Maria Francisca, filha de Isabel de Herédia e de Duarte Pio de Bragança, casou-se a 7 de outubro com Duarte Martins na basílica de Mafra. No fim dos anos 90, também eu estive presente na basílica de Mafra para assistir ao casamento de um parente mais ou menos próximo, um primo em segundo grau que decidiu, em sintonia com a sua noiva, casar-se com grande pompa dando uma festa vistosa. Lembro-me dessa história porque também na altura o povo de Mafra não pareceu especialmente motivado pela ocasião. Ninguém fez caso: nas ruas, pelos passeios ou nas esplanadas, as pessoas da terra continuaram a levar a sua vida normal e pacata, sem acenos carregados de bons desejos para os nubentes nem, horas mais tarde, saudações efusivas para os recém-casados. Nada. As gentes de Mafra parecem não se comover com quem se casa. Ou isso, ou estão tão habituadas a ver casalinhos crivados de bagos de arroz a descer aquela sumptuosa escadaria que já nem ligam. Para os de Mafra, estes eventos são todos iguais, por mais que digam de um casamento que ele é real - e não o são todos? Só não o são se forem a fingir.
As televisões e a imprensa do País, por outro lado, encararam a história de outra perspetiva e com outra atitude. A espaços - ainda que fossem espaços muito fugazes e ténues -, a expectativa do casamento de Maria Francisca e Duarte teve o encanto da grandiosa e monumental festa que selou a união oficial entre Diana Spencer e Carlos de Gales, a 29 de julho de 1981. Os ingredientes que tornavam semelhantes as festas estavam reunidos: pretendentes ao trono, coches e cavalos, um templo religioso de dimensões consideráveis que servira de cenário a outros casamentos de relevância histórica. Nalguns aspetos, porém, as narrativas divergiam, a começar na ausência de trono para herdar e continuando pela falta de pessoas nas ruas para testemunhar o evento, por exemplo.
Nada me move contra os jovens noivos, que fazem um casal muito querido e a quem desejo as maiores felicidades, do mesmo modo que não nutro pela monarquia qualquer tipo de ódio, muito menos rancor. Sistemas há muitos, nenhum deles é perfeito e cada qual usa o que tem. Agora, o que acontece aqui é que nós não temos monarcas em Portugal. E é de certo modo confrangedor observar a comoção - social, mediática e até institucional - em torno de uma espécie de baile de fantasia em que pessoas a brincar aos príncipes e princesas publicam listas de oferendas para que o povo possa alegremente contribuir para a festa real - real no sentido de festa da realeza. Mas qual realeza? Há aqui um equívoco. Ainda não foram tornados públicos os resultados das recolhas de peças de mobiliário e utensílios de cozinha com que a pretensa infanta e seu jovem esposo foram presenteados pela plebe, mas a julgar pela adesão popular que assomou às ruas da vila de Mafra para os congratular, não deve ser muito mais que uma varinha mágica e um psiché modesto, e é com sorte.
É que o País real não parece pelos ajustes para aplaudir bodas supostamente reais. Numa altura em que a população, castigada com impostos e mais impostos, enfrenta uma crise com vários rostos, que lhe afeta desde a prestação da casa aos preços dos combustíveis, que vai da falta de médicos à falta de professores, que todos os dias despeja pessoas para a rua e atira gente para o desemprego, que deixa cada vez mais portugueses no limiar da pobreza - quando não mesmo abaixo desse limiar -, soa quase a piada de mau gosto ter entre os convidados de um casamento ficticiamente real Marcelo Rebelo de Sousa, o Presidente da República, cuja incumbência obriga, por definição, a que seja o defensor máximo da causa republicana e, por consequência, a que seja o primeiro opositor das pretensões monárquicas.
E é de pretensões monárquicas que se trata aqui. Portugal é, há 113 anos - comemorados dois dias antes deste casamento pifiamente real, já agora -, uma república. Com todos os defeitos e desilusões incluídos, mas, ainda assim, uma república. Não há lugar para infantas nem princesas, para duques nem outras nobrezas num estado republicano. Já nem vou sequer ao detalhe de estarmos a falar de descendentes do lado mal-amado de uma dinastia que há muito está extinta (Duarte de Bragança é bisneto de D. Miguel, o mais contestado e controverso Rei de Portugal, que guerreou com o próprio irmão e cuja linhagem e descendência nunca deu origem a qualquer rei). Essa discussão não é relevante, por um motivo muito simples: precisamente porque ser descendente de Pedro ou de Miguel se torna irrelevante quando não há qualquer trono para herdar.
Quem interpretou bem toda a situação foi a imprensa espanhola. Sendo Espanha uma monarquia, com herdeiros legítimos e títulos nobiliárquicos de pleno direito, torna-se ainda mais confrangedor ler num jornal como o El País que "o Portugal republicano assiste à boda de Maria Francisca de Bragança, membro da dinastia que sonha restabelecer a monarquia lusa". O jornal acrescenta, em seguida, que se trata da "filha de Duarte Pio" - assim, sem "dom" - "pretendente do trono inexistente". Por cá, porém, as televisões preferiram acompanhar a cerimónia ao longo do fim de semana, como se aquela tivesse importância. Portugal pode não ter rei - nem roque -, mas nunca nos falta a vocação para a fantasia e para as histórias de encantar.