No quarto de vestir do meu amigo Daniel, impecavelmente arrumado, existem apenas três cores: preto, cinzento e branco. O azul-noite ainda tenta romper, aqui e ali, em apontamentos breves ? um lenço, um cachecol. A única vez que o vi fora desta paleta cromática foi há quatro anos e apenas porque o evento pedia um dress code mais descontraído: a T-shirt cor de laranja, resgatada à pressa, serviu para cumprir uma formalidade, mas nunca mais saiu à rua. O uniforme habitual, apurado com a idade, não é um escudo protector, nem falta de sentido estético ? antes pelo contrário. É o resultado de uma observação contínua do mundo, dos seus aspectos mais líricos e de como podemos usá-los a nosso favor. No caso, o guarda-roupa foi-se reduzindo a um conjunto de itens que resultam bem do dia para a noite, em qualquer ocasião. Um blazer bem cortado, calças cinzentas ou pretas (nunca de ganga), uma camisola informal. Raramente falha. O estilo do Daniel é a soma de todos os detalhes invisíveis ? a manga dobrada no sítio certo, a gola ligeiramente levantada, os sapatos engraxados.
Aparentemente, o oposto de Tiago, um jornalista cheio de talento que, nas fotografias, se confunde com um skater ou um cantor rock: T-shirts vestidas do avesso, calças skinny com a bainha virada para cima, anéis em vários dedos, blusões de cabedal. A sua postura inconformada assenta bem no papel de discípulo de Rimbaud. Não há tons extravagantes, nem acessórios infundados – tudo tem uma razão de ser. E se parece rebuscado dizer que estes dois homens têm mais em comum do que as suas descrições revelam, isso é porque nem sempre nos lembramos que há, entre "eles", uma preocupação e um cuidado muito maior com a aparência do que habitualmente deixam escapar. A roupa há muito que deixou de ser "coisa de mulheres". Exercício físico, bem-estar e longevidade são palavras que se conjugam, com frequência, no dicionário masculino.
Se dúvidas houvesse, foram dissipadas por Véronique Nichanian, directora criativa da Hermès (está há mais de 20 anos à frente do pronto-a-vestir de homem), em entrevista ao jornal inglês The Daily Telegraph: "Os homens já não se vestem somente de acordo com as pressões de um uniforme social… Eles não compram um casaco ou um fato porque sentem que têm que o fazer, mas par plaisir."
Em 1994, o jornalista Mark Simpson escreveu no The Independent: "O homem metrossexual, o jovem solteiro com um alto rendimento, vivendo ou trabalhando na cidade (porque é aí que estão as melhores lojas), é talvez o mercado de consumo mais promissor da década." O termo metrossexual, que se difundiu a partir de então, descrevia uma classe ascendente de homens urbanos que queriam estar e parecer bem e que tinham o dinheiro para alcançar esse objectivo. Mais de 20 anos depois, a metrossexualidade tornou-se de tal forma mainstream que já pede uma palavra nova ? foi o próprio Simpson que o sugeriu, em 2014, quando fez um balanço da sua previsão e avançou com a ideia de spornosexual (o desporto passou a ter uma componente forte, com uma piscadela de olho ao imaginário pornográfico masculino). Termos rebuscados à parte, a verdade é que, com o virar do século, os homens que se interessam por moda e beleza deixaram de sentir que têm de explicar a sua orientação sexual ? o conceito derrubou o preconceito.
Um ano depois do mundo se deparar com o conceito de metrossexual, Miuccia Prada lançava a Prada Man que viria a ser um sucesso de vendas ? e uma lufada de ar fresco na esquizofrenia dos anos 90 que se debatia entre o streetwear, o grunge e o bling bling proveniente da ascensão do hip-hop. Era um admirável mundo novo. Por todo o lado apareciam canções com referências a marcas de luxo, os designers ascendiam à condição de estrelas, as modelos tornavam-se top models e a moda criava o seu próprio star system, a que nem os homens ficavam indiferentes. Foi um processo gradual, mais ou menos discreto, que culminou no advento das redes sociais. Simon Chilvers, director de moda masculina do portal Matches Fashion, explicou à Esquire que muitos dos mitos ligados aos homens e às compras foram desaparecendo… com o tempo: "A cultura das revistas de estilo dos anos 80 quebrou a barreira de se ser interessado em moda. Agora, há uma geração que está mais exposta a mais coisas. Redes sociais, bloggers, todas as coisas em torno dos desfiles de moda; para eles, a moda é muito mais fora e muito menos ‘Oh, eu não posso ser fashionable’." Chilvers, ex-jornalista do The Guardian, especificou: "A partir do momento em que o streetwear começou a explodir, deu-se uma mudança de percepção do que era a moda: não apenas rapazes [vestidos] em Vivienne Westwood e saias." De certa forma, sublinha, "a moda de homem saiu das sombras da moda feminina". E de que maneira. A profusão de imagens e de opções vende acima de tudo a possibilidade de sermos nós próprios, de assumirmos uma identidade, em vez de pertencermos simplesmente a uma tribo: os looks partilhados (e copiados) até à exaustão, as marcas que surgem a cada temporada, as mil-e-uma-opções de styling, os conselhos de estilo, os blogues, tornam-se um puzzle que cada um, homens incluindo, quer construir à sua imagem e semelhança. Até as celebridades deram uma ajuda (preciosa) para esta reviravolta. Nas passadeiras vermelhas deixaram de ser apenas as mulheres a falar de roupa e, hoje em dia, é normal ver homens a apontar as suas escolhas e a disputar os rankings de mais bem vestidos. Também os atletas se tornaram cada vez mais famosos pelo seu estilo, que assumem sem pudor, e ter uma boa imagem tornou-se uma mais-valia que reforça o seu posicionamento enquanto figura pública. E, claro, não nos esqueçamos das duas palavras mais importantes no que diz respeito à aparência masculina: David Beckham. Depois dos anúncios do ex-futebolista para uma conhecida marca de produtos de beleza, os cremes e as loções hidratantes caíram das prateleiras das namoradas para dentro das gavetas dos rapazes que, até então, torciam o nariz à ideia de "cuidar de si".
