De vez em quando, o fenómeno repete-se: surge de um mundo paralelo uma figura que, em circunstâncias normais, seria risível e objeto de escárnio, mas que, sob as condições ideais, numa conjuntura extraordinária, se torna fonte de inspiração para um determinado grupo de pessoas - grupo esse que, em circunstâncias normais, teria tudo para ser risível, não fosse o facto de, por norma, se tornarem fatalmente violentos. Ao fim de algum tempo, aquele a quem esse grupo passará a designar por guru irá liderar todo o séquito até um lugar remoto onde possam, em sossego e com a discrição possível, dedicar-se às tarefas mais criativas com vista à reinvenção do mundo e ao reposicionamento do homem em relação à existência. Não raramente, acabam todos por morrer muito antes de serem atingidos os objetivos mínimos do projeto inicial.
Não é censurável que tal aconteça, é antes perfeitamente compreensível. O mundo é um lugar difícil, especialmente desde que o universo fez com que fosse povoado por seres humanos. De um lado, a inflação, do outro a guerra na Ucrânia, de outro ainda os preços do arrendamento, a crise climática, o cataclismo da insustentabilidade, o crescimento infinito da economia global, a reprodução exponencial de ricos muito ricos rumo à sobrepopulação do planeta por seres bilionários, os microplásticos no leite materno, as equipas árabes a comprar futebolistas a sério: quem é que aguenta esta realidade? Que um grupo de pessoas procure criar um contexto alternativo para existir é não apenas normal nem somente legítimo: em nome da honra da humanidade, é imprescindível.
Desta vez, quem veio para nos salvar - uns de cada vez e, antes de todos os outros, os seus acólitos - foi Água Akbal Pinheiro, assim auto-rebatizado depois de ter tido uma "experiência espiritual profunda", que consistiu não se sabe bem em quê, mas que o próprio classifica como Pineal Despertar Espiritual. Akbal Pinheiro não se chamava inicialmente assim: o seu nome original - não desfazendo do original nome que hoje ostenta - era Martin Junior Kenny. Martin nasceu no Zimbabwe e mudou-se para o Reino Unido quando tinha 20 anos. Tornou-se chefe de cozinha e vivia em Southampton quando, aos 36 anos, viu nascer dentro de si aquele que é hoje, o tal Água Akbal Pinheiro. Pelo meio, por volta dos 25 anos, conheceu Gabriela, sua mulher, com quem teve dois filhos. Mais tarde, o casal teria um terceiro e é por causa desse desafortunado bebé que hoje abordamos este tema.
Tudo isto tem saído na imprensa nacional desde que um evento trágico e de contornos ainda por explicar ocorreu no seio desta peculiar - mas não muito original - comunidade: Samsara, uma criança de 14 meses, cujo nascimento não foi registado oficialmente, morreu em circunstâncias inexplicadas e foi cremado pela seita na quinta que esta reclama como seu reino. Trata-se, na verdade, de um terreno na zona de Oliveira do Hospital, propriedade do futebolista Pione Sisto, atualmente ao serviço dos dinamarqueses do Midtjylland e que representou durante alguns anos os espanhóis do Celta de Vigo. Sisto tem nacionalidade dinamarquesa, mas nasceu num campo de refugiados no Sudão do Sul. Não foi possível clarificar a origem e a natureza da relação entre Pione Sisto e Água Akbal.
A morte e a cremação, à margem da lei, do pequeno Samsara fizeram com que o Ministério Público, segundo notícias recentes, fosse levado a investigar o sucedido. Com as autoridades à perna e os olhos da opinião pública voltados para si, através das câmaras dos órgãos de comunicação social, os representantes da seita do Pineal, nomeadamente o seu líder espiritual, têm-se desdobrado em justificações confiantes, algumas delas com aparente fundamentação jurídica, além de afirmações destemidas, sempre seguras de que a razão estará do seu lado, até porque, à falta de melhor argumento, alegam estar "a fazer o trabalho de Deus". Como é que se pode rebater uma defesa destas?
