Viver

Isabel II, a Rainha dos Mundiais

"Morreu a rainha que viu todos os Mundiais. Se calhar, já adoentada, alguém lhe poderá ter dito – 'Vai perder o próximo Mundial, sua Alteza. Vai ser o primeiro sem si'. "Este não conta" – poderia responder ela."

Foto: Rainha Elizabeth II cumprimenta o futebolista George Cohen em Wembley antes do primeiro jogo da Inglaterra na fase de grupos do Campeonato do Mundo de 1966, 11 de julho de 1966.
12 de setembro de 2022 | Manuel Neves
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O problema de se ser monomaníaco é que nunca se desliga. Para um doente da bola – como eu – a obsessão não é um passatempo semanal (ou bissemanal, se o nosso clube estiver nas competições europeias), é um facto permanente, uma linguagem absoluta que absorve a nossa vida. É o que nos faz dizer "em equipa que ganha não se mexe" quando escolhemos o mesmo sabor de sumo para o lanche dos miúdos e, ao saber da morte da rainha Isabel II, consultar a data de nascimento e descobrir que a senhora nasceu em 1926, pensar com inveja que ela viveu todos os Mundiais.

Os Mundiais são um momento marcante na identidade dos doentes de futebol. No meu caso, aos seis anos, o Itália 90 mostrou-me que havia um país chamado Camarões. Que havia guarda-redes que saíam da área com a bola, que existiam equipamentos de sonho e que Maradona podia ser derrotado. Os Mundiais marcam a nossa vida e, para quem, como nós, organiza o tempo em épocas, estes torneios eram um assinalar a negrito, uma referência, uma garrafa indestrutível em que podemos escrever lá memórias que nunca se vão embora. Sabemos os verões da nossa infância e da nossa adolescência consoante o que se passava naquele mês em que, como escreveu Jorge Valdano, "todos os dias é domingo".

Há uma geração definida pelo verão mexicano de Maradona. Outra pelo Mundial nos Estados Unidos. Suponho que as pessoas que sabem mexer no tiktok estejam de alguma maneira vinculadas ao barulho das vuvuzelas. O que me fascinou na morte de Isabel II é que ela viveu todos – TODOS – os Mundiais.

Tendo nascido em 1926, suponho que se lembre mal do de 1930, mas gosto de imaginar que, apesar da Inglaterra não ter participado, se lembra vagamente dos empregados na cozinha falarem animadamente disso, enquanto lhe diziam outra vez para não mexer nos talheres. Em 1934, com 8 anos, a rainha - na altura a 3ª na linhagem para o trono (li na Wikipédia - era o que me faltava: saber coisas destas em vez do onze do Benfica no 3-6 em Alvalade- Neno/Veloso/Hélder/Mozer/Kennedy/Abel Xavier/Paneira/Schwartz/Isaías/João Pinto/Aílton) e sem ter sequer preocupações em cumprimentar outras pessoas ou lá o que a realeza faz – já podia estar só dedicada aos Mundiais. De certeza que havia um rádio em condições no palácio para ela saber da vitória no prolongamento da Itália sobre a Checoslováquia. Sem o apoio da imagem, a rainha podia imaginar Giuseppe Meazza como quisesse e, quando fosse convidada, anos depois, para assistir a uma final europeia no estádio do mesmo nome – dizer para o socialite do lado: "E a jogada dele no 2-1 em 1934?".

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Em 1938, pré-adolescente, com o nazismo a ganhar força e com a possibilidade de ser rainha após o pai, o futebol podia ter sido na mesma um refúgio. Se a rainha fosse uma doente da bola, uns anos mais tarde, sempre que o seu filho Carlos mandasse uma boca sobre nunca mais ser rei, ela podia responder que o seleccionador brasileiro, Ademar Pimenta, também poupou os seus jogadores nas meias-finais para descansarem para a final e que se lixou. Se calhar a comparação nem era a melhor, mas ela, como doente da bola, podia querer só dizer um facto aleatório sobre Mundiais e achar que era propositado. E, se já fosse rainha, suponho que a malta tinha que calar e ouvir, ao contrário da minha mulher, cá em casa, que faz um ar de "por favor, guarda isso para ti".

Com a II Guerra Mundial, o Mundial pára. Segundo a Wikipédia, Isabel II aproveita e apaixona-se e, pelos vistos, houve controvérsia por questões familiares (são extraordinariamente desinteressantes, as famílias reais. Não encontrei nenhum relato de dificuldade de casamento devido a incompatibilidade de clubes). Para se casar com Isabel II, o príncipe Filipe teve que abdicar da nacionalidade grega e dinamarquesa, escolha que lhe custará o festejo dos Campeonatos da Europa de 1992 e 2004 – péssima decisão.

