"DRIVE CAREFULLY ME." A frase curta, inscrita na tampa de uma caixa de relógio, é sobejamente conhecida pelos apreciadores da alta relojoaria, e principalmente por aqueles que se deixam fascinar pela mitologia das coisas, dos objetos e dos seus proprietários. Alguns relógios têm histórias fabulosas. Este é um deles. A frase é uma dedicatória da atriz Joanne Woodward para o marido, o ator Paul Newman. O relógio é um Rolex Daytona e será, certamente, uma das peças mais célebres de sempre da relojoaria.
Newman era um grande fã de automóveis e de velocidade. Era também, além do famosíssimo e premiado ator que conhecemos, um piloto de automóveis amador. Woodward, que não contrariava o marido nestas suas paixões, era, no entanto, zelosa pela segurança de Paul. Foram vários os presentes que ofereceu a Paul Newman ao longo do seu duradouro e feliz casamento - foi o seu único cônjuge, coisa rara numa atriz e num ator vindos dos anos dourados de Hollywood: casaram-se em 1958 e o matrimónio só foi desfeito da mais proverbial de todas as maneiras, quando a morte de Newman os separou 50 anos mais tarde, em 2008.
Joanne Woodward - que na inscrição assina simplesmente ME - ofereceu o célebre Rolex Daytona a Paul Newman em 1968, mas a peça relojoeira tornou-se particularmente famosa no princípio da década de 1980 por dois motivos. Primeiro, porque Newman era sempre visto com o relógio no pulso, usava-o em praticamente todas as circunstâncias e eventos. Depois porque, em 1984, o Daytona desapareceu misteriosamente. Afinal, veio mais tarde a saber-se, não houve lá grande mistério neste desaparecimento. Em 1984, Paul Newman decidiu oferecê-lo ao então namorado da sua filha Nell, James Cox. James e Nell vieram a separar-se tempos depois, ainda antes de se saber a história do relógio, o que adensou o mistério em torno deste. Mas James Cox sabia que o presente seria valioso e decidiu mandar avaliá-lo junto de especialistas, o que acabou por revelar a história do Daytona de Paul Newman: esteve sempre em família - ou perto dela.
Em 1984 o relógio, já com história mais ainda sem mistério, estava avaliado em cerca de 200 dólares, o que não será, hoje, equivalente a mais de 700 euros. Uma pechincha, tendo em conta o preço destes relógios hoje em dia. No entanto, quando foi vendido em leilão, a 25 de outubro de 2017, o Rolex Daytona de Paul Newman atingiu os 17,75 milhões de dólares - sensivelmente 16 milhões e meio de euros. Lá se foi a pechincha. Para que não fiquemos com a ideia errada acerca de James Fox, há que acrescentar que a maior parte deste valor foi doado à fundação filantrópica de Nell Newman. Hoje em dia, a Rolex tem uma linha Daytona chamada Paul Newman. O relógio do ator era muito característico, com um mostrador considerado exótico, inspirado na estética Arte Déco.
Outro relógio celebremente perdido em combate foi o Rolex GMT Master de Marlon Brando. Não é apenas o modelo em si que é especial, e nem sequer o facto de ter pertencido ao lendário ator é o mais relevante nesta história. Atente-se no seguinte: Brando usou o seu relógio para adornar a personagem de Coronel Kurtz que genialmente interpretou em Apocalypse Now, de Francis Ford Coppola, em 1979. E para que não restassem quaisquer dúvidas de que o relógio era dele e só dele, Brando, o próprio, com as mãos e uma ferramenta imprecisa, gravou na caixa do GMT Master "M. Brando", da maneira mais tosca e infantil que se consiga imaginar.
Obviamente, o relógio tornou-se mítico. Porém, pelos meados dos anos 90, o GMT Master desapareceu. Nunca mais foi visto. Mais um mistério da relojoaria. O que teria acontecido a uma peça com tanta história e tanto carisma, assinada pelo próprio Marlon Brando?