Uma vez mais, a seita do Pineal, liderada pelo autoproclamado filósofo espiritual Água Akbal, não tem nada de original. Seitas compostas por insatisfeitos com o sistema que desatam a fazer disparates escudando-se em supostas missões de caráter divino são o que não falta na história mundial recente. De todas as que são razoavelmente conhecidas, há uma que sobressai em semelhanças com esta que se instalou em Oliveira do Hospital: a do Templo do Povo dos Discípulos de Cristo (no original: People’s Temple of the Disciples of Christ), liderada pelo infame James Warren "Jim" Jones. A seita do Templo do Povo viria a ficar na história após o Massacre de Jonestown, mas já lá vamos.
Antes do hediondo desfecho da sua história, Jim Jones liderou o Templo do Povo construindo todo um universo ideológico e espiritual: da segregação racial à conceção política de um modelo social, passando pela incontornável mensagem divina - entregue por Deus, Ele próprio, a Jones -, tudo no seu discurso tinha tanto de político quanto de religioso, tanto de espiritual quanto de filosófico, tanto de inspirador quanto de assustador. Fascinado pelo pentecostalismo desde tenra idade, Jim Jones fundou a sua seita com apenas 24 anos e liderou-a durante outros 23. Ao longo dessas mais de duas décadas, a congregação fanática de Jim Jones teve várias sedes nos Estados Unidos da América, até que eventualmente acabou por se mudar, em 1974, para a Guiana, na América do Sul, onde se instalou numa terra a que deu nome: Jonestown.
Todo o imaginário idealista e comunitário que parece inspirar e mover o tal reino do Pineal parece bater demasiado certo com aquilo que o Templo do Povo foi, ou começou por ser, tirando talvez o pentecostalismo: o virar de costas a um sistema social, a procura de um modo de vida alternativo e independente, a autodeterminação, a partilha e a comunhão como base de uma vida em comunidade - Jim Jones chamou-lhe "socialismo apostólico" -, mas acima de tudo a cegueira que, nascida de uma suposta espiritualidade, pode perfeitamente transformar-se em loucura sem controlo.
O que é loucura sem controlo? É o Massacre de Jonestown. Aconteceu a 18 de novembro de 1978 depois de ter chegado a um beco sem saída - a visita de Leo Ryan, um congressista americano, acompanhado por uma equipa de reportagem, para indagar acerca do funcionamento de Jonestown acabou muito mal: dissidentes da seita, juntamente com o congressista e vários repórteres foram alvos de um tiroteio por parte de seguranças armados do Templo do Povo (Ryan e outros elementos da comitiva acabaram mortos, mas alguns dissidentes e jornalistas conseguiram escapar). Diante deste cenário, Jim Jones decidiu que, nesse mesmo dia, todos morreriam num suicídio em massa. Nem todos os integrantes da seita aceitaram o seu destino, alguns conseguiram fugir pela selva, outros resistiram ao "suicídio revolucionário" (foi esta a designação que Jones lhe deu) e acabaram por ser injetados com cianeto (tal como aconteceu com as crianças). Os que aceitaram pacificamente o suicídio beberam um composto também rico em cianeto. No fim, morreram 918 pessoas, incluindo 276 crianças e o próprio Jim Jones. É isso que é uma loucura sem controlo no seio de uma seita.
Tenho, ainda que sem fundamentação científica, uma teoria que pode justificar o modo como tudo funciona e como todo o processo se desencadeia no decorrer das vidas habitualmente curtas de seitas como a do Pineal. As pessoas entusiasmam-se com um curandeiro qualquer que fala bem e lhes garante um paraíso na Terra, acessível mediante o cumprimento de um pequeno pacote de rituais e de cedências. Passado uns tempos, e esfumada a ilusão inicial, os acólitos são postos diante de um dilema: renunciar à seita e aceitar a realidade (e, fazendo-o, sentirem-se humilhados pela sua crendice, meio ingénua, meio ignorante); ou fingir que está tudo certo, numa estratégia de fuga para a frente, de delírio em delírio, até ao delírio final. Quando não há mais fuga possível, acontece o inevitável. Esperemos que, desta vez, as autoridades consigam chegar a tempo de impedir o que, mais tarde, não dará para evitar.