Toda a vida da rainha parece desenhada para conseguir ter aquele mês sossegada (bom, na verdade, não há propriamente relatos de um trabalho intenso das nove às cinco durante os outros três anos e onze meses). Tem filhos em 1948, 1950, 1960 e 1964, evitando quase sempre anos de Mundial. Tem a princesa Ana em agosto de 1950, mas apenas um mês depois da escandalosa vitória do Uruguai no Maracanã. Gosto de imaginar que, sempre que se irritava com a filha, lhe dizia que não viu a diagonal e o golo de Alcides Ghiggia ao vivo por sua causa. "Eu arranjava bilhetes…", acrescentaria entredentes.

Os anos passam e suponho que as obrigações lhe tenham trocado as voltas em relação aos Mundiais da vida adulta – é um processo doloroso que nos acontece. Tenho o Itália 90 gravado a fogo na minha cabeça, mas o trabalho e os filhos tornam os últimos Mundiais uma confusão difícil de destrinçar. Isabel II podia culpar a Commonwealth e o facto de andar a viajar muito para confundir em qual dos Mundiais brilhou Pelé (1958) e em qual brilhou Garrincha (1962). É muito mais fácil lembrar-nos dos Mundiais se não estivermos a ocupar o Quénia, essa é que é essa.

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Em 1966, o Mundial é em Inglaterra. Bilhetes de borla, grandes lugares e a oportunidade de estar perto dos melhores futebolistas – são vários privilégios para quem já não tinha propriamente poucos. No entanto, nem tudo são rosas e as vicissitudes da etiqueta podem sair caras. Mesmo sendo a rainha – ela era a rainha! – Isabel II, no dia 23 de julho de 1966, teve que se apresentar em Wembley para ver o Inglaterra – Argentina. À mesma hora, em Goodison Park, em Liverpool, Eusébio desfazia a Coreia do Norte numa exibição absolutamente lendária, com quatro golos, uma fotografia histórica e uma arrancada fulgurante que entrará para a História do futebol. A rainha teve que ver isto tudo depois, em diferido, na televisão. Imaginem a bronca que não deve ter sido. A cara taciturna de Isabel II a entregar a taça a Bobby Moore não mente.

Foto: Getty Images

Talvez tenha sido esse rancor que a levou a não estar presente no funeral do nosso monarca, o King Eusébio da Silva Ferreira, acidente diplomático irreparável, que faz o mapa cor-de-rosa parecer uma nota de rodapé nos livros de História.

A rainha viu os Beatles lançar o Let it Be em 1970, e provavelmente associou a música a Carlos Alberto a aparecer na direita para fuzilar Zoff. Ouviu David Bowie a cantar a Rebel Rebel em 1974 e terá ligado a música a Johan Cruyff e, em 1978, até ela ficou escandalizada pela propaganda de Videla no Mundial da Argentina e terá pedido ao duque de Iorque para pôr o segundo álbum de Clash mais baixo para a deixar torcer pela Holanda na final (já que a Inglaterra se voltou a não classificar). Já tinha 52 anos, tinha visto todos os Mundiais e era o que faltava não conseguir torcer contra a Argentina – "nunca lhes perdoarei não ter visto o Eusébio em 1966. Ainda entramos em guerra com eles!".

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O império britânico vai-se desfazendo e a rainha torna-se cada vez mais uma figura decorativa. A família real ganhou peso nos tablóides, e talvez essa decadência a tenha impedido de apreciar o futebol do Brasil de 1982. Zico, Sócrates, Falcão e Paolo Rossi são figuras melancólicas para Isabel II, que terá associado sempre o Mundial de Espanha ao ano em que foi avó.

O futebol e os mundiais são a nossa máquina do tempo, mas a rainha parou nas estações todas. Em 1986, enquanto Maradona dribla os seus súbditos, pode ter havido uma parte de si que se sentiu responsável. Foi a guerra que fez aquele latino marcar um golo com a mão? E porque é que a Inglaterra se mete nestas coisas se claramente não tem gente capaz de fazer as coisas com a bola que aquele plebeu fez? O tempo passa, inexoravelmente. Poderá este jogador do povo ser um símbolo para os pobrezinhos? Carlos até tinha trazido uma para casa. Longe vão os tempos de poder ouvir o Mundial de 1938, sossegada, pela rádio. Já nada é como dantes.

