Se lhe parece improvável que a ficção científica televisiva possa causar tanto impacto num multimilionário racional, atente: depois de anos a apelar aos detentores da marca Star Trek, Bezos conseguiu finalmente ter um pequeno papel, em que fazia de oficial alienígena da Frota Estelar, em Star Trek Beyond (2016) [Star Trek: Além do Universo], onde dizia algumas deixas. "Implorei durante anos à Paramount para me deixar entrar num filme Star Trek", admitiu. "Fui muito persistente. Disse-lhes: ‘olhem, eu ponho muita maquilhagem. Serei invisível. Ninguém saberá que sou eu. Mas quero um papel em que fale’". Num adicional tributo à sua série favorita, Bezos deu à sua cadela labrador o nome de Kamala, que foi buscar a uma personagem de Star Trek (e antes de esse nome estar amplamente associado à vice-presidente democrata eleita no passado mês de novembro nos EUA).
Musk também marcou presença num filme, Iron Man 2, fazendo o papel dele próprio. O papel de figurante que desempenhou foi um agradecimento do realizador do filme, Jon Favreau, a quem Musk serviu de inspiração para a personagem Tony Stark, o empresário americano que se transforma no Homem de Ferro. Musk também é fã de Star Trek e batizou o seu veículo espacial interplanetário (ainda por ser lançado) de Starship – tal como na USS Enterprise. E foi ele que tratou de tudo para transportar num dos seus foguetões as cinzas do falecido James Doohan, o ator que fazia de Scotty em Star Trek, para que pudessem ser espalhadas no espaço. Cruelmente – mas não deixando de fazer sentido, atendendo a que o dever recorrente de Scotty era avisar o capitão Kirk que a Enterprise poderia partir-se se ele puxasse demasiado por ela –, o foguetão explodiu a meio da viagem. Os Trekkies – fãs da série Star Trek – ainda hoje agradecem a Musk pela sua atitude.
Quando entrevistei Musk pela primeira vez, em 2011, ele tinha conseguido colocar em órbita um foguetão Falcon 1 depois de três tentativas falhadas. Tinha sido o seu maior feito, disse. "Foram necessárias quatro tentativas. Quase que tive de aprender tudo a partir do zero. Tenho um curso de Física e isso ajuda". "A razão pela qual comecei a olhar para o espaço não foi na perspetiva de fundar uma empresa, mas de tentar compreender por que motivo é que não tínhamos avançado muito desde a era da Apollo. Outros domínios tecnológicos avançaram consideravelmente, mas, nesse campo, andámos para trás. Se em 1969 disséssemos a alguém que dali a 42 anos os Estados Unidos não teriam sequer conseguido colocar [seres humanos] em órbita, essa pessoa não acreditaria – se é que não nos daria um murro na cara. Precisamos de assistir a um verdadeiro afluxo dos melhores empreendedores e tecnólogos do mundo às viagens ao espaço para que a tecnologia progrida e alargue as fronteiras".
Evidentemente, tal como a recompensa é potencialmente enorme, também o risco o é. O próprio Musk reconheceu que "a maneira mais rápida de fazer uma pequena fortuna na indústria aeroespacial é começar com uma grande fortuna". Já muitos milhares de milhões de dólares foram perdidos por empresários espaciais privados, embalados pelo romantismo da exploração espacial.
Musk admitiu, numa entrevista que me deu mais tarde, que esteve muito perto de um esgotamento nervoso quando achou que o seu empreendimento SpaceX estava prestes a falir, deixando-o sem um cêntimo. À última hora, apareceu a NASA com um contrato de 1,6 mil milhões de dólares. "Sim, creio que foi a altura mais negra da minha vida. Lembro-me de acordar e pensar: ‘Ui, nunca achei que fosse capaz de ter um esgotamento nervoso’. Achava que isso era coisa de gente fraca, ou algo do género, e ali estava eu… foi o mais perto que estive disso. E felizmente, no dia seguinte, a NASA telefonou. Se não o tivesse feito, teríamos ido à falência alguns dias depois do Natal".
Musk está sempre preparado para falar honestamente sobre os seus desastres e os seus admiradores adoram-no pelos seus fracassos heróicos e pelo seu estilo hilariante. A SpaceX partilhou nas redes sociais um vídeo de "apanhados" com vários fiascos dos foguetões reutilizáveis Falcon de Musk a despenharem-se no mar em vez de aterrarem nos barcos-drone como seria suposto. Bezos também teve os seus desastres – e sem eles, nunca teria havido um programa de desenvolvimento de foguetões – mas não os publicita. Nem sequer dá, por norma, entrevistas à imprensa. As nossas abordagens foram educadamente rejeitadas.
