Mesmo os empregos de sonho têm dias mais difíceis e espinhosos, daqueles em que uma pessoa se levanta e pensa "hoje preferia ficar na cama". E nem o cargo de Presidente da República, por mais honroso, respeitado e desejado que seja, escapa a essas manhãs de nevoeiro íntimo em que uma pessoa hesita entre ligar ou não ligar a dizer que passou mal a noite. No caso do Presidente, é improvável que esta estratégia funcionasse, mas ao mesmo tempo é muito plausível que Marcelo Rebelo de Sousa tenha sentido as dores do impasse ali naquele período entre a demissão rejeitada de João Galamba e a sua própria comunicação ao País.
A verdade é que António Costa fez a Rebelo de Sousa uma desfeita. E ainda por cima quando tudo parecia correr bem, já que o ministro das Infraestruturas apresentara o pedido de demissão ao primeiro-ministro. Este, depois de ter passado o dia em reuniões com elementos da sua confiança, com o próprio Galamba e com o Presidente da República - fontes fidedignas garantem que o encontro entre os dois durou mais de uma hora e meia -, decidiu falar ao País em direto e em horário nobre, rodeado de câmaras de televisão e holofotes. Com tanto suspense e tamanho aparato, com os noticiários da TV a empatar tempo até ao grande momento anunciado, temia-se que António Costa chegasse diante do microfone no Palácio de São Bento e largasse uma bomba política, por exemplo, anunciando a sua propria demissão. Mas a montanha pariu um rato e o suspense há de se ter devido mais ao embaraço da comunicação do que ao bombástico do anúncio: o ministro pediu demissão, mas eu não aceitei, disse um primeiro-ministro visivelmente desconfortável com o ter de justificar o que não tem justificação.
Instalada a indignação nacional, não houve quem engolisse as teses de António Costa, por muito que o primeiro-ministro insistisse em palavras-chave fortes, como "roubo", "incidente bizarro" ou "conduta violenta", referindo-se ao episódio rocambolesco que envolveu um ex-funcionário do Ministério das Infraestruturas que, independentemente do desfecho do caso, fora, em tempos, elemento da confiança de João Galamba.
Perante tudo isto, este vai-não vai com jeitos de despautério, o Presidente da República ficou com um imbróglio nas mãos e com a autoridade beliscada: Costa não fez o que Marcelo pediu. E, convenhamos, o Presidente não pedia assim tanto, era só uma questão de agir em conformidade com o que manda o bom-senso, defendendo a imagem pública do Governo e protegendo-a de mal-entendidos, más-línguas e outros malefícios que pudessem contribuir para o abalar de uma estrutura que, olhado para os últimos cinco meses, parece tudo menos sólida (e António Costa bem pode clamar "habituem-se", fiando-se nos 4 anos de um mandato que foi legitimado pelos resultados nas urnas, mas que vai desbaratando a legitimidade a cada escândalo e a cada caso com que vai construindo a sua história).
Terá Marcelo Rebelo de Sousa, na ressaca da surpreendente comunicação de António Costa ao povo, equacionado a dissolução do Parlamento e a consequente queda do XXIII Governo Constitucional? Não é improvável que a ideia lhe tenha cruzado os pensamentos perante o dislate do primeiro-ministro, e ainda menos improvável se torna quando sabemos, porque o próprio Presidente o afirmou, que foi impossível "acertar agulhas" (a expressão é de Rebelo de Sousa) com o primeiro-ministro. Como quem diz, "o indivíduo não fez aquilo que eu mandei", Marcelo deu um valente puxão de orelhas a Costa e deixou ainda a garantia de que vai estar mais atento e interventivo. O que é que isso significa em termos práticos é uma incógnita, mas diante destas palavras e expressões imagino de imediato um daqueles árbitros de baseball a gritar "strike one" - mais dois falhanços e é posto fora. No caso de Costa e do seu Governo, nem é líquido que o "strike" seja o primeiro, pelo que a contagem parece apertada para o primeiro-ministro.
Logicamente, demitir um primeiro-ministro não é decisão que se tome de ânimo leve, muito menos nesta conjuntura, tanto nacional como internacional, e ainda tendo em conta todos os riscos políticos de umas eleições antecipadas e, obviamente - e o Presidente da República tem construído e preservado uma imagem de homem justo e sério -, a própria legitimidade do Governo, que conseguiu uma inequívoca maioria absoluta ainda há pouco mais de um ano. Claro que as consequências de uma decisão dessas num momento destes poderiam ser devastadoras para o País.
É nestes momentos difíceis que devemos socorrer-nos da história para avaliar os riscos e os potenciais danos de uma decisão radical desta envergadura. E isto lembra-me uma história: estávamos no início do verão de 2004 quando o Presidente Jorge Sampaio falou aos portugueses. O primeiro-ministro, José Manuel Durão Barroso, apresentara a demissão para poder assumir o cargo de presidente da Comissão Europeia. A proposta de Durão Barroso a Sampaio era arrojada: a Assembleia da República mantinha a composição e a coligação PSD-CDS/PP formaria novo governo - um governo liderado por Pedro Santana Lopes. Sampaio hesitou, mas não usou o "mais drástico e relevante dos poderes presidenciais", nas palavras do próprio, que assim descreveu a possibilidade de dissolver a Assembleia da República no prefácio ao livro Portugueses VI. Temeroso, o Presidente aceitou, apesar das visíveis reticências - a imagem de um Sampaio receoso e contrariado na cerimónia de tomada de posse de Santana Lopes é incontornável. Aceitou e arrependeu-se pouco depois. Quatro meses e meio mais tarde, para ser mais preciso. O XVI Governo Constitucional tomara posse a 17 de julho de 2004 e o primeiro-ministro, Pedro Santa Lopes, anunciava aos jornalistas a 30 de novembro do mesmo ano a intenção do Presidente de dissolver a Assembleia - o Governo manter-se-ia em funções até 12 de março. Ou seja, o tempo que se perdeu neste impasse governativo ajudou a agravar ainda mais uma crise - política e não só - que, sendo previsível com a dissolução do parlamento, podia ter sido menos grave caso o Presidente tivesse usado o mais drástico poder presidencial.
Curiosamente, essa foi a segunda ocasião em que Sampaio dissolveu o Parlamento. Já o Governo anterior caíra por demissão do primeiro-ministro, então António Guterres, que enquanto secretário-geral do PS não digeriu bem uma pesada derrota nas eleições autárquicas de 2002. Para evitar "um pântano político" - as palavras são do próprio -, Guterres apresentou a Sampaio a demissão. O Presidente, num gesto que aparentemente não fez escola entre os socialistas, aceitou a demissão e considerou que não havia condições - maioria relativa na Assembleia - para o PS continuar a governar e convocou novas eleições.
E é neste ponto que estamos da longa e agitada novela que tem sido este Governo liderado por António Costa. Escudado numa maioria absoluta parlamentar que o legitima, o primeiro-ministro parece sentir-se imune a tudo o que o rodeia e até aos poderes alheios. Mas Costa devia também olhar para a história e para aquela breve definição de Jorge Sampaio do que é essa espécie de kryptonite política que Marcelo Rebelo de Sousa tem guardada em Belém. É que essa também é absolutamente legítima.