A Polícia Judiciária (PJ), com a imaginação a que já nos habituou quando toca a dar nomes às operações de investigação e apreensão, chamou-lhe Operação Squid, mas a designação parece não bater 100% certo com o sofisticado método usado por esta rede criminosa. No princípio de março, a PJ apreendeu, num armazém da zona Oeste, cerca de 1300 quilos de cocaína. A droga vinha no interior de peixe congelado, oriundo da América do Sul. Ora, "squid" é lula em inglês e, a Unidade de Combate ao Tráfico de Estupefacientes da PJ que não me leve a mal o preciosismo, mas a lula é um molusco cefalópode, não é um peixe.
Esclarecido este ponto, dediquemo-nos a olhar de perto, contemplando o sofisticado expediente a que se dedicou esta equipa criminosa, que em Portugal contava com pelo menos sete homens de várias nacionalidades, com idades entre os 26 e os 59 anos, segundo os relatos oficiais da PJ. A droga vinha dissimulada no interior do peixe congelado. A mercadoria provinha do Equador e era descarregada no Porto de Lisboa, de onde era depois transportada para o referido armazém da zona Oeste, onde as autoridades a encontraram, desmantelaram a rede, apreenderam a carga e detiveram os indivíduos envolvidos. É uma estratégia engenhosa, esta de esconder a droga em peixe que posteriormente é congelado, e, segundo a própria PJ, o sistema "tornou extremamente difícil a sua deteção [da droga]", obrigando mesmo à destruição da mercadoria, ou seja, do peixe, para se chegar à cocaína.
Mil e trezentos quilos de cocaína é uma grande dose de droga. Não há muitos detalhes acerca da pureza da matéria-prima, mas não será de estranhar se o produto for extremamente puro, a fim de poder ser trabalhado, em conforto e com segurança, já em solo europeu, de onde é depois muito mais fácil distribuí-lo. Não faria sentido cortar a droga ainda na América do Sul, o que obrigaria ao transporte de uma carga muito superior, logo, muito mais difícil de dissimular.
Ainda assim, se considerarmos casos anteriores, tendo em conta que se trata de menos do que uma tonelada e meia de coca, também não estamos propriamente a falar da maior carga de droga jamais vista. Lembremo-nos, por exemplo, do famosíssimo caso de Rabo de Peixe, que até resultou naquela série da Netflix com o mesmo nome. Embora as autoridades tenham declarado, nos relatórios oficiais, que a carga perdida pelo iate Sun Kiss 47 em junho de 2001 totalizava 505,84 quilos de cocaína com 80% de pureza - dos quais a polícia conseguiu apreender 400 kg, ficando os restantes 100kg (pelos dados da polícia, claro) nas mãos da população local -, os habitantes locais e jornalistas que acompanharam o caso defendem que esses números estão longe, muito longe da realidade. As estimativas apontam para que o Sun Kiss 47 transportasse, pelo menos, três toneladas de droga.
A estratégia para trazer droga a bordo do veleiro que se deu mal com o mau tempo a norte da ilha de São Miguel, nos Açores, era também ela bastante engenhosa, embora não tão inventiva como esta, de esconder a droga no peixe congelado - difícil de rastrear, estranho até de se desconfiar. Em Rabo de Peixe, a droga forrava o navio, que é uma estratégia usada até em embarcações de maior porte, por ser difícil de detetar e por não ocupar espaço dentro da embarcação. No caso do Sun Kiss 47, a droga foi arrumada até no interior da quilha. Caso o veleiro só transportasse os tais 500 quilos de cocaína, estaria a ocupar menos de 20% da capacidade total de armazenamento em zonas ocultas do barco. E isso não faria sentido quando o transporte implicava uma travessia do oceano Atlântico.
A história da Operação Squid, além de lembrar a épica pescaria de fardos de cocaína ocorrida em Rabo de Peixe, deixa também claro que, no que toca ao transporte de droga vinda da América do Sul com vista à entrada no mercado europeu, as redes de tráfico são altamente inventivas e recorrem a meios e estratégias de invejável engenho.
