Conflito número um. Operação Militar Especial na Ucrânia: foi com este nome suavizante que o governo de Vladimir Putin designou oficialmente aquilo que a generalidade do mundo conhece como "a invasão da Ucrânia pela Rússia". A "operação militar especial" de Putin teve oficialmente início a 24 de fevereiro de 2022, mas é, na prática, uma espécie de culminar anunciado de um conflito que já se desenrolava em território ucraniano desde 2014. Na época em que as tensões começaram, estavam envolvidas as forças russas, as ucranianas e ainda grupos paramilitares pró-russos em território ucraniano. As regiões disputadas eram Donbass e a península da Crimeia, que a Rússia reclamava como território seu desde o início da contenda, que então se fazia em lume brando.
A invasão de fevereiro de 2022 veio só tornar explícita a guerra e deixar às claras as pretensões invasoras da Rússia. Pelo meio, a NATO fez ameaças e exigências, a China posicionou-se, sem se comprometer e os Estados Unidos da América pretendem fazer aquela figura do durão que, diante duma luta de rua, exclama "parem imediatamente com isso, senão…", mas a quem ninguém liga nenhuma - e depois, no fim, diz "bom… vamos lá ver".
Enquanto isso, o armamento continuou e, como não podia deixar de ser, o ex-presidente americano Donald Trump veio regar a fogueira - com gasolina. "A Rússia que lhes faça o que lhe der na real gana", disse o antigo e possivelmente futuro presidente dos Estados Unidos da América durante um comício na Carolina do Sul. Trump referia-se a uma suposta pergunta de um alegado presidente de um grande país europeu não identificado, que lhe terá perguntado informalmente se a América defenderia esse tal em caso de uma invasão russa. "Se não pagarem, claro que não", terá respondido Trump, segundo o próprio. Para Trump, quem não investe em defesa, não merece proteção. Por ele, "Putin até podia usar bombas". Neste ponto, Trump referia-se ao armamento nuclear. Vladimir Putin, por seu turno, afirmou publicamente que, caso os Estados Unidos - e independentemente da administração vigente - decidissem usar armas nucleares, não hesitaria um segundo em carregar nos célebres botões vermelhos. Para o bem de todos, esperemos que tudo não passe das ameaças.
Conflito número dois. Há quem lhe chame guerra, há quem acredite que se trata de pura retaliação e há até uma fatia substancial de cidadãos do mundo que suspeitam de que se trata pura e simplesmente de homicídio: a 7 de outubro de 2023, um ataque terrorista do Hamas, possivelmente concertado com grupos islamistas seus aliados, levou o terror, a morte e a destruição a território israelita nas imediações da Faixa de Gaza. Centenas de civis israleitos mortos - muitos deles participavam num festival de música -, centenas de pessoas sequestradas e os relatos de práticas hediondas serviram de justificação para que Israel fizesse tudo o que fez e tem vindo a fazer desde esse dia: ocupar a Faixa de Gaza e ir cínica e clinicamente eliminando palestinianos até que o território esteja livre, desocupado. Os números não mentem: aos 1498 mortos do lado israelita, Israel respondeu matando mais de 38 mil pessoas. Além disso, há quase dois milhões de pessoas desalojadas. Entretanto, Síria e Líbano foram também atacados por Israel e, desse modo, envolvidos num conflito que cada vez mais parece tratar-se de uma carnificina vingativa e unilateral.
Enquanto isso, as Nações Unidas, sob o comando de António Guterres, secretário-geral da ONU, têm sentido grandes dificuldades para fazer com que o mundo entenda que a contenda é claramente desequilibrada. As várias tentativas de censurar oficialmente a posturas de Israel e os seus atos, que provavelmente infringem a lei internacional e que é possível que configurem crimes de guerra, já para não falar numa intuível tentativa de limpeza étnica, têm esbarrado nas posições intransigentes de alguns aliados históricos de Israel, com os Estados Unidos à cabeça - mas não são só os americanos que se têm mostrado irredutíveis. Contudo, é fácil ficar na retina e no ouvido aquele momento em que o presidente Joe Biden - cujo comportamento e os comentários em relação ao conflito parecem ser produzidos por alguém que vive numa realidade paralela e não tem noção da verdadeira gravidade da situação - responde a um jornalista que lhe faz a seguinte pergunta (ou uma semelhante - nos vídeos consultados, surge apenas a resposta do presidente com uma contextualização ténue): "É verdade que os Estados Unidos ameaçaram deixar de apoiar Israel caso eles não moderem os ataques?" E Biden responde então que "bom, eles têm de continuar a fazer o que têm feito".
E é neste ponto que estamos, com dois conflitos nas fronteiras da Europa, à entrada para o segundo quartel do século XXI. Ao mesmo tempo, a extrema-direita vai crescendo em todo o mundo ocidental e, uma vez mais, a Europa volta a soçobrar debaixo do peso do imaginário e do discurso populista que, há precisamente cem anos, conduziu à instituição de estados fascistas no interior das suas fronteiras com as consequências que se conhece. E, cereja no topo de bolo, a discussão e as pretensões relativas ao serviço militar obrigatório têm surgido em discussão pública amiúde. Nos países nórdicos, debate-se a questão de as mulheres serem obrigadas a fazer tropa, tal como os homens. Em Portugal, ainda que a conversa seja mantida em surdina, paira no ar a ideia de que o serviço militar pode voltar a ser obrigatório. E a pergunta impõe-se: o que é que eles sabem que nós ainda não sabemos? Estamos a ser preparados para uma guerra em larga escala? Devemos temer o pior?
E isto lembra-me uma história: a do símbolo da paz com que os hippies americanos tentaram evangelizar o mundo, debaixo do mantra "make love not war" para tentarem parar com a guerra e desgraça no Vietname. Acontece que os hippies, nesta matéria como sucede em tantas outras, estavam ligeiramente enganados: aquele símbolo parecido com o emblema da Mercedes (mas com mais uma perna) não é da paz. É um símbolo mais específico. Pertence ao movimento de desarmamento nuclear britânico - ou Nuclear Disarmament, na língua original. Aliás, ele é a fusão do N(uclear) e do D(isarmament), sobrepostos, em código de semáforo de bandeiras - /\ = N; | = D.
O autor do símbolo, o designer Gerald Holtom contou numa entrevista, explicando a origem daquele traço ao alto e dos outros dois, com braços abertos, virados para baixo, que tentou representar o camponês diante do pelotão de fusilamento presente na pintura Fusilamentos do 3 de Maio, de Goya, em que existe um homem desesperado, de braços no ar. Diz Holtom que inverteu a imagem do homem e que a reduzia a traços simples. Depois, desenhou um círculo em seu torno. Et voilá. Mesmo que o desenho não signifique exatamente aquilo que pensamos, talvez seja altura de pensar em voltar a usá-lo. Antes que seja tarde demais.