Quando, a 10 de fevereiro de 2019, Jonas Gonçalves Oliveira marcou o seu segundo golo da tarde num jogo de sentido único entre Benfica e Nacional da Madeira, abriu-se um debate. O Benfica selava uma vitória gorda - gorda nada: obesa mesmo -, daquelas que "já não se usa", como os entendidos costumam dizer de cada vez que ocorre tamanho descalabro e uma equipa atropela a outra sem piedade nem travões.
O Benfica ganhou, nesse dia, por 10 a 0 e o facto de o marcador ter chegado aos dois dígitos a favor da equipa da casa levou a que muita gente tivesse levado as mãos à cabeça, que estava espantada, as mãos à consciência, que estava pesada - nestas coisas tendemos a dramatizar e a assumir uma culpa comum, que todos podem partilhar, "se as coisas chegaram a este ponto é porque a sociedade", "se hoje estamos diante desta bizarria é porque todos fingiram não ver que" -, as mãos ao coração, que é bondoso, que é caridoso e que é piedoso, e que por tudo isso se inquieta quando vê os fracos serem assim, despojados de honra, de brio e possivelmente de esperança - que esperança pode haver para uma equipa de futebol que apanha 10-0?
Houve, na altura, na ressaca desse jogo, lembro-me bem, quem decidisse teorizar acerca desse jogo e desse resultado do tamanho de um abismo, essa atrocidade futebolística que teimava em demonstrar que o Benfica, enfim, o monstruoso Benfica não tinha demonstrado humanidade nem solidariedade para com os mais fracos. Que essa equipa do Benfica, certamente dominada por uma espécie de diabo no corpo - nos 11 corpos da equipa inicial e mais os outros suplentes que acabaram por ser utilizados -, não cumprira com as mais elementares regras cristãs da solidariedade e da piedade. Houve até alguém - e agora não consigo precisar quem foi, mas era um comentador ou uma comentadora respeitável, com nome feito no meio - que sugeriu que o Benfica, a partir de certo ponto, devia ter parado de marcar golos, que aqueles que tinha lhe chegavam bem, para quê então continuar e continuar e continuar mais um pouco.
Quando João Félix Sequeira fechou a contagem, a 11 de setembro de 2023, no Estádio do Algarve, fixando o placard final nos 9-0 com que Portugal esmagou a seleção do Luxemburgo, não se ouviu grandes protestos nem se escreveu por aí manifestos. Mesmo aqueles que haviam assistido indignados à excessiva vitória do Benfica sobre os madeirenses pareciam, agora, mais deslumbrados com a impressionante vitória dos portugueses sobre uma seleção de um país que, sendo rico, é minúsculo, além de ter uma equipa que é composta, em parte, por descendentes dos próprios portugueses, o que devia deixar-nos, no mínimo, com algum sentimento de culpa e no máximo com uma certa apreensão acerca dos genes que andamos a espalhar pela Europa. Mas não, toda a gente se concentrou apenas no facto de termos batido o recorde absoluto de golos marcados em jogos oficiais e de termos, àquela data, o resultado mais volumoso e dilatado - esbanjo aqui os dois termos que mais vezes se usa para designar tamanhos desníveis no marcador porque, se me permitem, a ocasião assim o pede - da fase de apuramento para o Europeu de 2024, que será disputado na Alemanha. É possível que o próprio João Félix, que marcara tanto em fevereiro de 2019, como em setembro de 2023, pode ter ficado baralhado com a extraordinária bondade com que os críticos de uma goleada encaravam agora a outra.
Quando Ethan James Santos introduziu a bola na própria baliza, a de Gibraltar, logo aos três minutos de jogo e, 15 minutos mais tarde, se fez por expulsar de campo, a 18 de novembro de 2023, só lhe faltou perguntar aos jogadores franceses, seus adversários, se tinham percebido ao que vínhamos. Os franceses teriam, por certo, respondido que sim, senhor, está tudo entendido, e assim aqueles 14-0 com que a França goleou Gibraltar seriam muito mais fruto de uma estranha sintonia entre as partes do que o resultado de um desafio de futebol disputado entre equipas que podiam ser de galáxias distintas.
A França bateu o recorde absoluto de maior vitória numa fase de qualificação para um Campeonato da Europa. Gibraltar bateu o recorde inverso. E, de novo, se aflorou aquele debate que já vinha desde a goleada do Benfica ao Nacional: a partir de quantos é que uma equipa deve parar de marcar golos ao adversário, afinal? E é por isso que me lembrei daquela história que aconteceu no Estádio da Luz, em Lisboa, em 2019: porque Didier Deschamps deu a toda a gente a melhor resposta possível: "Isto é respeitar o adversário. Quando podemos fazer golos, temos de os fazer!" Caso encerrado, portanto: não é com piedade nem misericórdia que uma equipa demonstra respeito pela sua antagonista. Pelo contrário, é mostrando que não trata os seus adversários como coitadinhos - e, pensemos só um bocadinho sobre isto: França é o maior país da Europa Ocidental em território e o segundo maior em população; Gibraltar é um território autónomo do Reino Unido situado num enclave andaluz, numa das pontas da baía de Algeciras; é uma cidade com quase 30 mil habitantes disposta em torno de um enorme rochedo, cuja estrada principal é cortada pela pista de aeroporto.
Kylian Mbappé, o melhor dos franceses e um dos melhores do mundo, apontou três dos 14 golos com que a sua seleção trucidou o frágil e minúsculo adversário. No final, disse: "Queríamos bater o recorde e ficar na história", e eu não imagino maior homenagem que se pudesse prestar aos bravos jogadores gibraltinos que, diante de uma tamanha adversidade e perante uma realidade futebolística tão distinta da sua, aceitaram entrar e permanecer em campo, mesmo quando os números ascenderam a um patamar estratosférico.