O nome dele não era, de todo, estranho para quem acompanha o futebol: Hector Bellerín, espanhol da Catalunha, foi durante muitos anosjogador do Arsenal, de Londres. Podíamos não saber exatamente quem era este Hector nem ao certo em que posição jogava, mas o cartão de apresentação dificilmente poderia ser melhor: formado no Barcelona, foi transferido, ainda jovem, para o clube londrino, cujas cores defendeu, na equipa principal, ao longo sete épocas bem disputadas, fora as outras ocasiões em que, ainda nas equipas de formação (sub-21 e sub-23), foi disputando pontualmente jogos com o plantel principal.
Depois do Arsenal, que na época passada o emprestou ao Bétis de Sevilha, seguiu-se uma transferência que o fez regressar ao ponto de partida, o Barcelona. Todavia, a temporada não lhe correu de feição e o lateral-direito – exato, é nessa posição que habitualmente joga – viu numa vinda para o Sporting, com contrato de meio ano e para ocupar o lugar que o seu compatriota Pedro Porro deixara em aberto, a oportunidade para, como se diz em linguagem futebólica, "relançar a carreira".
Chegado a Lisboa, não demorou nem dois minutos a dar nas vistas: primeiro, pelo bigode; depois, pela franja. Quem o visse à saída do Aeroporto Humberto Delgado não havia de ter como primeiro pensamento que se tratava de um craque de futebol. O look de Bellerín sugeria outro perfil, e seria menos surpreendente que se dirigisse em seguida à Zona Franca dos Anjos ou à Galeria Zé dos Bois do que ao centro de estágios de Alcochete ou ao Estádio José de Alvalade.
O bigode de Bellerín antecipou-se ao próprio jogador na entrada em cena no futebol português. E se este país é pródigo em bigodes no futebol - de Bento a Humberto Coelho, de Chalana a Pietra e a Veloso, de Frasco a Vermelhinho, de Artur Jorge a Carlos Manuel, só para mencionar alguns dos mais célebres, muitos foram os bigodes que fizeram vibrar as bancadas da Luz e das Antas, de Alvalade e do Restelo, do 1.º de Maio e do Calhabé. Não admira que, num país com tão longa e farfalhuda tradição supra-labial, o bigode magrinho e raro de Hector tenha dado mais nas vistas do que o seu internacional pé direito (Bellerín representou a seleção principal de Espanha em quatro ocasiões).
"Nós, os futebolistas, devíamos ser quem paga mais impostos", disse o catalão no princípio deste ano para espanto de muitos. Como assim, pagar mais impostos? Numa era em que mesmo os jogadores mais bem pagos do planeta tudo fazem para contornarem e fugirem às suas obrigações fiscais, há um futebolista que defende mais impostos para a sua classe? "Sim, eu sou de esquerda", afirma Hector, o excêntrico. "Devíamos ser nós a mostrar vontade de ajudar na estabilidade da sociedade", acrescentou.
Quem segue o futebol de perto, e quem bebe desse fenómeno as alegrias e as tragédias de um universo que tem tanto de belo como de falso, tanto de inspirador como de insólito, estará habituado a uma ou outra excentricidade. "Gastei muito do meu dinheiro em álcool, mulheres bonitas e carros velozes", disse um dia George Best. "O resto, esbanjei", acrescentou. Eric Cantona, conhecido pelo seu lendário mau feitio, certa vez agrediu um adepto – em pleno jogo, atirou-se do relvado para a bancada, de pé verdadeiramente em riste, como um karateca, só porque o adepto se meteu com ele. Por falar em mau feitio, Vinnie Jones, que hoje é conhecido por ser um ator-fétiche de Guy Ritchie, foi, nos seus tempos áureos de futebolista – o termo é aplicado lato sensu –, o líder de um grupo de jogadores do Wimbledon a quem chamavam Crazy Gang. Zlatan Ibrahimovic, Paul Gascoigne ou Diego Maradona, todos eles foram protagonistas de episódios excêntricos, todos eles enriqueceram o imaginário do futebol com as suas lendas, as suas manias, as suas manos de Dios. Por cá, na década de 1970, Vítor Baptista, que se auto-intitulava, sem pingo de modéstia, "o maior", certa vez parou um derby, um Benfica - Sporting, em pleno Estádio da Luz, diante de mais de 70 mil pessoas, porque alegadamente perdera um brinco na área sportinguista depois de marcar um golo e decidiu que tinha de procurá-lo (e procurou-o, e os colegas ajudaram-no, até o árbitro participou nas buscas – mas tristemente o brinco nunca foi encontrado).
Acontece que a excentricidade de Hector Bellerín é de outro calibre. Só usa peças de roupa em segunda mão porque se preocupa com o planeta e o irrita o consumismo excessivo (surge numa foto com um adereço da Prada, mas sendo em segunda mão dá-se o desconto). Só lê livros de autoras femininas porque acredita que as mulheres precisam de mais voz e que os homens necessitam de saber o que elas têm para dizer. É vegano por razões de sustentabilidade e por respeito aos animais. Não, Bellerín não é da mesma estirpe que aqueles outros. Por trás daquele bigode fino, para lá daquela franja fraturante, apresenta uma excentricidade madura, consciente, construtiva. Goste-se ou não, não faz o que faz nem diz o que diz só para ter protagonismo, mais 15 minutos de fama, mais atenção e mais retorno.
A excentricidade de Bellerín encontra maior paralelo em Puyol do que em Vinnie Jones ou George Best. O que o distingue dos outros é ser correto e decente, muito mais do que ser extravagante ou exibicionista. E, tal como Bellerín, também Carles Puyol é catalão, também Carles Puyol representou o FC Barcelona, também Carles Puyol mostrou ao longo dos anos como profissional de topo alguns traços de excentricidade, pormenores e comportamentos que fugiam à norma cada vez mais uniformizada. E, uma vez mais, tal como Bellerín, também Puyol fez do seu bom coração e da sua retidão, enquanto jogador e enquanto cidadão, as suas maiores excentricidades. Hector, com o seu bigode, talvez aponte para uma maneira diferente, mais livre e, quiçá, mais saudável de um jogador ser profissional de futebol.