Os anos 90 chegam, o Muro caiu, em 1992 os guarda-redes já não podem agarrar a bola quando ela lhes é passada por um colega de equipa e a rainha, entre divórcios na família e insultos na visita à Índia, pode ter ficado apenas com memórias difusas do penalty de Baggio ou do enigmático desaparecimento de Ronaldo na final de 1998. A monarquia acentua-se como anacronismo. O povo chorou a morte da princesa Diana e aparentemente liga a pequenas coisas, como a rainha ter demorado dias a falar. Suponho que, mesmo sem Mundial, o mítico torneio de verão de 1997 (um precursor da Taça das Confederações, em que Roberto Carlos faz marcou aquele livre mítico aos franceses) que a Inglaterra venceu (mesmo tendo pela frente França, Itália e Brasil!) possa ter distraído a monarca.

O mundo pula e avança, a internet torna-se viral e a rainha já pode ver os resumos dos Mundiais no telemóvel. Os Mundiais seguintes, numa idade assim, são portas de entrada à sua memória, uma maneira de começar a olhar para trás. Riu-se do Brasil de Scolari de 2002 ("Nunca perdoarei à minha filha não ter estado no Maracanã em 1950") e quando viu Pirlo em 2006 teve reminiscências das suas memórias de Giuseppe Meazza. Viu os espanhóis serem campeões, os malditos alemães outra vez e até os franceses. 1966 já não voltou.

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Isabel II tinha 96 anos, atravessou a pandemia, ficou viúva e deve ter organizado as coisas para no verão se sentar no trono a ver a bola. Explicaram-lhe que não. Que o Mundial é no Inverno e no Qatar. Achava que Qatar era o nome do cão de Carlos, mas está a confundir com o nome do país que alegadamente deu 3 milhões de euros em dinheiro ao príncipe e que deixou de ser um protetorado britânico em 1971

2022 foi um verão triste, para nós, monomaníacos. Tínhamos o relógio biológico acertado para mais um verão de descoberta de talentos do Canadá ou para ouvir os lugares comuns condescendentes sobre as equipas africanas. Habituámo-nos a que a FIFA entregasse os Mundiais em condições tendencialmente suspeitas a países muito afastados da democracia. Mas o Mundial no Qatar é um género de bingo – das mortes de trabalhadores em números inacreditáveis (uma notícia do The Guardian – de fevereiro de 2021 - fala de 6500 mortes desde a atribuição do Mundial), à homofobia anunciada, passando pela infindável lista de alegações de corrupção para que o Mundial ali fosse (se bem que aqui podemos estar apenas a seguir um rumo histórico de tradições da FIFA), está lá tudo. Menos importante, mas também simbólico, até a altura do ano em que é realizado mudou.

Mudaram-nos os hábitos. O Mundial no Qatar é um absurdo tão grande como a monarquia no séc. XXI. A rainha tinha 96 anos, viu Mundiais desde 1930 e agora dizem-lhe que o Mundial começa em novembro. Que a meio das chuvas de outono não vai estar a ver eliminatórias da FA Cup e que aos domingos à tarde não se poderia retirar para o quarto no Palácio de Buckingham para ver um Stoke City – Aston Villa, mas sim para ver a Polónia. Não faz sentido. Já estamos habituados a que os Mundiais sejam em sítios pouco recomendáveis, mas o mínimo que se exigia era que fossem no verão. Isabel II teve direito a 21 Campeonatos do Mundo de futebol (contra 15 primeiros-ministros ingleses). Viveu 96 verões e podia lembrar-se distintamente de 21 deles devido a jogadores, golos e equipamentos. Viu vários formatos do torneio, assistiu à escalada para 24 e depois 32 equipas, mas a ideia de que o bisneto, com nove anos, grave na sua memória um Campeonato do Mundo jogado no Inverno, em apenas um mês, pode ter sido demais. O mundo deve avançar – devíamos caminhar para uma sociedade mais justa, melhor para todos – mas há coisas, como o futebol, que devem ser cristalizadas de maneira a não termos que colocar em causa tudo aquilo em que vivemos: os Mundiais querem-se no verão, em países com tradição futebolística, com o lote de possíveis vencedores relativamente restrito. Se perdemos isto, corremos o risco de nada fazer sentido e, quando abrirmos os olhos, já existe a Superliga e vemos futebol como os americanos veem os "desportos" deles

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Morreu a Rainha que viu todos os Mundiais. Se calhar, já adoentada, alguém lhe poderá ter dito – "Vai perder o próximo Mundial, sua Alteza. Vai ser o primeiro sem si." "Este não conta" – poderia responder ela.

Deus não salvou a Rainha. Oxalá salve os Mundiais.

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