O futebol nasceu na rua. Com todas as emendas, retificações e adendas que possam ser feitas à sua origem, a história do nascimento do futebol vai sempre dar ao mesmo sítio: uma enlameada rua à saída de uma fábrica numa qualquer cidade industrial do centro de Inglaterra, em meados do século XIX. Foi a classe operária que, nos seus poucos e precários tempos livres, tornou inevitável o estabelecimento do futebol moderno. As variações sobre o assunto, bem como a instituição dos regulamentos consensuais e a separação entre o rugby e o Association Football - comummente designado por soccer, por mais que torçamos o nariz à designação -, não passam de pormenores técnicos, detalhes burocráticos no que respeita à génese de um dos principais fenómenos de massas e das maiores manifestações culturais - e espirituais, e tribais - dos séculos XX e XXI, pelo menos no mundo ocidental.
O futebol nasceu na rua e o futebol continuou a nascer na rua, geração após geração, enriquecido pela nobreza estética e pelo fervor da ambição daqueles que, nascidos na pobreza, alimentaram na rua a sua primeira fome de bola, ao ponto de trazerem para o jogo os truques e as artimanhas só ao alcance daqueles com a habilidade natural para o golpe de cintura e com a sagacidade essencial à sobrevivência nos bairros mais difíceis. Não será por acaso que o futebol - ou, melhor, o futebol no seu modo belo-desporto - foi regular e consecutivamente sendo alimentado por aqueles que vinham praticamente de debaixo das pedras e que tinham no futebol a sua grande possibilidade de fuga a uma miséria que, de outro modo, seria praticamente uma sentença.
Pelé, o Rei, Edson Arantes do Nascimento segundo o registo civil brasileiro, ele próprio, nascido em Minas Gerais, cresceu em vários subúrbios de São Paulo, sempre entre a pobreza e a miséria, ajudando a família com biscates em lojas e não só. E foi na rua que a sua inconfundível e inigualável veia aristocrática suscitou o interesse de vários clubes, até que o poderoso Santos conseguiu finalmente convencer a sua mãe, Dona Celeste, a deixar o miúdo experimentar o futebol a sério. Pelé tinha 16 anos. Um ano mais tarde, seria campeão do mundo pelo Brasil, na Suécia - com um hat-trick nas meias-finais (5-2 à França) e um bis na final (novo 5-2, agora à Suécia, equipa anfitriã). Não demorou até que o mundo o declarasse o melhor jogador de todos os tempos - um título que tem sido ocasionalmente disputado, mas nunca, de modo algum, cabalmente refutado: não passam de pretendentes ao trono, porque o Rei ainda hoje é o Rei.
E não foi também das ruas da Mafalala, em Maputo (então, Lourenço Marques), que nasceu e brotou Eusébio da Silva Ferreira? Brilhando na terra batida das artérias do bairro pobre, ao ponto de abrir uma guerra diplomática entre Benfica e Sporting, os dois grandes rivais de Lisboa? Eusébio acabou por rumar ao Benfica, onde se tornou não só na maior figura da história do clube, como também no melhor jogador português do século XX. O título de melhor futebolista português da história só foi, aliás e obviamente, disputado por Cristiano Ronaldo, que atingiu na era contemporânea voos e resultados superiores aos do King Eusébio. Porém, durante uma vasta e longa era, foi Eusébio quem reinou em Portugal e não só, chegando a conquistar o Ballon D’Or da France Football, em 1965, e a Bota de Ouro da UEFA (melhor marcador da Europa) em duas ocasiões, nos anos de 1968 e 1973.
De Cristiano Ronaldo, a história é amplamente sabida. Do Andorinha, da Madeira, ao Nacional, da mesma ilha, mas sempre com a bola debaixo do braço e a exercitar o futebol pelas ruas. Quem o conhece desde criança não sabe dizer se era Cristiano que não largava a bola, ou se era a bola que não o largava a ele. Oriundo de uma família pobre, teve no futebol a saída, para si e para os seus, a uma vida de dificuldades. Mas para se dedicar ao futebol como o futebol merecia, teve de mudar-se muito cedo para Lisboa, para representar o Sporting e forjar no clube da capital a carreira triunfal que se lhe conhece. Porém, na origem estava a rua.
E se houve quem tivesse disputado com Pelé o estatuto de melhor jogador de sempre, ou, pelo menos, o de melhor futebolista do século XX, esse foi Diego Armando Maradona. Nascido em Lanús e criado para o futebol, desde os três anos, nas ruas de Buenos Aires, Maradona - ou El Pibe, ou D10s, como preferirem chamar-lhe - foi descoberto pelos olheiros dos Cebollitas (a categoria de base do Argentinos Juniors) quando tinha apenas oito anos. E desde então que levou para os campos todo o saber acumulado nos becos e vielas da capital argentina, onde os miúdos pobres jogavam descalços com balizas feitas de pedras de calçadas. Daí até ao Olimpo do Estádio Azteca, no México, em 1986, quando se sagrou campeão mundial pela Argentina, foi um saltinho de poucos, pouco mais de década e meia. "De qué planeta viniste, barrilete cósmico?", perguntava o relatador Victor Hugo Morales num dos mais dramáticos e emocionantes relatos de um golo de futebol de que há memória, depois de Maradona deixar para trás cinco ingleses e marcar o golo do século. Veio do planeta Rua, senhor Morales.
As histórias sucedem-se e quase se repetem, mostrando, uma e outra vez, que o futebol e as classes desfavorecidas têm mantido, ao longo de quase dois séculos, uma relação simbiótica. Se o jogo é, para muitos, uma das poucas saídas viáveis rumo a uma vida digna e desafogada, o manancial virtualmente infinito que os bairros pobres das grandes cidades deixa à disposição do belo-jogo faz desses meios um nicho preferencial de busca pelos maiores talentos do futuro.
Lembrei-me destas histórias, e de muitas outras semelhantes, embora de menor sucesso, quando lia, recentemente, no Wall Street Journal acerca do caso de Maria Sánchez, futebolista estadunidense de origem mexicana que acabou de se tornar a mais bem-paga jogadora dos Estados Unidos da América. Sánchez é notícia - e é noticiada com espanto - porque chegou a profissional sem nunca ter frequentado uma escola de futebol, que é um caso inédito na idade contemporânea da modalidade na América. Todos os profissionais passaram pelas escolinhas de futebol para lá fazerem a formação de base.
Acontece que os pais de Maria, imigrantes como muitos outros numa pequena cidade do Ohio, não tinham dinheiro para inscrever a filha numa dessas escolas, só ao alcance das famílias de classe média. Segundo os jornais americanos, o custo com uma criança nas escolinhas de futebol ascende a qualquer coisa como 10 mil dólares por ano (pouco mais de 9 mil euros). Por cá, em Portugal, os custos serão substancialmente menores, mas assistimos a inscrições de crianças em escolinhas que começam nos 25 euros e ascendem facilmente, dependendo do prestígio das escolas e do número de horas semanais, aos 45 aos 60 ou até mais euros por mês. Não são nove mil euros por ano, mas são números que claramente fogem ao alcance das famílias desfavorecidas, de onde tantas vezes saem os maiores talentos e os mais graduados génios deste desporto.
E não consigo deixar de pensar: se fosse hoje, será que Pelé e Maradona tinham conseguido jogar à bola? O que será do futebol sem os craques da rua? E o que será desses craques se não tiverem acesso ao futebol?