Acredito que a tradição se mantenha assim já desde o tempo em que os anos eram Antes de Cristo (embora ninguém o soubesse, então): a cada fim de novo ciclo, faziam-se contas e balanços, por um lado; por outro, organizavam-se as expectativas e as previsões para o ciclo novo que se avizinhava. Especulando, mas se calhar não muito, podemos imaginar com facilidade que no último dia de cada ano de cada calendário - aceitemos que nem toda a humanidade se rege por este que nos situa e orienta - todos os seres humanos são uma espécie de concorrente a Miss Universo: olhando para trás, desejam que para diante haja paz no mundo, o fim da pobreza, sorte e prosperidade para todos e, podendo, um prémio grande no Euromilhões. Não havia esse tipo de lotarias Antes de Cristo, mas não temos como provar que não existiam, por exemplo - um exemplo ao calhas -, sorteios de ovelhas ou fortunas equivalente para a época. Isso agora pouco interessa.
Cada fim de ano tem a particularidade de me lembrar precisamente o fim de ano anterior. Se há coisa constante no ser humano é o seu desejo de mudança; se há inevitabilidades nas mãos da humanidade é a de mudar tudo para que tudo fique igual, para usar tropegamente a frase sagaz de Sérgio Godinho. Começámos 2023 a desejar o fim de uma guerra insidiosa e acabamos o ano a assistir impavidamente a uma nova ofensiva sanguinária, cujos números, quando forem conhecidos no fim da matemática das coisas, ameaçam deixar envergonhados todos os que foram permitindo o escalar e o repetir de operações que não têm justificação, por mais voltas que se dê à situação. Matar inocentes às dezenas e às vezes centenas por dia não é, com certeza, o caminho para se resolver o que quer que seja e se a ideia era vingar um ato inicial completamente desumano e repleto de crueldade, então essa vingança já ultrapassou largamente o que poderia ser aceitável. Para 2024, espera-se que haja bom-senso.
Entrámos em 2023 com uma frase a pairar sobre todos nós. Podia ter sido a frase de um grande líder, tal foi o rasgo, o peso e a confiança de que vinha imbuída. "Habituem-se, que vão ser mais quatro anos", disse António Costa, então primeiro-ministro pleno, chefe maior de uma maioria absoluta muito esperta e obtida quando e como poucos esperavam. Nem 11 meses depois, o mesmo António Costa "obviamente" apresentou a sua demissão ao Presidente da República - um Presidente da República cada vez mais incapaz de comunicar com os portugueses a não ser tirando selfies com eles na rua ou em festas ou noutras ocasiões especiais; um Marcelo Rebelo de Sousa cada vez mais reduzido a "o Marcelo", que é como as pessoas tratam outras pessoas que se comportam constantemente como se estivessem num café a descascar e comer amendoins enquanto comentam, sem um grama de responsabilidade, a atualidade confusa que passa no noticiário da televisão. Mas voltando a António Costa: não só não vão ser mais quatro anos, como dificilmente alguém conseguiria habituar-se - como pretendeu mandar o primeiro-ministro demissionário - à quantidade de escândalos e problemas no seio do seu governo, que se sucediam a uma velocidade surpreendente.
Para 2024, espera-se que os líderes dos dois maiores partidos - pelo menos, por enquanto - saibam dar o exemplo do que é fazer política em Portugal e não se limitem a exercícios eleitoralistas e a bitaites prepotentes. Se a Democracia quiser sobreviver em segurança, é preciso que PS e PSD saibam ser muito mais do que aquilo que o povo vê neles, essa figura horrenda do político estereotipado, o "são todos iguais" que se ouve de todo e qualquer cidadão, o funcionário partidário que, chegado ao momento e à hora de mostrar o que sabe e pode, se limita a exercer o poder em função dos interesses do seu círculo e sem atender às necessidades maiores de um País que definha entre a falta de habitação, uma inflação assustadora, sistemas de saúde e de educação públicas a cair aos pedaços, um País agarrado a uma boia chamada turismo - mas é uma boia que se esvazia, tal como as maiores cidades portuguesas se vão esvaziando sem que haja uma única medida concreta, consistente e com vista ao longo prazo que tenha sido tomada para evitar esse esvaziamento.
Chegamos ao fim de 2023 e os desejos e resoluções do fim de 2022 parecem infantis quando olhamos para o estado do mundo e do País, um ano depois. Entre os picos de alegria estarão certamente umas Jornadas Mundiais da Juventude e certos resultados desportivos, mas tanto uns como outros nunca conseguirão agradar a todos. E, mais grave, esgotam-se em si mesmos, no momento em que ocorrem - ninguém quer hoje saber se este ou aquele foi campeão, da mesma maneira que ninguém quer hoje contar os célebres milhões e milhões que as tais jornadas iam trazer à economia portuguesa (alguém já fez as contas?).
Não há como olhar para 2024 com esperança e entusiasmo renovados, já que o ano que agora termina foi difícil e desgastante, e ainda deixou a nu debilidades e carências de um sistema que cada vez serve menos o cidadão comum. Acredito, mesmo correndo o risco de especular, que hoje o cidadão comum português não partilhe os desejos das concorrentes a Miss Universo e se limite a desejar que 2024 não seja ainda pior. De qualquer modo, seria difícil.
Bom Ano Novo para todos.