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Isto Lembra-me Uma História: O congresso do PS e uma moção muito especial

Não Troquem os Nossos Bebés, uma ONG fundada por um ex-deputado municipal do PS, levou a debate no XXIV congresso nacional do partido um tema de que talvez ninguém estivesse à espera.

Foto: Getty Images
08 de janeiro de 2024 | Diogo Xavier
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Lê-se no ponto 1 da lista de deliberações que se pretende "posicionar o PS, de forma clara e inequívoca, contra a troca de bebés em Portugal" e fica a pairar no ar a dúvida: será que o Partido Socialista nunca se posicionou contra a troca de bebés em Portugal? É possível, realmente, que nunca o tenha feito de forma clara e inequívoca. E agora ficamos a pensar no que levará alguém no seio do PS, de dentro do partido, a solicitar a todo o grupo uma clarificação nesta matéria que vá para lá de todas as dúvidas. E depois lê-se no ponto 2 da mesma lista que se pretende deliberar a favor da expressão junto do Presidente da República do "descontentamento por esta prática ser realizada em Portugal". As dúvidas não param de surgir, o clima de mistério e suspeição adensa-se. De repente, fica revolto um mar de questões inquietantes acerca deste novo e obscuro universo sugerido. Um universo onde os bebés portugueses são sistemática e programadamente trocados - mais: um universo onde isso acontece e o Partido Socialista não tem uma posição clara e inequívoca em matéria de oposição ao extraordinário fenómeno. Em suma, um universo paralelo.

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Foram 45 as moções sectoriais levadas ao púlpito no decorrer do XXIV Congresso Nacional do PS, um encontro político da máxima importância durante o qual Pedro Nuno Santos, o novo líder do partido, teve a sua consagração no meio de discursos agregadores - entre os quais e acima de todos, o do próprio -, de apelos à união, de anúncios de esperança, de palavras de motivação, de incentivos à fé no futuro e na nova liderança, e de promessas que, pese embora o irrealismo de algumas - é consultar a lista populista de inspiração onírica dirigida ao futuro do Sistema Nacional de Saúde -, não incluiu a promessa de vitória nas eleições legislativas de março próximo. Daqui se infere que Pedro Nuno Santos, secretário-geral do PS agora de pleno direito, é um sonhador, mas que sonha tendo cautelas: propaganda sim, mas com juízo, que a obra deixada por António Costa, bem como o cadastro do Governo que se extingue daqui a dois meses, não é propriamente brilhante nem inspirador.

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Divago, que estávamos a falar das moções. Além daquelas 45, houve outras cinco, sendo que essas eram Moções Políticas de Orientação Nacional, e entre elas encontramos a do próprio novo líder socialista, muito inclusiva e expansivamente intitulada Portugal Inteiro. E, não há como negá-lo, o nome é sugestivo, uma pessoa lê-o e imagina um país todo, de ponta a ponta, com toda a gente dentro, e, com otimismo e alguma iluminação, ainda consegue incluir a diáspora portuguesa; e, havendo uma costela patriótica, daquelas que sentem saudades de um passado glorioso que nos era contado na escola, até podemos juntar aqui as novas nações lusófonas - novas, como quem diz, enfim.

Estas moções de orientação nacional tinham, verdade seja dita, todas elas nomes muitíssimo sugestivos: Por todos. Para todos, por José Luís Carneiro, e Democracia Plena, segundo Daniel Adrião, completavam o tríptico que se inaugurava com a mencionada Portugal Inteiro, de Pedro Nuno. Do lado feminino, e para sublinhar a nota aglutinadora carregando na igualdade, subiram ao palanque Elza Pais, com Futuro é Igualdade, e Teresa Fragoso, com Igualdade Agora. Pais e Fragoso terão, entretanto, de acertar agulhas quanto ao timing ideal da igualdade, mas quer seja agora, quer seja no futuro, é inegável que estão de acordo em relação à importância do assunto. Aproveitando, e numa nota meramente pessoal, gostava de manifestar a minha estranheza em relação à ausência de menções à sustentabilidade. Nem parece que estamos em 2023. Perdão, 2024 - ainda não me habituei.

