com 28 anos – matou o seu amigo e alegado amante (ou "parceiro sentimental", como lhe chamaram em numerosos relatos), um estudante de medicina de 20 anos chamado Jesús Castillo Rangel. Segundo o jornal mexicano Milenio, a causa foi uma discussão sobre dinheiro. Ballí Treviño pôs Castillo Rangel inconsciente, injetou-o com um anestésico de tiopental sódico e cortou-lhe a garganta com um bisturi. Depois de ver o amante esvair-se em sangue e morrer, desmembrou o corpo, guardou os pedaços numa caixa e tentou enterrá-lo num terreno baldio.

Outros relatos contam histórias diferentes. O Latin Times descreveu como Ballí Treviño recrutou a ajuda de um amigo, Francisco Carrera Villareal – também ele seu alegado parceiro sexual – para o ajudar a livrar-se dos restos mortais. No entanto, o tio de Carrera Villareal, a quem pediram emprestada uma pá, seguiu-os, descobriu os restos e informou a polícia. Outra versão afirma que os restos foram encontrados por um pastor depois de uma vaca tresmalhada o ter conduzido a uma pilha de pedras, recentemente erigida sobre a caixa semienterrada.

Ballí Treviño tentou subornar a polícia, mas não conseguiu. Mais tarde, confessou o crime e descreveu, com orgulho nos pormenores, o seu rigoroso método de desmembramento. Diz-se que a polícia tentou associá-lo a outros homicídios, mas sem sucesso. Foi o último prisioneiro mexicano a ser condenado à morte, mas a sua pena acabou por ser comutada em 20 anos de prisão.

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Em O Silêncio dos Inocentes, Lecter conduz Starling à cabeça decapitada do namorado de um antigo paciente de Lecter, que vem a ser Jame Gumb, ou seja, o assassino Buffalo Bill (interpretado no filme por Ted Levine). É um de vários elementos da história que foram criticados como problemáticos nos anos seguintes – com destaque para o facto óbvio de retratar Buffalo Bill como um perturbado assassino trans bissexual. (O filme diz que ele "não é mesmo transsexual".) O filme foi polémico, mesmo na altura do lançamento: o grupo ativista LGBTQ+ Queer Nation protestou na cerimónia dos Óscares de 1992, na qual O Silêncio dos Inocentes ganhou cinco estatuetas.

Contudo, o incidente desagradável não foi inspirado no facto de Ballí Treviño ter matado o seu amente. Thomas Harris sabia muito pouco sobre o médico ou o seu crime. Numa carta dirigida ao escritor mexicano Diego Enrique Osorno, na qual lhe pedia ajuda para identificar o doutor e os seus crimes, Harris parecia achar que o crime do médico fora "matar pessoas que pediam boleia em Nuevo León, desmembrando-os e atirando-os os pedaços dos corpos para fora do carro durante a noite".

Foto: IMDb

Antes da reimpressão comemorativa do aniversário do seu livro, Harris raramente dava entrevistas ou falava sobre as suas influências. Consequentemente, havia muita especulação sobre outras possíveis inspirações da vida real. Segundo The Strange World of Thomas Harris, um livro publicado por David Sexton em 2001, Harris disse a um bibliotecário que Hannibal Lecter fora inspirado em William Coyne, um prisioneiro evadido que foi assolado por uma fúria canibal na região do Mississippi, na década de 1930.

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Hannibal Lecter, contudo, não iniciou a sua vida literária como canibal. Em Dragão Vermelho, o romance publicado por Harris em 1981, o médico desempenha um pequeno papel, ajudando Will Graham, um profiler do FBI, a capturar um assassino conhecido como Fada dos Dentes (cuja cicatriz deixada por um lábio leporino se inspirou em Simmons, o assassino cuja história levou a que Harris conhecesse Ballí Treviño). Frederick Chilton, o médico arrogante responsável pelo acompanhamento de Lecter, conta uma história sobre como Lecter atacou uma enfermeira depois de simular dores no peito. Nesta versão da história, Lecter "arrancou-lhe a língua". Quando Chilton volta a contra a história em O Silêncio dos Inocentes, Lecter também a engoliu.

