Há uma frase que tenho muito presente, mesmo que não a saiba exatamente, palavra por palavra, até porque o livro que a contém já o li há muitos, muitos anos: "Tudo o que vemos do mundo é apenas as costas do mundo" - cito de memória e sem confirmar.
A frase é de G.K. Chesterton (1874-1936), que a pôs na boca de Domingo em O Homem Que Era Quinta-Feira (1908). Lembrei-me dela e desse livro imperdível quando recentemente li acerca de George Santos, o congressista do Partido Republicano eleito pelo estado de Nova Iorque que aparentemente não é nada daquilo que diz ser - o que deixa em aberto a formidável possibilidade de ser tudo aquilo que não diz.
Na obra de Chesterton há um poeta, Gabriel Syme, que se vê envolvido numa investigação a um grupo de conspiradores, o Conselho Central de Anarquistas. Syme, sob o nome de código Quinta-Feira, infiltra-se na obscura sociedade secreta que tem como objetivo final a destruição do mundo - a obra, predominantemente existencialista, questiona a identidade, a divindiade e a fé, e até o próprio cosmos, de uma maneira hábil, engenhosa e muito espirituosa.
À medida que aprendemos mais acerca do caso de George Santos, sentimo-nos, de certo modo, cada vez mais como Gabriel Syme se sente ao longo da rocambolesca narrativa de Chesterton: deslumbrados, confusos, baralhados e surpreendidos. Em certos momentos, um pouco assustados. Um político numa das mais altas esferas de um dos mais sofisticados e escrutinados - e exigentes, do ponto de vista eleitoralista - sistemas democráticos afinal não é nada daquilo que diz ser. Como terá chegado lá? Quem será Santos, na verdade? O que é a verdade, afinal? O que vemos do mundo senão as suas costas?
As comparações e analogias em que George Santos surge a par de Frank Abagnale, Jr. (Leonardo DiCaprio, Catch Me If You Can, 2002) ou ao lado de Tom Ripley (Matt Damon, The Talented Mr. Ripley, 1999) têm abundado desde que começaram a vir a público as incongruências, meias-verdades, mentiras descaradas e demais trapalhadas entretanto reveladas acerca do congressista republicano. Contudo, acredito que colá-lo a estas duas personagens peca por insuficiente: George Santos é muito mais do que um trafulha, George Santos é um agente do caos e da destruição, um político sem escrúpulos que lança, sem temor, a confusão para que, no meio da poeira que se levanta, possa corroer e destruir o sistema e o partido que lhe permitiram a ascenção - mais que não seja, por via do aumento da descrença nos políticos republicanos (sim, o partido ainda não lhe retirou o apoio).
A personagem que Chesterton desenvolveu viu-se no meio de uma embrulhada depois de ter cedido à curiosidade - durante uma conversa com um anarquista, este desafia Gabriel Syme a questionar a ordem das coisas mundanas, que é pré-concebida na cabeça do comum mortal. O anarquista recorre a um exemplo de que me lembro nebulosamente: uma viagem de metro. Syme é desafiado a descrever o que se espera de uma viagem de metro e responde, pragmaticamente, que é previsível: entra-se no comboio em determinada estação e sai-se do comboio na estação que se definiu como destino. O anarquista retorque argumentando que entre um e outro eventos - entrar numa e sair noutra estação - há todo um universo possível, toda uma infinidade de fenómenos passíveis de acontecer, desde avarias a guerras mundiais, passando por cataclismos de maior ou menor dimensão.
O mesmo sucede connosco, audiência, assistindo ao bizarro espetáculo da ascensão de George Santos. Surpreendidos e enganados, porém extremamente curiosos, continuamos a aproximarmo-nos do caso, espiando cada vez de mais perto e com crescente curiosa mórbida, à espera do que se vai seguir. E, neste exercício em que nos aproximamos excessivamente do enigmático senhor Santos, vamos perdendo a perspetiva do mundo e do caos que se pode gerar num organismo que se deixa contaminar pela existência de um elemento altamente perturbador.
É que George Santos já mentiu acerca de tudo, desde o percurso académico - afirmou ter frequentado universidades que nunca ouviram falar dele e que dele não têm o menor registo - ao trajeto profissional - diz ter trabalhado para bancos e corretores que rejeitam a ideia de algum dia terem registado qualquer trabalho seu -, da sua ascendência judia - chegou a jurar que a família tinha escapado ao Holocausto, mas depois acabou por reconhecer que tinha suspeitas de haver um ou outro antepassado que talvez fosse judeu - à data da morte da mãe, Fátima Devolder - contou ao mundo que morrera nos atentados do 11 de setembro, todavia há uma certidão de óbito em nome de Fátima que data de 2016. Nem vale a pena falar dos discursos em que Santos se colava à defesa dos direitos LGBTQIAPN+ antes de se ter tornado o primeiro congressista republicano abertamente gay - mas será que é mesmo? A dúvida é, no mínimo, legítima.
Num mundo político, que é rico em jogos de bastidores e ao qual só vemos as costas, e num partido como o Grand Old Party, Geoge Santos comporta-se como o misterioso e implacável Domingo, líder do Conselho Central de Anarquistas: lança a dúvida e a inquietação, e assim abala as fundações e os alicerces daquilo que muitos dão por garantido - se não a verdade, pelo menos uma versão aceitável da mesma. "Nem sequer lhe sabemos o nome", afirmou o consultor político Stuart Stevens - e tem razão, pois Santos costumava apresentar-se publicamente como Anthony Devolder. Quem será realmente George Santos, se não lhe virmos apenas as costas?