Fernando Caetano é director da Open Media e cultiva um estilo cuidado, algures entre o supra-sumo da elegância e o dandy discreto. É um exemplo excelente do homem que gosta, e sabe, fazer compras. "Quando compro, normalmente sei o que quero. A marca nunca é o destino, embora haja marcas em que confio. A qualidade é fundamental. Saber comprar com qualidade a um bom preço é uma arte que cultivo, há muitos anos." Comprador metódico, divide-se entre o mundo virtual e o físico, consoante a ocasião. "Online, quando não tenho paciência para aturar vendedores ignorantes que me tentam impingir o que não conhecem; quando por serendipidade me deparo com uma loja online que tem uns sapatos fabulosos feitos em Singapura que dificilmente posso adquirir de outra forma; quando quero comprar com tempo. No mundo real, quando quero exercitar o tacto; quando estou numa cidade fora de Portugal ou quando sei que determinado item está disponível em determinado sítio e não posso perder tempo." Confrontado com os números que colocam o pronto-a-vestir masculino numa trajectória ascendente, não se espanta. "Os homens sempre ligaram mais à aparência do que as mulheres, tanto da sua como da delas. Infelizmente, há umas cinco décadas a esta parte regredimos imenso enquanto espécie, o que resultou no afrouxar dos níveis de exigência. Pode ser que as coisas estejam a mudar, mas o melhor, mesmo, é atribuir a mudança à necessidade que o comércio tem de conquistar novos mercados…" Conhecedor da indústria do luxo há vários anos, está habituado a showrooms, desfiles e apresentações das mais variadas marcas. Considera, mesmo, que os homens não gostam de ir às compras? "Depende. Há homens cujos níveis de ansiedade atingem níveis incontroláveis no interior de uma loja de roupa, por exemplo. Já numa relojoaria parecem crianças maravilhadas, capazes de rebentar com uma fortuna com a mesma leviandade que o fazem num casino. O homem, de uma forma geral, responde a impulsos diferentes das mulheres e se lhes derem o que eles querem, no ambiente certo, gostam de fazer compras como as mulheres." O seu comentário é elucidativo. Existe até uma conta de Instagram, @miserable_men (mais de 300 mil seguidores), que partilha imagens de homens adormecidos em centros comerciais, sacos na mão, à beira do transe. Na sua definição pode ler-se: ‘Homens que foram às compras. É uma epidemia global.’ E, no entanto, por cada imagem depreciativa surgem novas provas de que é possível tirar prazer de uma tarde num shopping. Conheci Jean Baptiste Fabbricatore, fundador de um canal de lifestyle belga, modelo e embaixador da Piaget, através de amigos em comum. Nas suas redes sociais é frequente ver referências a viagens, a carros e a roupa ? muita roupa. Se fosse inglês, seria handso me. Não sendo, Jean Baptiste é um homem com um bom gosto fora do normal. Confessa, sem pudor, que vai às compras ‘dez vezes por ano, em média, sempre com a minha irmã. Permite-me passar tempo com ela e é sempre bom ter o ponto de vista de uma mulher’. Prefere comprar em lojas, experimentar, mas quando conhece a marca (corte, tamanhos, filosofia) passa a online. E como normalmente tem um objectivo em mente (‘Não sou um comprador compulsivo’) sabe avaliar todas as peças que foi juntando, ao longo dos anos. O estilo e a moda são duas palavras que estão lado a lado, mas são completamente diferentes. A peça mais valiosa é aquela que vai durar… A peça que vai sempre ter ‘pinta’… A moda desaparece, o estilo permanece…"
Os homens compram, as mulheres vão às compras. Será? Em 2015, a Euromonitor International publicou o resultado de um estudo, à escala global, sobre vestuário e calçado. O pronto-a-vestir de homem tinha crescido 4,5 por cento no ano imediatamente antes (contra 3,7 por cento do pronto-a-vestir feminino). Os dados então apresentados previam que, em 2019, o menswear contribuísse com cerca de 40 mil milhões de dólares para o mercado global. Só os mais distraídos se impressionam com os números. A história está cheia de casos de sucesso que atestam o poder da moda masculina ? Nike, Adidas, Puma, Supreme, Louis Vuitton, Comme des Garçons, marcas com géneses diferentes mas cujo hype as