A personagem teve uma trajetória semelhante no ecrã. Em Manhunter – a elegante adaptação de Michael Mann de Dragão Vermelho datada de 1986 – Lecter (ali conhecido como Lecktor) é interpretado por Brian Cox, apresentando-se como um sociopata aborrecido que brinca com os seus captores fazendo uso dos seus conhecimentos forenses. Cox baseou a sua interpretação em Peter Manuel, um violador e assassino condenado pelo homicídio de sete pessoas em Lanarkshire, na Escócia, entre 1956 e 1958. Manuel encarregou-se da sua própria defesa em tribunal. Cox recorda-se de ter ficado "obcecado" com a vaga de crimes de Manuel quando era criança.

Na interpretação de Hopkins, Lecter torna-se um Drácula dos tempos modernos, trancado, literalmente, numa masmorra (tal como Drácula, também ele se tornou um anti-herói e perdeu imenso do seu poder assustador em filmes subsequentes). Para criar o melífluo e desapegado sotaque de um cavalheiro do sul dos E.U.A. – que foi desaparecendo a cada regresso ao ecrã – o ator inspirou-se em Katharine Hepburn, Truman Capote e HAL, o computador assassino de 2001: Uma Odisseia no Espaço.

Foto: Getty Images
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Buffalo Bill é mais explicitamente inspirado por assassinos em série bastante conhecidos. Numa cena do livro, carrega uma peça de mobília para uma carrinha enquanto finge ter o braço partido – um truque para atrair uma vítima, fingindo precisar de ajuda – que foi tirado diretamente do terrível manual de Ted Bundy. A inspiração mais óbvia da personagem é Ed Gein, um assassino que matou duas pessoas e pilhou túmulos oriundo de Plainfield, no estado de Wisconsin. Gein cresceu numa quinta isolada com uma mãe dominadora e fanática pela religião. Ficou devastado quando ela morreu com um AVC – e quis tornar-se a sua própria mãe.

Em 1957, foi detido pelo homicídio de uma mulher da cidade, cujo corpo foi encontrado no seu anexo "vestido" de veado – pendurado pelos tornozelos e esventrado. Gein desenterrava cadáveres e usava as partes dos corpos de formas bizarras. No interior da sua casa, a polícia descobriu um inventário macabro: um cinto feito de mamilos, tigelas de sopa feitas com a parte de cima de crânios humanos, uma cadeira revestida a pele, uma caixa com vulvas cortadas (uma das quais ele pintara de prateado) e, tal como Buffalo Bill – um "fato de mulher" feito de pele humana costurada.

Gein também serviu de inspiração à família canibal de Massacre no Texas (a casa do filme tem uma decoração semelhante, em pele e osso) e a Norman Bates, o protagonista com uma fixação materna de Psycho (embora Robert Bloch, o autor do romance original, tenha dito que Psycho se baseava mais "na ideia de que o homem que vive na casa ao lado pode ser um monstro" do que no próprio Gein.)

Outra possível influência para Buffalo Bill é o violador e assassino Gary Heidnik, que mantinha as vítimas presas num poço na sua cave – mais uma vez, como Buffalo Bill – embora Thomas Harris já estivesse embrenhado a escrever o seu livro quando Heidnik foi detido em 1987.

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Quanto ao Hannibal Lecter "verdadeiro" – Alfredo Ballí Treviño – ele continuou a tratar pessoas enquanto esteve na prisão. Uma fonte disse ao jornal mexicano Reforma que "ele ajudou muitas pessoas na prisão e tornou-se tão bom que, com o passar do tempo, até foi autorizado a sair à noite para ver pacientes". Como o guarda prisional disse a Thomas Harris: "Ele não é louco quando está a lidar com os pobres." A dada altura, foi libertado definitivamente – segundo alguns relatos logo em 1978 e outros só em 2000 – e voltou a trabalhar numa pequena clínica em Colonia Talleres, em Monterrey. Morreu durante o sono em fevereiro de 2009. Padecia de cancro na próstata.

Segundo o Latin Times, Ballí Treviño sabia que era a inspiração por detrás de Hannibal Lecter. Um amigo seu disse que ele achava "divertido" quando a família lhe chamava "Hannibal" e "Dr. Lecter". A sua promessa de visitar Thomas Harris – "Muito obrigado, Sr. Harris. Farei isso, com toda a certeza, na minha próxima viagem" – parece muito mais arrepiante quando interpretada no contexto do seu homólogo ficcional. Como Hannibal Lecter diz ao fugir da sua cela para ir em busca do seu inimigo, Dr. Chilton: "Vou jantar com um velho amigo".

Tom Fordy/The Telegraph/Atlântico Press

Tradução: Érica Cunha Alves

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