Aconteceu tudo entre finais de abril e princípios de maio, vai agora fazer dez anos. Faltavam quatro jornadas para acabar o campeonato e o Benfica, treinado, liderado e insuflado pelo génio - no sentido de espírito, não significando necessariamente "pessoa genial" - de Jorge Jesus, ia à Madeira defrontar o Marítimo. O Porto observava, expectante, sedento e calmo, a complicada deslocação do Benfica ao Funchal.
A situação era a seguinte: o Benfica estava no primeiro lugar da classificação com mais 4 pontos do que o segundo, que era precisamente o Porto; as equipas encontrar-se-iam no Estádio do Dragão daí a duas semanas. Caso o Benfica chegasse ao Dragão com 4 pontos de vantagem, e a apenas dois jogos do fim, podia sonhar com sagrar-se campeão em plena casa do rival, vingando situações inversas anteriores, de tal modo numerosas que levaram a que o Estádio da Luz passasse a ser apelidado de Salão de Festas pelos adeptos portistas. Por outro lado, se o Benfica chegasse ao Dragão depois perder pontos, bastaria ao Porto ganhar diretamente ao Benfica, tête-a-tête e em plena casa, para se sagrar campeão. Antes do clássico no Dragão, faltava ao Benfica, além do jogo na Madeira, somente uma partida em casa, contra o Estoril, equipa simpática e medíocre, no que se esperava que fosse uma espécie de jogo para marcar calendário na mais que provável marcha triunfal dos encarnados até ao título de campeão nacional.
Portanto, ganhando ao Marítimo, o Benfica escancarava as portas do título. E escancarou mesmo: ganhou no Funchal e os jogadores festejaram no relvado do Estádio dos Barreiros como se já fossem campeões. Só faltou o champanhe e os foguetes. Ainda hoje é possível escarnecer das imagens. A três jornadas do fim, o Benfica tinha 4 pontos de vantagem do Porto e faltava-lhe jogar dois jogos em casa - o tal contra o Estoril e um último, que seria o da consagração, contra o Moreirense - e um no Dragão. Ao Porto, restava-lhe esperar por um milagre e, se a oportunidade surgisse, atacar o Benfica como pudesse, em casa, de maneira a mudar o curso da história para que ela fosse escrita a seu favor e não à maneira dos rivais a quem chamam inimigos.
E o milagre aconteceu mesmo. Numa tarde quente e soalheira de verão antecipado, o Benfica recebeu o Estoril e surpreendentemente empatou. A equipa encarnada deixava cair a vantagem perfeita e ia, assim, jogar ao Dragão na semana seguinte obrigada a não perder para poder ser campeã. Os portistas, claro, esfregavam as mãos: finalmente, a decisão passaria por um confronto direto, cara-a-cara, e nesse particular os dragões têm levado clara vantagem sobre as águias nos últimos 30 anos. Na hora da verdade, onde azuis-e-brancos se agigantam, os encarnados tremem e encolhem-se de modo quase patológico. Já não é apenas tradição ou traço cultural, são comportamentos mais do domínio da psicologia.
Há dez anos, no Dragão, o jogo chegou empatado aos 91 minutos. Esse empate permitiria ao Benfica sair do Porto com os mesmos 2 pontos de vantagem com que chegara, deixando am aberto a possibilidade - fortíssima, claro! - de se tornar campeão na Luz, na última jornada, diante do inofensivo Moreirense. Mas foi então que aconteceu Kelvin. O que é Kelvin? Kelvin pode ter sido um jogador de futebol que, como um cometa, atravessou o céu portuense, rapidamente e em fogo, ou pode simplesmente ter sido um fenómeno, um momento no tempo, um acaso caótico do universo, uma combinação cósmica pela felicidade portista. Kelvin, um rapaz desconhecido e com questionável talento para a prática do futebol; Kelvin, futebolista compostinho e pós-moderno, sem passado nem futuro, com uma crista de cabelo na cabeça; Kelvin, possuidor de um pé esquerdo tão acidental quanto mortífero, apanhou uma bola insossa e passiva e, da entrada da área, chutou para um mais que previsível pontapé-de-baliza a favor do Benfica. O jogo ia no minuto 92 e a bola chutada por Kelvin seguia nem devagar nem depressa: antes à velocidade dos lances imortais, frame por frame, todos gravados na memória de quem assistia à partida. No Dragão, e diante da iminência de um empate que deixaria o Benfica à beira de ser campeão, havia já muitas clareiras, cadeiras vazias, bancadas a despir-se, gente de saída, cabisbaixa, desiludida, desapontada com o seu Porto, um Porto que não fez jus à garra que lhe é amplamente reconhecida. E então a bola de Kelvin aterrou e quando aterrou ouviu-se o som inconfundível do toque do couro na malha da baliza, por dentro. E depois ouviu-se o bruá inigualável do povo quando festeja, "golo!, foi golo!, foi o golo dos golos!", o Dragão enfurecido e eufórico saltou e gritou e festejou enquanto Jorge Jesus caía de joelhos, impotente, mascando pastilha elástica e contemplando a vitória alheia, o golpe de asa do universo, o golpe de sorte de Kelvin, o golpe de misericórdia do seu maior rival. E assim o Porto viria a tornar-se campeão. Para os menos informados, um campeão improvável; para quem conhece o Porto e a relação entre Porto e Benfica, um campeão que se estava mesmo a ver.
Na sexta-feira, no Estádio da Luz, o Porto chegou ao relvado sendo segundo classificado, a 10 pontos do Benfica, líder incontestado de um campeonato em que tem sido brilhante, poderoso e virtuoso. Pelas contas dos incautos, o Benfica sairia de campo, depois de vergado o Porto, com 13 pontos de vantagem e rumo a um título de campeão que não seria só provável, nem sequer obrigatório, mas praticamente inevitável. Só que o povo que vê bola sabe que estas coisas não são bem assim. Diz-se das equipas que, em determinados momentos, têm de comer a relva. Mas comer a relva é para meninos: no Porto comem-se as vísceras. No caso, as vísceras dos inimigos. E é com as mãos e as bocas ensanguentadas que os comandados de Sérgio Conceção se banqueteiam, destroçando fígados e, principalmente, corações benfiquistas, que hoje decerto palpitam muito agitados e ansiosos, recordando a aterragem maravilhosa e perfeita da bola de Kelvin, enquanto aguardam, impacientes, pelo desfecho de mais este lance cósmico. Conseguirá o Benfica ser campeão desta vez?