Na extensa lista das moções sectoriais, encontramos uma imensidão de temas verdadeiramente prementes e reais que preocupam - e bem - os militantes do Partido Socialista que decidiram usar o congresso para manifestar as suas ideias quanto a cada um deles. Da habitação e o alojamento local à cibersegurança, dos Direitos Humanos ao Ensino Superior, dos CTT (tema sensível para certos militantes, é favor prestar atenção) à privatização da segurança pública, passando ainda pelas infraestruturas na Área Metropolitana de Lisboa, pela violação como crime público ou pela IVG e a saúde reprodutiva das mulheres, encontramos temas que são meritórios e pertinentes. A lista continua e a relevância dos assuntos levados ao palanque é absolutamente indiscutível, são assuntos fundamentais numa política contemporânea que se quer séria. E é no meio destes assuntos, e ainda entre as declarações de união e os apelos à igualdade, que surge, surpreendente e insólita, a moção de Luís Pedro Gonçalves. É possível que alguém tenha mandado imprimir o programa do congresso antes de sequer ler atentamente não só os conteúdos como os próprios títulos das moções propostas, uma vez que um título como Contra a Troca de Bebés em Portugal chama a atenção.

A questão que se põe é: mas de onde é que apareceu esta moção e quem é Luís Pedro Gonçalves? Pois bem, os mais desatentos talvez não saibam, mas esta história não é de agora e só foi apanhado de surpresa quem nunca se preocupou com as teorias de conspiração que tornaram, nos últimos anos, Portugal um país mais moderno e ao ritmo de democracias evoluídas como a dos Estados Unidos da América. É verdade, também nós temos pensadores vocacionados para questionar e, quando questionar não basta, inspirados o suficientes para presumir, com critério e criatividade, proporcionando-nos a todos agradáveis momentos de diversão.

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Para não escavarmos muito, sob pena, caso o fizéssemos, de encontrar, quiçá, esqueletos e defuntos ainda mais complexos, encontramos um artigo de 2019 - já lá vão cinco anos, portanto - do Polígrafo dedicado a este tema e ao mesmo protagonista. Luís Pedro Gonçalves, hoje membro da Assembleia de Freguesia de Amora, no município do Seixal, era, à época, deputado à Assembleia Municipal do Seixal. Não é com enorme espanto que observamos este retrocesso na carreira política do ex-deputado municipal, mas a nota é digna de registo, de qualquer modo. Voltando a 2019, o Polígrafo dedicou a Gonçalves alguma atenção depois de o então deputado municipal ter fundado uma página de Facebook onde constantemente publicava suspeições, mas como se fossem certezas inequívocas, de que certas figuras públicas não eram filhas de outras figuras públicas, como pensava a generalidade dos cidadãos (mas não o atento e perspicaz Luís Pedro Gonçalves, obviamente). Um exemplo da altura que o próprio Polígrafo cita é o de Rita Ferro Rodrigues que a página considera não reunir as condições mínimas de aparência filha para se poder qualificar como filha de Eduardo Ferro Rodrigues.

Os casos e exemplos que a página cita e alega sucedem-se. Uma busca de mais dois segundos permite perceber que publicações como a Visão e o Sol já haviam dedicado algum tempo de antena ao projeto de Luís Pedro Gonçalves em maio de 2018, pouco depois de aquele ter fundado a ONG Não Troquem os Nossos Bebés, que assentava - e, pelos vistos, ainda assenta - a sua atividade e a sua intervenção no pressuposto de que as secretas portuguesas andam, a mando do Estado, a trocar bebés nas maternidades. O propósito dessa prática não é claro na tese da ONG, que parece mais determinada em promover as maldades que as secretas do Estado andam a fazer nos berçários do SNS e que depois resultam, muitos anos mais tarde, em flagrantes inadequações de aspeto entre progenitores e filhos quando fotografados em ambientes sociais.

Todo o princípio destas crenças, toda a tese que as sustenta, todas as alegações são merecedoras dos nossos mais sorridentes olhares de descrédito, mas o topete de considerar a matéria digna da maior importância ao ponto de a tornar moção e de a levar ao congresso do maior partido nacional - tudo isto a dois meses de umas eleições legislativas importantíssimas e no fim de semana em que o PSD apresenta a sua aliança para concorrer a essas mesmas eleições, e num momento particularmente difícil da vida política, social e económica de Portugal - é decididamente um passo em frente rumo a um novo patamar da falta de noção da realidade. E, nem que seja só por isso, Luís Pedro Gonçalves merece, se não o nosso aplauso, pelo menos o nosso agradecimento por este momento especial.

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