Bezos é constante e sistemático. Foi bem sucedido no lançamento e aterragem do mesmo foguetão, por seis vezes, para demonstrar a sua capacidade reutilizável, tendo pintado uma tartaruga na lateral no final de cada tentativa. Simboliza a filosofia de Bezos de que a tartaruga, pelo menos na fábula da lebre e da tartaruga, acaba por ganhar a corrida. "Passo a passo, ferozmente", é o lema da Blue Origin, uma abordagem explicada por Bezos num email aos fãs. "A longo prazo, ser-se ponderado e metódico leva-nos à vitória, e acabamos por ser os mais rápidos a fazer as coisas ao nunca ignorarmos etapas".
Bezos sabe que isto é uma maratona e não uma corrida de velocidade, e está sentado em cima de uma montanha de dinheiro que poderá conferir-lhe uma indiscutível vantagem. Há um velho ditado na indústria espacial que diz: "No bucks, no Buck Rogers" – e que significa que sem dinheiro não há viagens ao espaço [‘bucks’ é dinheiro, em jargão; e Buck Rogers é a personagem de uma banda desenhada de inícios do século XX, mais tarde transposta para a TV e cinema, que dá corpo a um astronauta militar]. "Há um sentimento muito real de que a Amazon… é o meu prémio da lotaria. Estou a agarrar nesse dinheiro ganho na lotaria e a investi-lo na Blue Origin", disse Bezos. Numa rara revelação acerca das finanças da Blue Origin, acrescentou: "Vendo cerca de mil milhões de dólares de ações da Amazon todos os anos e aplico esse dinheiro na Blue Origin".
Embora o contrato de Musk com a NASA lhe tenha dado vantagem, Bezos tem estado a recuperar o atraso. Tal como Musk, tem aproveitado as oportunidades das agências governamentais. Quando ambos concorreram a financiamento para desenvolver sistemas de aterragem que permitiriam aos astronautas descerem à superfície da Lua ou de outros planetas, Bezos ficou com a fatia de leão. Em abril, a NASA concedeu-lhe 578 milhões de dólares; o contrato ganho por Musk foi no valor de 135 milhões de dólares. Bezos também obteve 500 milhões de dólares da Força Espacial dos Estados Unidos – um ramo, com um nome encantador, da Força Aérea norte-americana incumbido de travar ameaças do espaço cósmico – para o ajudar a desenvolver o New Glenn, o foguetão que ele espera que lhe venha a dar vantagem sobre o seu rival e que se perfile como um símbolo da superioridade da Blue Origin.
Se duvida que dois homens tão brilhantes pudessem envolver-se no equivalente à marcação de pontos, só tem de olhar para a forma como os seus foguetões vão ficando cada vez maiores. Quando, em 2016, Bezos anunciou um foguetão maior do que o Falcon 9 de Musk, o seu rival voltou a brilhar quando anunciou aquilo a que chamou um sistema de transporte interplanetário. O novo foguetão de Musk teria 121 metros de altura – 24,3 metros maior do que o New Glenn – e seria, supostamente, capaz de transportar passageiros até Marte em 2024. Depois disso foi rebatizado de Starship, e os voos de ensaio da versão experimental do sistema já começaram. Bezos revelou depois os planos para o seu foguetão New Armstrong, assim denominado em alusão a Neil Armstrong, o primeiro homem a pisar na Lua. Os seus detalhes são secretos, mas será quase certamente um desafio ao Starship, com capacidades semelhantes ou melhores.
Os dois homens chegaram ao ponto de se defrontarem por causa dos seus astronautas de plástico. Cobiçando o boneco de Bezos, inteligentemente chamado de Manequim Skywalker, Musk colocou o seu próprio manequim num foguetão para interceptar a órbita de Marte e, em homenagem a David Bowie, deu-lhe o nome de Starman. Bezos não conseguiu resistir a dar uma cotovelada às ambições do seu rival de colonizar Marte. "Meus amigos que querem ir viver para Marte", anunciou numa palestra em Nova Iorque, "digo-vos: façam-me um favor – vão primeiro viver para o cume do Monte Everest durante um ano e vejam se gostam, porque é um jardim do Paraíso comparado com Marte".
