"Isto já se sabe, é guardar sempre as joias em cima do frigorífico." Foi desta forma – fria, sucinta, lógica, quase amistosa – que o agente da PSP comentou, sob a forma de conselho de pessoa experiente, o caso numa ocasião em que assaltaram o apartamento do meu vizinho da frente. Revolveram-lhe a casa toda, remexeram tudo. Levaram-lhe o ouro, pulseiras, fios, os brincos da mulher, uma gargantilha que herdara da mãe, parece. "Em cima do frigorífico", repeti baixinho, "claro, como é que eu nunca pensei nisso?" Óbvio, ninguém vai à procura de ouro em cima do frigorífico. Ali estava o ovo de Colombo das técnicas de prevenção de assaltos ao domicílio.
Lembrei-me desta história a propósito de Dick Fosbury, o primeiro homem a - alegadamente - ter praticado salto em altura usando a técnica que haveria de ser batizada com o seu nome, o Fosbury Flop. "Era tão lógico que eu achei incrível que nunca ninguém se tivesse lembrado disso antes", disse certa vez numa entrevista. Porque é que o disse? Porque era tão lógico, tão óbvio e tão claro, que acabava por ser surpreendente que ninguém executasse os saltos daquela maneira. Fosbury morreu recentemente, no dia 12 de março, aos 76 anos, e é por isso que o recordo aqui.
Hoje, aquela maneira de executar o salto parece apenas óbvia, quase natural, mas se recuarmos até 1968 não era nada assim que se saltava. Até porque se trata - como facilmente se pode constatar quando, nos verões olímpicos, nos entregamos à contemplação de modalidades desportivas que vão além do habitual e omnipresente futebol - de uma técnica invulgarmente exigente. O salto Fosbury consiste numa aproximação equilibrada à fasquia, de modo a que o balanço do corpo, ajudado pela velocidade moderada e pelos passos de chamada que antecedem o salto, seja suficiente para saltar voltando as costas ao obstáculo. O corpo ultrapassará a fasquia arqueando-se de modo a contorná-la no momento e no ponto ideal. A chamada será feita num ângulo nem paralelo, nem perpendicular ao obstáculo a superar. Como diz o povo, parecendo difícil, não é nada facil.
Fosbury popularizou esta técnica em meados da década de 1960, mas o salto em altura era já modalidade olímpica desde 1896, quando os jogos da era moderna se realizaram pela primeira vez, em Atenas. Ou seja, a modalidade já levava muitas décadas de reconhecimento olímpico antes de Dick Fosbury ter executado o seu Flop. Nos primórdios do salto em altura, a técnica mais popular era o salto tesoura. Quem teve aulas de educação física, saberá do que se trata. É uma maneira user-friendly de passar um obstáculo e tem a vantagem de permitir ao atleta uma aterragem de pé. Parece de somenos, mas essa vantagem é substancial quando não existem colchões para nos acolher na aterragem.
Mais complexas são as técnicas que, durante algum tempo, imperaram: a Eastern Cut-Off e a Western Roll. Na primeira, o atleta roda o torso na horizontal no pico do salto, o que lhe permite elevar a pélvis. Daqui resulta uma gigantesca vantagem relativamente à antecessora técnica do salto-tesoura. O Western Roll, cuja eficiência relativamente à Eastern Cut-Off é duvidosa, é semelhante à técnica que se segue, podendo até ser confundida (a diferença está na abordagem e na flexibilidade, que Eastern é reduzida).
A técnica que prevaleceu até à ascensão popular do Fosbury Flop foi o salto Straddle. Esta técnica permitiu resultados espantosos até à década de 1970, incluindo marcas-recorde a rondar os 2,30 metros. O último recorde mundial de salto em altura com recurso à técnica Straddle - que consistia, muito resumidamente, numa espécie de mergulho, de caras, com o corpo a passar a fasquia quase paralelamente a esta - pertenceu ao soviético Vladimir Yashchenko, em 1978, com um salto de 2,34 metros. Para termos uma referência, o recorde em vigor, com recurso ao Fosbury Flop, pertence ao lendário cubano Javier Sotomayor, é 2,45 metros (1993). A marca constitui o mais duradouro recorde mundial do salto em altura - faz 30 anos a 27 de julho. Terá Sotomayor atingido o máximo humanamente possível para um salto em altura?
Voltemos a Fosbury. Quando o atleta mostrou surpresa em relação a "nunca ninguém ter pensado" naquela forma de saltar, temos de dar um certo desconto à fatia demagógica da declaração. Na realidade, nem Fosbury inventou o célebre flop, nem foi sequer o primeiro a praticá-lo. O que acontece é que, como em tudo no desporto - e no mundo, de um modo geral -, houve evolução também ao nível dos materiais, incluindo os colchões. Até meados da década de 1960, os atletas porcuravam proteger-se, de alguma forma, na aterragem, mesmo que tivessem à sua espera, do lado de lá da fasquia, qualquer coisa que lhes amortecesse a queda. Ora, o Fosbury Flop deixa o atleta completamente vulenrável, uma vez que a aterragem é feita de costas e depois de ter elevado o mais possível os quatro membros e a pélvis. Só com um bom colchão um saltador se atreveria a executar a técnica.
Richard Douglas Fosbury, cuja morte é o motivo que aqui nos reúne, era um atleta de salto em altura pouco mais que medíocre nos seus tempos de universitário. Nada o fazia sobressair, até que aceitou experimentar o Flop. E foi então que tudo mudou num intervalo de meses. Em 1968, foi campeão universitário e obteve a melhor marca para as qualificações olímpicas. Nas olimpíadas, que se realizaram nesse mesmo ano, disputadas na Cidade do México, Dick Fosbury causou sensação ao saltar usando esta inovadora técnica. Porém, essa de flop só tinha o nome - e no sentido de pulo desajeitado -, uma vez que se revelou determinante. Fosbury ganhou a medalha de ouro com a marca de 2,24 metros.
Acerca do salto que ainda hoje tem o seu nome cunhado, Fosbury disse que era "aliterativo e disruptivo", acrescentando ainda que lhe agradava a contradição: "Era um flop que podia ser um sucesso". E foi mesmo: dos 36 medalhados olímpicos no salto em altura desde 1972 até 2000, 34 usaram o Flop. De 2000 em diante, todos os fizeram. Fosbury tinha razão, era uma solução óbvia.