O tempo passa, mas a minha memória segura certas imagens com a firmeza de um gato que se agarra a um rolo de papel. Lembro-me bem de ver nos noticiários da televisão um pequeno grupo de pessoas muito exaltadas à frente de um edifício junto à Avenida da República, em Lisboa. Concentradas diante da sede do BPP - Banco Popular Português, protestavam contra esse banco pela perda das suas poupanças que, se bem me lembro, tinham sido estoiradas em investimentos de risco que deram para o torto.
Aparentemente, a expressão "investimento de risco" não era suficientemente esclarecedora para intimidar aqueles investidores. Aliás, ninguém parece ter estranhado, na altura, que os seus depósitos fossem compensados com taxas de juro estratosféricas quando comparadas com os dividendos que os demais cidadãos obtinham com os depósitos convencionais. Enfim, adiante, que eu não quero fazer parecer que os bancos, em geral, e este BPP, em particular, foram inocentes na grande crise após o colapso de 2008. Não só não foram inocentes como há até casos documentados em que ativos tóxicos foram impingidos a cidadãos comuns, mas isso é todo um outro tema.
Queria chegar a este ponto: entre esse grupo de pessoas exaltadas depois de lhes terem sido subitamente subtraídas as poupanças de uma vida, estava uma figura que era então razoavelmente conhecida: o treinador de futebol Jorge Jesus. Ainda longe de ser o protagonista mediático em que viria a tornar-se um ou dois anos mais tarde, depois de ir treinar o Benfica e até aos dias de hoje, Jorge Jesus era já carismático o suficiente para, apesar de treinar equipas menos famosas e poderosos, como o Belenenses ou o Sporting de Braga, ser reconhecido pela maioria dos portugueses. E lá estava ele, no meio daquelas pessoas, inconformado com o empobrecimento repentino.
Há uns dias, o mesmo Jorge Jesus foi entrevistado à chegada ao aeroporto de Lisboa, se não me engano. Com os microfones apontados para si, Jesus queixou-se do País, deste Portugal que já não é o seu Portugal: cheio de gente que vem de fora, enfim, um ninho de desespero e de insegurança, um lugar caótico, presumivelmente distante, muito distante a nível civilizacional, do paraíso progressista que é a Arábia Saudita, onde Jesus treina a equipa de futebol do Al-Hilal.
E o que me causa estranheza é o seguinte: roubado pelos banqueiros em 2008, Jorge Jesus queixa-se agora, em 2024, da insegurança no País. Hoje, que vive e trabalha, emigrado, ganhando por mês uma quantidade tão obscena de dinheiro que decerto aquelas poupanças que depositou nas mãos do falecido João Rendeiro lhe hão de parecer trocos, ninharias. Jorge Jesus, que vem da Amadora, o mesmo Jorge Jesus que partilhou ruas e praças, bairros e cafés com gente vinda de toda a parte e especialmente dos países africanos que já foram, em tempos que muitos recordam com saudade, províncias ultramarinas do império português. Ou seja, quando pessoas de bem, brancas, formadas e engravatadas lhe deram cabo das poupanças ficou aborrecido, mas entretanto parece ter esquecido; agora que, apesar de rico e emigrado, chega cá e se depara com gente vinda de outros sítios, desconfia, não reconhece o País, sente-se inseguro, receia que lhe vão ao bolso.
Por mais que tente, não consigo compreender Jorge Jesus. Porém, aparentemente há muitos portugueses que não só o compreendem como até lhe corroboram as alegações: Portugal foi transformado em inferno por causa dos imigrantes. É uma tese que parece ter pegado. Num País feito em cacos, com crises que vão da habitação à saúde e da justiça à educação, onde caem dois em cada três governos, os discursos populistas e incendiários têm pegado no combustível que é a insatisfação das pessoas para lhes chegar o fogo que é uma explicação básica e simples, ainda que mentirosa, para fazer crescer a fogueira. Alguma coisa está mal, pelo que em princípio a culpa é dos outros, que vêm de fora, têm uma religião diferente e um tom de pele mais escuro.
A menos de dois meses das próximas eleições, a repetição dos discursos e das explicações fáceis (ainda que mentirosas) acerca dos problemas do povo e da Nação aumenta de dia para dia: nas televisões, nos cafés, nas redes sociais, a onda de gente sintonizada com a lógica rudimentar de André Ventura ganha dimensões assustadoras. E só os mais desatentos poderão considerar surpreendente se o Chega conseguir ser o partido mais votado nas próximas legislativas - não é exagero, é mesmo um cenário que tem tudo para acontecer (e até Pedro Nuno Santos, líder do PS, parece já ter percebido que se trata de um perigo absolutamente real, tão real que se dirige mais vezes ao partido de André Ventura do que aos supostos rivais políticos da AD).
Neste contexto e diante deste cenário, somos obrigados a concluir que Jorge Jesus acaba por ser o português-tipo, o Zé Povinho, o alter-ego da Nação. Só que o Zé Povinho já não é aquele bêbado maltrapilho que protesta sem sentido. O novo Zé Povinho é um novo-rico que, protestando na mesma sem sentido, agora grita obscenidades não contra os ricos que o exploram ou que o roubam, mas antes contra os pobres que lhe levam a comida a casa e o transportam nos TVDE. Do que é que Jorge Jesus se queixa, mesmo? Mais: do que é que os nossos ricos se queixam? E do que é que o português de classe média se queixa?
São estas as pessoas que, sentadas confortavelmente diante do smartphone e do tablet, alimentam uma bola de neve que pode vir a ter consequências trágicas no próximo dia 3 de fevereiro, quando extremistas altamente motivados por um ódio que é o remédio fácil para explicar realidades que são muito mais complexas marcharem pelo Martim Moniz contra uma suposta "islamização de Portugal". (Curiosidade: será que Jorge Jesus, que é pago por um sistema islâmico, vai participar na marcha contra a islamização?)
Uma pessoa lê, ouve e nem acredita. Mesmo com a alegoria de Jorge Jesus a ser depenado pelo sistema bancário, o próprio Jorge Jesus entende que o perigo e o roubo não vem dos que andam de bicicleta com caixas amarelas às costas. Mas percebe-se que seja muito mais fácil e menos trabalhoso atacar os mais fracos do que tentar entender de onde surgem verdadeiramente os problemas. Os sinais estão aí, estão aí os sintomas e as previsões. Quando o mal estiver feito, não venham dizer que não sabiam do que se tratava. Toda a gente sabe.