Para tudo: vêm aí os Beatles! Outra vez. Mas agora, diz Sam Mendes, de uma maneira nunca antes vista. O cineasta britânico, vencedor do Óscar de Melhor Realizador com Beleza Americana (1999), tem vindo a promover, desde dezembro, o seu mais recente e possivelmente mais ambicioso trabalho cinematográfico: até 2027, lançará exclusivamente para as salas de cinema quatro filmes acerca dos Beatles, um por cada um dos elementos da banda: John Lennon, Paul McCartney, Ringo Starr e George Harrison. Mendes já tem o aval de Paul e de Ringo, os dois Beatles sobreviventes, assim como a licença para filmar das famílias de John e de George. Mais: tem carta branca. Os filmes não precisam de validação por parte de ninguém.
Lê-se e até custa acreditar. Um projeto desta dimensão, com este tema e com garantia de total liberdade talvez seja o que há de mais próximo do sonho criativo de um realizador de cinema. Obviamente, tratando-se dos Fab Four, não faltarão pretendentes a investidores como co-produtores, até porque um filme sobre os Beatles realizado por Sam Mendes é, à partida, uma garantia de sucesso de bilheteira e de distribuição posterior. Tratando-se de um ambicioso projeto que inclui quatro longas-metragens sobre os rapazes de Liverpool, então o mais provável é que Mendes possa dar-se ao luxo de avaliar, classificar e eventualmente descartar possíveis investidores.
Pelo que se percebeu até agora, a ideia do realizador é partir da perspetiva de cada um dos músicos e construir uma narrativa independente para cada filme. Necessariamente, as histórias cruzar-se-ão em diversos pontos, já que o contexto de todas elas é a própria banda. Agora, que tipo de histórias vão ser contadas nesses filmes? Esse é o enigma. Vamos presumir que um trabalho assim tão ambicioso não irá cingir-se à ideia fácil de contar a mesma história, acrescentando-lhe pormenores de mais do mesmo: Paul conheceu John, eram rapazes novos, um sabia música clássica o outro tocava guitarra e tinha espírito de artista, fast forward, foram para Hamburgo, correu mal, mudaram de nome, deixaram de fazer covers, compuseram, em apenas quatro anos, cinco ou seis dos mais extraordinários e influentes álbuns da música popular mundial. Mendes procurará certamente outras abordagens, mais frescas e mais inventivas, que não contem o que já todos sabem.
A tarefa de ser inovador e inventivo no que toca a retratar os Beatles - ou a contar-lhes as histórias, sejam elas quais forem - não se afigura fácil. E daí, todo o projeto se reveste de uma aura audaciosa. O que acontece é que os Beatles já foram tema, mote, inspiração ou objeto de obras cinematográficas de todos e para todos os gostos, incluindo para a falta de gosto. Nesta última categoria, lembro-me, sem esforço, de Yesterday (Danny Boyle, 2018), uma história com uma premissa de sonho que acaba por redundar numa comédia romântica ligeira, mas que é ligeira em tudo, da comicidade ao romantismo. Por outras palavras, uma perda de tempo e o desperdício de uma ideia brilhante. Para quem não se recorda, a premissa do filme é: um irrelevante músico de rua tem um acidente e perde os sentidos; quando acorda, é a única pessoa que se lembra dos Beatles, o resto do mundo nem faz ideia de que a banda alguma vez existiu. Munido de um repertório que habitualmente tocava, à guitarra, nas ruas, esse músico rapidamente faz sucesso, já que todos acham que as canções dos Beatles são, afinal, dele - e são canções geniais (nesse ponto, em princípio, todos concordamos). Tudo começa muito bem no filme, só é pena a hora e meia que se segue, que conta qualquer coisa parecida com uma história de amor vagamente igual a todas as outras que surgem nos menus da televisão (como se ainda alguém, além de mim, visse televisão) sob a etiqueta "para ver a dois" (e não se podia ver outra coisa a dois? Thrillers, por exemplo. Ou até documentários.).
A filmografia em torno dos Beatles - ou partindo dos Beatles, ou inspirada neles, ou ainda que inclui os Beatles - é vasta. Sem puxar muito pela cabeça, chegamos facilmente a, além de Yesterday, Yellow Submarine, Hard Day’s Night, Nowhere Boy, Let It Be, John and Yoko, Magical Mistery Tour (possivelmente, a melhor banda sonora de todos os tempos, já agora), Help! ou Eight Days a Week. Uma busca rápida pela Internet dá conta de que existem, pelo menos, 84 obras cinematográficas registadas que incluem, de alguma forma, os Beatles - nem que seja porque um dos elementos integra o elenco, como em Caveman - O homem das cavernas (Carl Gottlieb, 1981), protagonizado por Ringo Starr; ou ainda porque uma canção dá título ao filme, como no caso do infame Helter Skelter, telefilme de Tom Gries de 1976 em torno do caso Tate-LaBianca e o terror provocado por Charles Manson e "a família".
Segundo as classificações do IMDB, o melhor dos filmes do universo Beatles - e se Sam Mendes estiver a planear fazer com os Beatles o que tem vindo a ser feito com a Marvel e a DC Comics? Hum… - é George Harrison: Living in the Material World, um documentário biográfico de 2011 com a inconfundível assinatura do mestre Martin Scorsese, que reúne material disperso, de entrevistas a home videos, para construir a personagem do benjamim da banda, compositor exímio e genial a quem nem sempre foi dado o devido crédito pelo brilho que acrescentou aos Beatles. Fora dessa lista, mas obviamente impossível de não mencionar, está Get Back, o intenso, longo (468 minutos no total - quase oito horas!), profundo, artístico e autoral documentário de Peter Jackson a partir do material registado durante a gravação de Let It Be, o 12.º e último álbum de estúdio dos Beatles, cujo projeto tinha, em estúdio, o nome que dá título ao filme: Get Back.
O que esperar, então, desta odisseia beatlesca a que Sam Mendes se propõe? Olhando para o palmarés do realizador, torna-se difícil adivinhar qual o caminho por onde irá seguir. É imprevisível ao ponto de não se saber se seguirá por um caminho igual para as quatro partes ou se escolherá um registo diferente para cada uma das perspetivas. Depois de Beleza Americana e da inesperada consagração do realizador - então, ainda um jovem pouco mais que desconhecido fora do Reino Unido e cujos principais trabalhos se centravam na direção de peças de teatro e de musicais -, Mendes vagueou por vários estilos. Da saga de James Bond (Skyfall, 2012, Spectre, 2015) ao filme de guerra 1917 (2019; Mendes já filmara Jarhead, em 2005, mas é todo um outro género de "filme de guerra"), passando pelo universo DC Comics (a-ah!, Road to Perdition, 2002), pelo romance gone wrong (Revolutionary Road, 2008) ou pela comédia dramática (Away We Go, 2009), o cineasta já fez de tudo um pouco, mesmo não tendo uma lista de obras muito extensa.
Esta diversidade de experiências e de abordagens confere-lhe as ferramentas suficientes - e são ferramentas potentes - para experimentar e se deleitar (e deleitar-nos também a nós, espectadores) com obras que têm tudo para correr bem. Tratando-se dos Beatles, mesmo que Sam Mendes opte por uma extravagância musical, não há como correr mal. São os Beatles, for Christ sake! Até com stop motion se fazia uma obra-prima.