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Isto Lembra-me Uma História: Lisboa, it’s not you, it’s us

Por mais que a cidade de Lisboa mereça muitas das críticas e que as suas gentes estejam longe de ser as mais espetaculares no que toca à hospitalidade, há críticas que custam a engolir quando são feitas por alguém que representa precisamente um dos principais grupos causadores do descalabro lisboeta.

Foto: Getty Images
03 de julho de 2023 | Diogo Xavier
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As notícias, durante os últimos dias, foram dando conta de que um cidadão estava desapontado com Lisboa. É notável que a sensibilidade e as expectativas de um só cidadão tenham o extraordinário poder de concentrar em si o foco noticioso quando eu, que vou prestando atenção ao que meio que me rodeia e às pessoas que o habitam, poderia, sem grande margem de erro, alegar que há talvez meio milhão de lisboetas muito desapontados com a cidade onde vivem. E só não são mais porque os restantes dois milhões que usam a cidade ou circulam por Lisboa não são administrativamente lisboetas, uma vez que vivem fora da capital do País.

O cidadão que pôs em causa, com grande estrondo e maior reverberação, as qualidades da cidade mais conhecida e popular do distrito de Lisboa (mais que não seja, por lhe dar o nome) chama-se Pieter Levels. É um nómada digital neerlandês, tem 36 anos e fundou, entre outros projetos digitais de razoável sucesso, uma plataforma chamada Nomad List, que funciona como uma espécie de guia - daqueles ao estilo do Trip Advisor ou do Vivino, por exemplo - com uma componente, de certo modo, de bolsa de valores. De uma maneira muito resumida, a Nomad List ("a" e não "o", porque se trata não só de uma plataforma, como também de uma lista) apresenta, segundo alguns critérios tidos como fundamentais (e que fazem todo o sentido, já agora: da segurança à qualidade da Internet, da simpatia para com visitantes aos níveis perceptíveis de racismo, do custo de vida à rede de transportes e de serviços, entre outros padrões bastante sensatos), uma espécie de top de cidades mais apetecíveis, acessíveis, vantajosas e simpáticas para os nómadas digitais.

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A ideia é, a meu ver, esperta e faz sentido. Porém, acredito que parte de pressupostos razoavelmente distorcidos. Se pensarmos que este top, esta lista, esta bolsa de valores, serve para aconselhar e, à sua maneira, influenciar e atrair pessoas em quantidades assinaláveis para que essas assentem arraiais num determinado sítio e desfrutem da qualidade de vida desse lugar a um custo tão baixo quanto possível, sem levar em conta as necessidades, hábitos e culturas das comunidades autóctones, então estaremos, de algum modo, a apelar à ocupação ostensiva de território alheio a troco de dinheiro que, para uns - para estes -, é fácil de obter, por oposição à dificuldade que os habitantes locais têm em rentabilizar as próprias vidas com os seus modos de subsistência, digamos, tradicionais. 

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Não sou sociólogo e percebo pouco de economia - muito menos da economia local, de que tanto se fala -, mas sei que se me aumentarem mensalmente o preço dos cafés e dos bitoques, me substituírem os estabelecimentos onde se comem bitoques por tabernas pós-modernas e caras onde se comem bowls de arroz com salmão e se me obrigarem a pedir espressos em vez de bicas e americanos em vez de abatanados, tudo por causa dos novos habitantes endinheirados que vêm dos países civilizados com um poder de compra substancialmente superior ao meu, então se calhar eu não vou simpatizar lá muito com esses nómadas, peço desculpa - por mais digitais que eles sejam.

O sedentarismo, não sei se o Pieter Levels sabe, foi uma grande conquista civilizacional. Permitiu-nos desenvolver uma série de valências humanas, das ciências exatas à linguagem, da medicina à organização dos estados, e com diferentes modos para o fazer. Este nomadismo pós-moderno talvez seja muito giro na ótica do utilizador, mas para os povos e territórios explorados, não me parece grande coisa nem ter particular retorno, à exceção de uma curta minoria que vai, enquanto pode, explorando os pobres nómadas, tão ingénuos e carenciados, cobrando-lhes o couro e o cabelo por tudo quanto fazem e por cada metro quadrado que habitam.

Talvez Pieter Levels não se tenha apercebido disto, ou talvez ele seja simplesmente um grande hipócrita, mas é preciso que alguém lhe diga que uma grande parte da culpa do estado a que a cidade de Lisboa chegou - nomeadamente a nível de custo de vida, mas não só (e não, não é por sermos comunistas e xenófobos, como ele alega, é mesmo porque o dano infligido pela vaga de nómadas digitais ao modo de vida da cidade é extraordinariamente pesado) - é dele e de muitos dos seus fiéis seguidores.

(Nota à parte quanto à fidelidade dos seguidores: após uma ligeira quebra no mercado bolsista Nomad List, Lisboa recuperou facilmente o 3.º lugar do ranking - e digo-o com um misto de alegria orgulhosa e vingativa e de pena profunda, porque o ideal era mesmo que a capital portuguesa se tornasse menos popular para esses nómadas e ganhasse mais popularidade entre aqueles que aqui querem fazer vida.)

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Foto: Getty Images

Essas pessoas vinham de laptop para uma cidade normal e cheia de charme e, de repente e também por culpa deles, essa cidade transformou-se numa laptop city, numa Disneyland para bêbados montados em trotinetas, uma Las Vegas dos pobres onde as pessoas que não se sabem vestir vêm fazer despedidas de solteiro, tudo em tuk tuks furiosos conduzidos por historiadores-expresso, que sobre a cidade contam o que ouviram dizer e acrescentam de imaginação os detalhes em falta. E não se confunda expresso com espresso: o primeiro é feito com rapidez, eficácia e sem interrupções; o segundo, como já se viu, é o novo nome da bica e também o único aceitável na maioria dos estabelecimentos, onde hoje somos recebidos por um caloroso e cosmopolita "yes, please?", em vez do fatigado e provinciano "ora, então diga lá, faxavor". Já nem falo do tempo em que nos perguntavam se era "o costume". Já ninguém tem costumes neste cenário vazio de gente e de hábitos, nesta cidade-fachada que se torna cada dia mais patética e insuportável.

E isto lembra-me uma história, lembra-me várias histórias. Lembra-me demasiadas histórias: as histórias de Barcelona, de Berlim e de Copenhaga, num passado recente. Lembra-me até histórias do futuro, de Budapeste, de Varsóvia  e de Zagreb, muito em breve. Os nómadas digitais, que até podiam trazer muito de bom às comunidades se não se organizassem em bandos que destroem um sítio de cada vez numa meia-dúzia de anos, são uma praga como aqueles gafanhotos que vêm do Sahara e dão cabo de tudo. E depois voam para outro sítio, que hão de destruir também numa questão de dois ou três anos. E, uma vez mais, hão de queixar-se que as cidades ficam caras, que as pessoas não os recebem bem e que as trotinetas não chegam para todos. A culpa será sempre dos outros, dos que lá estão e ajudaram e ajudam a construir e a manter dinâmicos os lugares que eles invadem. Os nómadas digitais deviam encontrar um acampamento num lugar remoto - mas com eletricidade e wi-fi, claro - onde pudessem, com o tempo, descobrir também eles as maravilhas do sedentarismo. Se os homens primitivos, que nem o fogo dominavam, conseguiram fazê-lo, por certo que eles, que até dispõem do Google, também hão de conseguir. Boa sorte e boa viagem, amigos.

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