Tem sido notícia por cá desde, pelo menos, sábado de manhã - 3 de junho - o terrível acidente de comboio na Índia que fez quase 300 mortos - neste momento, a contagem de vítimas mortais vai em 288 - e cerca de 900 feridos, alguns deles em estado grave, o que pode vir a aumentar o número de fatalidades.
Dizer que o acidente de comboio foi "na Índia" é tão pouco específico quanto seria dizer que a tragédia com o comboio rápido na Galiza, em Santiago de Compostela, em 2013, ocorreu "na Europa". Portanto, sendo mais preciso, o desastre ferroviário de sexta-feira aconteceu no estado de Odisha, no Nordeste do país, junto à localidade de Bahanaga, que dista cerca de 1600 quilómetros da capital indiana, Nova Déli.
Porém, o facto de ter tido de recorrer a uma memória de 2013 para encontrar semelhante dimensão trágica num acidente ferroviário ocorrido na Europa - o desastre de Compostela fez 79 mortos e 140 feridos entre 218 passageiros - demonstra que, felizmente, este tipo de tragédias não ocorre no continente europeu com frequência. Na Índia, infelizmente e pelo contrário, os desastres com comboios são não apenas frequentes, mas também altamente mortíferos. Com uma gigantesca mas mal cuidada rede ferroviária - são mais de 60 mil quilómetros de caminhos de ferro que transportam, por dia, cerca de 12 milhões de passageiros em 14 mil comboios -, dados oficiais (National Crime Records) apontavam para 16 mil mortes em 18 mil acidentes ferroviários só no ano de 2021. O número exagerado faz-nos ter uma ideia da dimensão do pesadelo, porém importa sublinhar que este registo não é maioritariamente composto por choques entre comboios, como aconteceu a 2 de junho (as perícias apontam a sinalização deficiente como causa do embate entre as três composições - duas de passageiros e uma de mercadorias): 67,7% dessas mortes resultam de quedas dos passageiros (a imagem de comboios na Índia apinhados de pessoas, transportando-as até no tejadilho certamente está presente na mente da generalidade dos leitores) e de atropelamentos de pessoas que estão na linha de comboio.
Sempre que há notícia de um grande acidente de comboio, mesmo que aconteça num sítio distante, lembro-me sempre da história da nossa própria tragédia: o desastre de Alcafache, o mais trágico acidente ferroviário ocorrido em Portugal, matou mais de 150 pessoas a 11 de setembro de 1985. Mas não é só o número de mortes aquilo que choca nessa memória não tão distante assim, é também a maneira horrorosa como as pessoas morreram que torna o desastre ainda mais terrível.
Tudo aconteceu nas proximidades do apeadeiro de Moimenta-Alcafache, na Linha da Beira Alta. Alcafache é uma pequena freguesia, com 800 habitantes, do concelho de Mangualde, e o apeadeiro situa-se entre as estações de Mangualde, precisamente, e Nelas. A linha férrea é, nessa zona, composta por apenas uma via. Nesse infame dia 11 de setembro - estranha data esta em que coincidem tantos episódios de má memória -, um comboio rápido internacional de complemento ao Sud Express, com 12 carruagens, fazia a ligação do Porto a Paris. Ao mesmo tempo, em sentido inverso, circulava um comboio regional, com paragem em todas as estações e apeadeiros. Tinha seis ou sete carruagens, não há certezas.
Não havendo registos dos bilhetes dos comboios regionais, que são simples, só é possível fazer-se uma estimativa da quantidade de passageiros em viagem. Seriam cerca de 460. A falta de certeza em relação aos número de passageiros leva a que também não exista um número exato de mortos. Estima-se que tenham sido 150. Mas podem ter sido mais. À falta de registos de bilhética do regional, junta-se uma dificuldade para estabelecer o número exato de vítimas mortais: os incêndios que deflagraram em ambas as locomotivas e em várias carruagens, devido ao derrame de combustível, tanto nas máquinas das primeiras como nos sistemas de aquecimento das segundas. Entre os passageiros que ficaram presos nos destroços, muitos ficaram completamente carbonizados. Reduzidos a cinzas. O caso, o mais infernal que Portugal viveu no que respeita a acidentes ferroviários, ganha contornos de horror completo quando ficamos a saber que muitas destas vítimas eram crianças.
O comboio regional deveria ter aguardado em Mangualde pela passagem do rápido internacional. No entanto, o comboio que vinha do Porto apresentava um atraso que os chefes de estação consideraram suficiente para que o regional chegasse a Nelas, a partir de onde a via passava novamente a ser dupla. Só que o atraso do regional não era tão grande como se estimava. Quando o internacional partiu de Nelas, o chefe de estação telefonou para o seu homólogo de Mangualde a mandar segurar o comboio regional, uma vez que a via - uma via única - estaria impedido pelo comboio prioritário, o rápido. Só que o comboio regional já estava a caminho. Ainda foram feitas tentativas de mandar parar os comboios com recurso a bandeiras vermelhas em pontos intermédios, porém ambas as composições já haviam passado por esses sítios. Eram 18h37 quando as duas composições embateram a uma velocidade de aproximadamente 100 km/h. As locomotivas e várias carruagens de cada uma das composições ficaram completamente destruídas. O cenário dantesco agravou-se primeiro pelo pânico dos sobreviventes que, em pânico, tentavam escapar dos destroços, provocando o esmagamento de outros passageiros. O fogo acabou por consumir e destruir o que restava.
O alerta para o acidente, que era inevitável, foi dado por uma ambulância que circulava nas proximidades. A chegada das equipas de socorro foi rápida, mas mesmo assim a maioria dos salvamentos foi feita pelos próprios passageiros sobreviventes, que tentaram extrair dos destroços tantas pessoas quantas lhes foi possível. Mas a situação era por demais caótica. O inferno das chamas e das carruagens retorcidas não permitiu que se fizesse melhor.
Os números oficiais da tragédia de Alcafache estão longe, muito longe, dos reais. Só 14 cadáveres foram identificados. A estimativa oficial das autoridades estatais considerou apenas 49 mortos (35 não identificados) e 64 passageiros foram oficialmente dados como desaparecidos. Até hoje.
Os corpos não identificados foram sepultados numa vala comum junto ao local da tragédia. Foi aí erigido um monumento em memória das vítimas - vítimas sem nome, sem rostos e até sem número, como se pode concluir. Após o acidente, foram instalados sistemas mais avançados de segurança, sinalização e controlo de tráfego, e foi proibida a utilização de materiais que facilitem a propagação de chamas nos comboios.