Há modelos de transporte mais ou menos comuns. O recurso às chamadas "mulas", por exemplo, é um método usual no tráfico internacional de droga, sobretudo quando se trata de transporte intercontinental, nomeadamente o transatlântico. Por norma, este método consiste na ingestão de doses de droga de modo protegido - por exemplo, em embalagens engolidas que depois permanecem alojadas no estômago, se tudo correr bem - ou inseridas, enfim, em orifícios mais obscuros. Esta tática implica riscos para a pessoa que faz de "mula", obviamente - são numerosos os registos de overdoses após o rompimento de uma ou mais embalagens que, sujeitas aos movimentos peristálticos e imersas em sucos gástricos, acabam por rebentar -, além de não permitir o transporte de uma grande carga, uma vez que o aparelho digestivo de um ser humano tem dimensões limitadas. Por outro lado, o transporte no interior de um organismo humano é muitíssimo difícil de detetar. Na balança entre prós e contras das redes de tráfico de droga, a conta é fácil de fazer: as vítimas pontuais são danos colaterais com os quais conseguem conviver, pelo que o risco compensa.
Em 2016, foi registado um caso extremo de "mula" de droga, na Alemanha. Uma mulher viajava da Colômbia para Europa e, por qualquer razão que não nos foi possível apurar, acabou por ser revistada. No decorrer da revista, as autoridades depararam-se com cicatrizes recentes nos seus seios. A mulher tinha implantes mamários muito recentes. O facto de as costuras serem tão frescas levantou suspeitas entre a polícia alemã, que acabou por vir a concluir que a mulher tinha em cada mama meio-quilo de cocaína embrulhada em plástico, que os médicos extraíram imediatamente - caso rebentassem, a "mula" teria morte certa.
De entre os métodos mais usuais, existem, claro, os túneis. Se a prática não faz muito sentido dentro da União Europeia, já na fronteira entre México e Estados Unidos não faltam túneis por onde centenas de quilos de droga são transportados para território americano. É incerto o número de túneis de droga existentes ao longo da fronteira. Já o uso de canhões é uma maneira bem mais criativa de passar droga de um lado para o outro da mesma fronteira. Mas foi precisamente o que aconteceu em 2013, quando a polícia americana descobriu um canhão de plástico ligado a um motor que gerava pressão de ar para, eventualmente, disparar os pacotes de droga através da fronteira sem ter de recorrer a projéteis, explosões ou espoletas. O método era eficiente, porém, e sem grande surpresa, tornou-se indiscreto. Mas, até ser descoberto, ainda conseguiu fazer com que muitos quilos de droga transpusessem a fronteira entre o México e o estado da Califórnia - a tiro de canhão.
Claro que, quando o assunto é criatividade, ninguém bate Safi Zadeh Hossein, um artista iraniano que foi apanhado no Aeroporto Internacional de Bangkok-Suvarnabhumi quando viajava da Síria. Hossein transportava consigo duas esculturas de sua autoria, uma delas em forma de flor, que chamaram a atenção das autoridades tailandesas. Analisadas as peças, ficou-se a saber que as Hossein de Hossein eram esculpidas não em barro, não em porcelana, nem em mica: eram feitas de metanfetaminas. Safi Zadeh Hossein foi obviamente preso e não se sabe do seu destino, entretanto - tendo em conta a rigidez das leis sobre o consumo e o tráfico de droga na Tailândia, este caso não terá tido um desfecho feliz.
Ainda assim, os peixes congelados são, sem dúvida, uma forma discreta (e difícil de antecipar) de fazer chegar droga ao continente europeu. Se, por infeliz coincidência, o leitor der por si a comprar um desses exemplares tresmalhados, tome precauções: lembre-se do que o achado acidental de cocaína fez à população de Rabo de Peixe. Se não sabe do que falamos, pode sempre ver a série. Cozinhe com precaução.