É neste ponto que o leilão do Daytona de Paul Newman desempenha um papel fundamental: arrematado por 17 milhões e meio de euros, despertou a atenção de outros colecionadores de peças raras da relojoaria e conseguiu, em particular, acionar os radares e alarmes de proprietários de peças com história. Uma dessas proprietárias era Petra Brando Fischer, a filha adotiva de Marlon Brando. O Rolex GMT Master do pai não estava com Petra, mas foi a ela que o ator ofereceu o relógio em 1995. Entretanto, em 2003, Petra deu de presente o relógio ao marido, que decidiu guardá-lo como joia de família e nunca o terá usado. Depois das notícias do leilão do famoso Daytona, e dos valores envolvidos na compra deste, Petra Brando Fischer decidiu levar a leilão o relógio que o pai lhe oferecera. Com o gesto, permitiu que o mundo soubesse que o GMT Master com "M. Brando" gravado não estava perdido e que a sua história seria, até, simples e serena. O Rolex de Brando acabaria por ser vendido por quase dois milhões de dólares em leilão.
Lembro-me das histórias destes dois relógios icónicos, o de Newman e de Brando, cujas lendas foram adensadas pelo misterioso desaparecimento e coroadas com o reaparecimento de ambos, a propósito da história de um outro, que foi notícia nos últimos dias: a do Patek Phillipe de John Lennon. O modelo, um 2449 Perpetual Calendar Chronograph - uma peça incrivelmente complexa de alta relojoaria -, foi oferecido ao ex-Beatle pela mulher, a incontornável Yoko Ono, pelo 40.º aniversário do músico de Liverpool. Há uma foto conhecida de John Lennon vestido de ganga, com uma estranha gravata de lã e o Patek Phillipe a espreitar pela manga cujo botão de punho está desapertado.
John Lennon fez 40 anos a 9 de outubro de 1980 e foi assassinado nem dois meses mais tarde, a 8 de dezembro do mesmo ano. O relógio não foi visto desde esse dia e tornou-se um dos maiores mistérios das histórias da relojoaria, até pelo valor do próprio objeto, independentemente da sua história - o preço, hoje, rondará os 150 mil euros fora de leilão, no mercado de segunda mão. O que aconteceu ao relógio durante estes mais de 40 anos ainda não é claro. Há suspeitas de que o então motorista de Yoko Ono se tenha apropriado indevidamente da peça quando o músico morreu. Esta versão não é, contudo, confirmada oficialmente.
O que aconteceu depois de o relógio ter desaparecido é, assim, um nebuloso enigma com o qual mais não podemos fazer, a não ser especular. Como a especulação não é da nossa jurisdição, limitamo-nos a reportar factos: o Patek Phillipe 2449 de John Lennon desapareceu em 1980 quando o músico foi assassinado, dois meses depois de lhe ter sido oferecido pela mulher, Yoko Ono; em setembro de 2023, 42 anos e 10 meses mais tarde, o relógio apareceu na Suíça, em Genebra, na posse dos advogados de um colecionador italiano. Aparentemente, o relógio já tinha sido adquirido pelo colecionador há algum tempo - tanto tempo que a própria Yoko Ono, informada da compra, recorreu para os tribunais suíços reclamando ser a legítima proprietária da peça. Os tribunais deram razão à viúva de John Lennon e o colecionador, que poderá ter pagado pelo Patek Phillipe uma generosa fortuna, contestou a decisão e recorreu desta. O presente de aniversário de Ono para Lennon é, assim, um imbróglio jurídico, por um lado, e potencialmente o relógio mais caro de sempre, por outro.
As boas notícias são que ele existe e está bem, funciona e encontra-se condignamente preservado. Ao contrário de outros, como o Omega Speedmaster que o astronauta Buzz Aldrin levou à Lua e que ninguém sabe onde está - e que será, a par do Patek de Lennon, o objeto mais cobiçado de sempre do mundo da relojoaria. Mas essa já é outra história.