elevou a colaborações e parcerias improváveis, que aumentaram ainda mais o seu poder de alcance. Depois da Prada, casas historicamente femininas como a Coach, a Moschino e a Michael Kors começaram a apostar em linhas masculinas e grandes armazéns, como o Selfridges, duplicaram o espaço dedicado à roupa e aos acessórios para homem. O shopping online tornou as compras mais fáceis, mais acessíveis e descomplicadas. Em 2001, o gigante do luxo Net-a-Porter criou a versão masculina, Mr. Porter, que hoje recebe 2,5 milhões de visitantes mensais e alberga mais de 300 marcas líderes a nível mundial (incluindo pesos-pesados como a Saint Laurent, a Givenchy ou a Loro Piana) e produz uma revista semanal, The Journal, com conteúdo editorial próprio. O site oferece serviço de entregas no próprio dia em Londres e em Manhattan e lançou a sua própria linha de casualwear, Mr. P., no último dia 7 de Novembro. E se quisermos ser mais precisos, o aparecimento de blogues como The Sartorialist, em 2005, que reflectem o espírito das ruas, elevou o estilo individual à forma de arte. Passou a ser mais fácil, para todos, assumir uma identidade. Claro que, actualmente, o consumidor está também muito mais informado do que há dez, ou mesmo, há 20 anos. E, por isso, mais poderoso: quer saber de onde vem a roupa, como é feita, por quem. Os homens compram menos vezes, mas compram melhor. E compram de uma forma altamente individual, totalmente centrada no "Eu" que deixa para trás as razões instrumentais ("Preciso de um casaco novo e o casaco xis serve as minhas necessidades") e as substitui por razões expressivas ("Quero que este casaco demonstre quem eu sou").
À porta da Zara, no Centro Comercial Colombo, continua a ser comum ver maridos e namorados numa espera infinita, quase dolorosa, mas não como antigamente. Agora, até eles sucumbem ao charme do gigante espanhol. Numa sexta-feira, à hora de almoço, salta à vista uma disputa por um blazer de veludo azul-céu. Jovens de 20, 30 anos, experimentam roupa, ali mesmo, no meio da confusão. Discute-se a importância de um pullover estampado com motivos tribais ? será demasiado exótico? O barulho dos sacos de papel, cheios de possibilidades, é um som sem género. Admite todos os desejos do mundo. Em cada peça de roupa, o sonho de igualar ícones de estilo de ontem e de hoje: Paul Newman, Jean-Michel Basquiat, Bob Dylan, Marcello Mastroianni, Steve McQueen, Gregory Peck, David Bowie, Pablo Picasso, Dennis Hopper, A$AP Rocky, Pharrell, Kayne West, Tom Ford, Ryan Gosling… Há quem garanta que as combinações são cada vez mais excêntricas, mais espalhafatosas, até, mas eu prefiro vê-las como cada vez mais originais ? os homens que saem à rua assumindo um estilo dos pés à cabeça, seja mais clean ou mais transgressor, têm muito de especial. Dão uma nova vida à moda. Respiram originalidade. Pergunto-me se a nova geração procura a audácia de outros tempos, quando liberdades menores (de vida e de escolha) obrigavam a intervenções maiores ? fossem as viagens a Londres, em busca de tesouros vintage e de peças punk, fossem roupas costumizadas em costureiras que garantiam a cada fato uma aura de demi-couture. No meio de milhões de uploads diários, o que temos, hoje, são nomes que valem ouro ? e algumas imitações. Raf Simons começou por criar roupa masculina para a sua marca homónima e só depois chegou à Dior e à Calvin Klein. O mesmo aconteceu com Hedi Slimane que brilhou na Saint Laurent (diz-se que foi para poder usar as suas calças skinny que Karl Lagerfeld resolveu fazer uma dieta extrema) e criou um culto na Dior, ao ponto das vendas de pronto-a-vestir de homem explodirem 41 por cento, um ano após a sua chegada. Jonathan Anderson, hoje à frente da Loewe, também arrancou com moda masculina, em 2008, e Virgil Abloh, o director criativo da badalada Off-White, também começou por desenhar peças para eles. São sinónimos de culto, seguidos por milhões, que cruzam as (muitas) linhas com que se cose a moda. Em comum, têm uma sabedoria imperial: os homens demoraram algum tempo a apaixonar-se por "trapos", é certo, mas quando compram, são fiéis. Se gostam, voltam sempre. E, como no barbeiro, é amor para a vida.