No entanto, por detrás das artimanhas da rivalidade entre homens ricos estão também em disputa enormes recompensas financeiras. O prémio não está na prospeção de metais raros dos asteróides nem no estabelecimento de colónias fora da Terra. O prémio está na nova era da Internet. Para uma loja online, as receitas podem disparar. Musk também se apercebeu desse potencial e concebeu um projeto com vista a criar uma constelação de 12.000 satélites que circulem à volta da Terra e levem Internet de alta velocidade aos milhares de milhões de pessoas que ainda não lhe têm acesso. O potencial do projeto, denominado Starlink, é extraordinário. O custo total para conceber, construir e implementar a constelação estava estimado pela SpaceX, em maio de 2018, em cerca de 10 mil milhões de dólares. Mas alguns documentos internos que vieram a público em janeiro de 2017 indicavam que a SpaceX crê que este negócio dos satélites lhe poderá gerar receitas de 30 mil milhões de dólares.
Uma vez mais, Bezos corre para não ficar atrás de Musk. Obteve permissão para lançar 3.236 satélites, no âmbito de um programa rival chamado Projeto Kuiper (pronuncia-se Ki-per), que chegarão a "dezenas de milhões de pessoas sem o acesso básico à Internet de banda larga". Ele deveria ter acrescentado que isto lhes dará um conveniente acesso à sua loja online Amazon e que aumentará fortemente o número de potenciais clientes. A gerir a Kuiper Systems – empresa criada para o efeito – está um experiente executivo chamado Rajeev Badyal, que percebe do negócio de satélites talvez melhor do que ninguém e que tem um conhecimento profundo da constelação Starlink de Musk. E isto porque trabalhou para Musk e geriu a Starlink antes de se passar para o outro lado.
Quem quer que ganhe a corrida a primeiro fornecedor de Internet global é provável que seja aclamado como um gigante tecnológico, um inventor que terá mudado as vidas da humanidade. Ashlee Vance, biógrafo de Musk, coloca as coisas da seguinte forma: "Imagine que tem uma empresa de foguetões para lançar estes satélites, bem como milhares de milhões de dólares, e que muitas pessoas notáveis levam as suas ideias a sério. Isso não é [apenas] inebriante. É como receber cocaína líquida por via intravenosa e fazer amor com tudo o que esteja disponível no Monte Olimpo durante uma farra de quatro dias".
Mais recentemente, Musk e Bezos acalmaram as suas narrativas, talvez por estarem distraídos com considerações mais terrenas. Ambos viram as suas vidas privadas sob escrutínio. No início do ano passado, os media americanos descobriram que Bezos estava a ter um affair com Lauren Sánchez, uma piloto de helicópteros que fundou a Black Ops Aviation – empresa que fez os vídeos promocionais da Blue Origin. Bezos anunciou de imediato que ele e a sua mulher, MacKenzie, estavam em processo de divórcio.
Enquanto isso, Musk foi chamado a depor no processo por difamação intentado por Johnny Depp [contra o jornal The Sun, que o chamou de ‘espancador de mulheres’ devido às agressões que a ex-mulher diz ter sofrido durante o casamento], por ter namorado com Amber Heard, então mulher de Depp, se bem que Musk tenha insistido que o caso entre os dois aconteceu depois do divórcio de Depp e Heard. Musk está atualmente numa relação com Claire Boucher, uma cantora-compositora canadiana conhecida profissionalmente por Grimes, com quem tem um filho chamado X Æ A-Xii. Temporariamente, pelo menos, a disputa ficou em modo pausa.
Além do inebriamento, dos brinquedos dos rapazes, das aventuras milionárias e do vasto potencial comercial, há quem veja outras considerações, talvez ainda maiores, a longo prazo. Existem enormes implicações estratégicas associadas aos sonhos espaciais dos dois milionários. De tal forma que poder-se-á dizer que a o engenho empresarial de Bezos e Musk são a melhor hipótese da América para travar o crescente poderio comercial e militar de outras superpotências espaciais, nomeadamente a China e a Rússia. Poderão estes dois milionários um dia unir forças, em prol do interesse nacional? Não contem com isso. Nas temperaturas geladas do espaço, a vingança é um prato que se serve frio.
Este artigo foi alterado a 03/12/20 e a 10/12/20 para dar conta de Chris Davenport do The Washington Post e de Tim Fernholz da Quartz como sendo as fontes de parte do material. As nossas desculpas pelas omissões.
Créditos: Nick Rufford/The Times
Tradução: Carla Pedro