O estado americano do Ohio via nascer, a 4 de abril de 1842, o homem que, sem saber - e sem que ninguém na altura pudesse, mesmo que remotamente, suspeitar -, viria a ser visto por milhões de pessoas como o visionário criador do artefacto que pode salvar o mundo. Refiro-me, obviamente, a Marvin Chester Stone, inventor da palhinha de papel, cuja patente ficou registada em seu nome em janeiro de 1888. Hoje é mais ou menos aceite entre a generalidade das pessoas que a palhinha de papel, além de absolutamente desagradável na sua função primária de ajudar a sorver líquidos de recipientes fundos e estreitos, tem um impacto negativo no ambiente: consome papel que fica inutilizado e não pode ser reciclado; o uso massificado leva a um aumento do consumo de papel; por aí fora.
E contudo houve um momento no tempo em que a invenção de Marvin Stone parecia ser parte substancial da solução para os problemas do primeiro mundo, já que ajudava os indivíduos a livrarem-se do demoníaco plástico numa parte importante dos seus gestos quotidianos. Quando falo da "solução para os problemas do primeiro mundo", talvez deva explicar que me refiro aos problemas de consciência. O primeiro mundo tem muito disto: vai salvando o planeta uma palhinha de papel de cada vez, ou uma escova de dentes de bambu de cada vez. Se se tratar de um cidadão mais abastado, pode almejar a livrar a humanidade do cataclismo ambiental comprando um carro elétrico de cada vez. O mais importante é fazer tudo o que está ao seu alcance de maneira a que a sua consciência adormeça ao som do mantra "se todos fossem como eu, não havia aquecimento global", independentemente de a pegada ambiental do modo de vida cada um entre os países ricos ser obscenamente superior àquela deixada pelos indivíduos dos países pobres.
O que os ricos e os pobres fazem têm valores e julgamentos diferentes, mesmo quando fazem a mesma coisa. Os defeitos e vícios de uns e de outros ganham pesos e significados diferentes, dependendo do estatuto social e das posses de cada um. O que no currículo de um rico é um capricho, um sinal de que "quem pode, pode", entranha-se como uma nódoa capaz de ofender a humanidade no cadastro de um pobre ou de um remediado. E agora já não estamos a falar apenas dos países ricos em relação aos pobres (embora pudéssemos), estamos a entrar num campo mais específico.
Um exemplo concreto: foi notícia, há algumas semanas, nos Estados Unidos o suposto banimento da Four Loko, uma bebida energética à base de malte, cafeína e taurina, vendida em lata, com elevadíssimo teor alcoólico (pode chegar aos 14% por volume, em alguns sabores). Afinal, a Four Loko não foi banida. A bebida, que tem sido centro de polémicas desde, pelo menos, 2010, também tem sido alvo preferencial da FDA, a agência americana que dá conta da validação e da proibição de alimentos e de medicamentos.
A composição da bebida, que pode chegar às cinco porções médias de álcool numa só lata - nos Estados Unidos, a dose diária máxima recomendada é de quatro porções médias -, tem suscitado debate, restrições, limitações, boicotes e até alterações na receita e na designação. Primeiro, deixou de poder ser comercializada como "energy drink". Depois, retirou da composição a cafeína, porque, segundo a FDA, era um "ingrediente alimentar potencialmente perigoso".
Toda esta celeuma em torno da Four Loko tem decorrido enquanto bebidas energéticas poderosas como o Red Bull ou a Monster são livremente comercializadas em bares e clubes noturnos, onde descontraidamente podem ser misturados com vodka, por exemplo. E enquanto cocktails como o Espresso Martini, também conhecido como vodka espresso, são estrelas de cardápios de rooftops caríssimos e cheios de charme nas principais cidades americanas. A receita para um Espresso Martini, apesar do nome, nada tem a ver com martini. É feito com licor de café, um café expresso e uma porção de vodka. Apesar desta receita, não há registo de alguma vez a FDA ter obstado a comercialização de Espresso Martinis. Para concretizar a ideia: o preço de uma lata de Four Loko rondará os 4 dólares, um copo de Espresso Martini custa por volta dos 18 dólares. Ambos têm composições energéticas duvidosas e teores alcoólicos muito elevados, mas enquanto se contestam os que vêm em latas de vending machines, glorificam-se os que, quatro vezes mais caros, são consumidos em ambientes glamourosos por gente muitíssimo bem vestida.
E, por falar em gente bem-vestida, voltamos à questão do ambiente e da salvação do planeta. Primeiro as boas notícias: Taylor Swift ganhou consciência ambiental e decidiu também ela salvar o mundo desfazendo-se ecologicamente do seu jato privado pela módica quantia de 44 milhões de dólares. As más notícias são que, antes de o fazer, em 2022 (não encontrámos números de 2023) a celebérrima cantora deixou uma pegada ambiental equivalente a 1928 vezes a média global. O avião privado de Swift levantou voo 170 vezes para percorrer uma distância média de 220 quilómetros, tendo chegado a fazer viagens de apenas 36 minutos no ar. A rainha da pop-country já anunciou que vai compensar o planeta e toda a gente adquirindo créditos de emissões de dióxido de carbono - além da já anunciada venda do pequeno jato.
As estimativas indicam que as celebridades americanas que viajam de jatos privados emitem, cada uma, em média, 465 vezes mais dióxido de carbono do que o cidadão comum. Estamos a falar de um dano ambiental que não pode ser visto de outra maneira: é criminoso. E, no entanto, nenhuma autoridade parece ter intenção de processar qualquer uma dessas estrelas que se passeiam de avião como quem usa a bicicleta para ir ao supermercado (Kylie Jenner fez recentemente um voo de 17 minutos para visitar uma amiga). Para estabelecermos um termo de comparação, mesmo que absurdo, ao nível dos danos ambientais: se alguém em Portugal se livrar de uma telha de fibrocimento sem as devidas autorizações das autoridades está sujeito a uma coima de 1900 euros. A reincidência da prática pode levar à detenção pelas autoridades e eventualmente à prisão por crimes ambientais. Se fosse possível fazer equivaler uma coisa à outra, quantas telhas de fibrocimento seriam necessárias para causar o mesmo dano ambiental que um voo privado de meia-hora?
Claro que todas estas comparações são disparatadas. Uma coisa é o cidadão comum tirar Four Lokos da máquina numa estação de comboios, outra completamente diferente é uma celebridade milionária beber Espresso Martinis a bordo de um jato privado. A primeira é perigosa e nociva, a segunda é um capricho só ao alcance de quem pode. Especialmente se usar uma palhinha de papel, por causa da consciência ambiental.