Foi há já muito tempo, há 20 anos talvez, mas lembro-me perfeitamente dessa matiné de domingo. Um amigo meu, que é ator e que fazia o desenho de luz de certos espetáculos no Teatro da Comuna, convidou-me para assistir a uma dessas peças em que ele operava justamente com os holofotes e a iluminação colorida do cenário. "É uma peça que não podes perder", disse-me e insistiu, acabando por me convencer a abdicar de um domingo à tarde para me fechar num auditório com menos de metade da plateia preenchida, para assistir a uma encenação que incluía muito betão e personagens à margem daquilo a que chamamos normalidade.
A peça era a Categoria 3.1, a partir do texto original do sueco Lars Noren. O autor, cuja obra, do pouco que conheço, costumava incidir sobre os dramas familiares e as dinâmicas interrelacionais no seio de pequenos grupos de grande proximidade, como os casais românticos; por exemplo, no final dos anos de 1990 decidiu olhar para a cidade de Estocolmo com apurado sentido crítico, muitas questões angustiantes e perturbadoras e, no fundo, segundo a minha leitura, com um dedo profundamente acusador ao poder político, por um lado, e à própria sociedade que vive uma vida normal, por outro.
Porquê? Porque a Categoria 3.1 que dá título ao texto é a designação dada pelo sistema, pelo município de Estocolmo àqueles que são marginais. Ao longo da peça, esses marginais assumem vários perfis-tipo que habitualmente compõem as comunidades de sem-abrigo, dos toxicodependentes às prostitutas, dos doentes mentais aos desempregados sistémicos, passando pelos incontornáveis alcoólicos. A doença mental acaba por se apoderar de praticamente todos estes indivíduos, por uma ou por outra razão, reforçando o seu estatuto de indigente, de apêndice social, de cidadão dispensado.
Em Categoria 3.1, os conflitos pela conquista e ocupação de cada centímetro quadrado de betão são enriquecidos com diálogos criativos, às vezes filosóficos, outras vezes pujantemente dramáticos, outras ainda com discursos hilariantes. Está lá tudo. Mas o que também lá está, sempre, do primeiro ao último segundo da peça, é que a categoria que a cidade de Estocolmo usa para diferenciar os seus marginais serve para os agrupar numa espécie de zoológico de betão onde, com liberdade delimitada pelas fronteiras desse espaço, eles podem circular e interagir sem causarem dano à comunidade envolvente nem prejudicarem a imagem impoluta, sofisticada e civilizada da capital sueca. Ou alguma vez ouviram alguém chegar de Estocolmo e dizer "bolas, são muito ricos, mas também têm muitos sem-abrigo"? Eu nunca ouvi. Acredito mesmo que, se não me tivesse dedicado nesse domingo a ver uma peça de teatro na histórica sala lisboeta, ainda hoje acharia que na Suécia, em geral, e em Estocolmo, em particular, não há nem havia sem-abrigo.
Lembro-me de ter pensado, no fim do espetáculo, "que horror, são tão civilizados mas escondem os seus pobres, os seus miseráveis, como se os varressem para debaixo de um tapete tornando-os invisíveis para quem olha de fora". Comentei isso mesmo com esse amigo que me convidou para assistir, e ele concordou comigo, acrescentando que "era por isso mesmo" que queria que eu visse a peça. Portugal, e Lisboa, em particular, com todos os problemas que tinha no princípio deste século, possuía certos contornos que hoje, olhando à distância, me parecem nobres. Por exemplo, os sem-abrigo existiam, estavam lá, nos seus sítios, nas suas ruas, interagiam com os demais, não eram arrebanhados atrás de uma cerca e afastados da circulação para, parafraseando Chico Buarque, não atrapalhar o trânsito.
Seria impossível eu não recordar Categoria 3.1 e o profundo desconforto que senti perante essa peça de teatro de Lars Noren quando, há uns dias, a Câmara de Lisboa, em conjunto com a Freguesia de Arroios, realizaram um trabalho de limpeza urbana em certas zonas da Avenida Almirante Reis, de onde retiraram pessoas em situação de sem-abrigo que ali acampavam, debaixo das suas amplas arcadas. Obviamente, a retirada daqueles pessoas desses lugares, sendo parte de um processo consequente com vista à reintegração, deve ser aplaudida e elogiada. Porém, é quase impossível dissociar esta operação de limpeza das Jornadas e da vinda do Papa daqui a pouco mais de uma semana, o que lhe dá o anti-charme de uma manobra de cosmética social barata e fácil em que temos pessoas tratadas como lixo.
Embora câmara e junta responsáveis pelo processo jurem apropriadamente por Deus que se trata de uma operação regular, ninguém consegue ignorar os pontos coincidentes entre esta lavagem de cara à Almirante Reis e a intervenção de recuperação e restauro da escultura fálica de Cutileiro no Parque Eduardo VII, também muito apropriadamente coincidente com a visita do papa Francisco e de milhões de jovens cristãos à capital do País. A diferença é que, se no caso do monumento marmóreo à Revolução do 25 de Abril o caso podia ser encarado com um sorriso, por ser quase ingénuo, quase uma infantilidade, aqui, no caso dos sem-abrigo, é da vida de pessoas que se trata. E não nos enganemos: como tão bem é demonstrado em Categoria 3.1, nenhum de nós está assim tão distante do estado e do infortúnio daquelas pessoas - às vezes, basta um percalço, um azar, uma má decisão.
Acredito que lidamos muito mal com a pobreza. Não com a pobreza ligeira, aquela do dinheiro contado e da vida difícil, mas com este tipo de pobreza, a que deixa as pessoas diante do abismo, sobreviver ou morrer, precisar de esmolas, de caridade, de uma tenda ou de uma arcada de um prédio onde se possa estender um saco-cama velho e coçado sobre uma caixa de cartão. À medida que a sociedade ganha, como um todo, robustez, parece que vai perdendo a capacidade empática, o espírito solidário de que a biologia nos dotou para que sejamos capazes de nos pormos no lugar do outro, para o compreender e agir em relação a ele em conformidade com a sua - e a nossa - circunstância e, acima de tudo, em consciência.
Agora que temos em Portugal uma classe média vasta e aparentemente resistente, sólida, parece que nos envergonhamos daqueles que, por um ou por outro motivo, ficaram para trás, ficaram aquém, ficaram de fora. Resta saber se essa vergonha é em relação aos que caíram na marginalidade por via da pobreza, ou se é antes em relação a nós mesmos, que construímos uma fachada muito bonita de país burguês, mas que é em simultâneo um sistema onde não cabem todos e que vai excluindo cada vez mais. Para já, fica a ideia de que, quem nos visitar pelas Jornadas Mundiais da Juventude, levará daqui a mesma imagem que traz quem visita Estocolmo: somos tão sofisticados que não temos sem-abrigo.