Viver

E viveram felizes para sempre, cada um na sua casa

Living Apart Together (LAT) foi o termo dado pelos sociólogos aos casais, cada vez mais numerosos, que optam por viver separados. E se existem vantagens numa escolha destas, há também, tal como em tudo o que envolve o Amor, um rol de valores que devem ser cumpridos e acarinhados.

Gwyneth Paltrow e o marido Brad Falchuk vivem em casas separadas Foto: Getty Images
23 de dezembro de 2020 | Pureza Fleming
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Frida Khalo (Cidade do México, 1907-1954) e Diego Riviera (Guanajuato, México, 1886 - Cidade do México, 1957) foram dois grandes artistas mexicanos que se destacaram não só pela sua arte, mas também pela relação tumultuosa, única e linda — ingredientes chave para uma grande história de amor — que mantiveram ao longo das suas vidas. Conheceram-se em 1922, ela com 15 anos de idade e ele com 36, já um artista consagrado. Unem-se, pela primeira vez, em 1929, e o resultado é um casamento atribulado, devido aos fortes temperamentos de ambos e a diversos casos extraconjugais mantidos por um e pelo outro. Divorciam-se, e em 1940 voltam a casar, sendo que com o casamento regressam também os antigos maus hábitos. De forma a conseguirem manter a relação (sem se matarem um ao outro, entretanto), Frida resolve construir uma casa igual à de Diego, ao lado da casa em que ambos tinham vivido. Essa casa ligava-se à outra através de uma ponte. E assim viviam eles, como marido e mulher que estão juntos (pelo amor) mas separados (fisicamente), encontrando-se, ora na casa de um, ora na casa do outro, todas as madrugadas.

Poderíamos afirmar desde já que o casal de artistas mexicano se encontrava "muito à frente" para a época ao adoptar este estilo de convivência. Ou então constatar apenas que não tiveram outro remédio senão fazê-lo — de outra forma, tudo indicava que a relação poderia acabar muito mal. Vistas assim as coisas, dir-se-ia que não tiveram sequer escolha. Recentemente, os sociólogos apelidaram a este estilo de vida em casal, como o de Frida e de Diego, de Living Apart Together ou LAT. "Viver juntos coloca um enorme fardo sobre a outra pessoa, na relação, para se ser amante, amigo, companheiro, gestor, ajuda doméstica, o que é quase impossível e pode levar à decepção, especialmente se tudo isto é compartilhado entre quatro paredes. Todos sabemos como muitas discussões de casal incluem o número de vezes que um e outro puseram a louça na máquina, ou aspiraram a casa. A não partilha de casa diminui — se é que não evita — este tipo de stress na relação e este é um factor a favor da não coabitação", elucida-me a Terapeuta de Casal, Catarina Mexia. Enquanto alguém que adora partilhar um quotidiano, e que vê nisso uma mais valia e não um fardo, questiono se esta escolha não poderá constituir, de certa maneira, uma forma de escapismo. "Como em tudo, se optarmos por uma solução como forma de evitar o stress e a ansiedade de novos desafios, pode ser visto como facilitismo. Contudo, as faixas etárias que optam por esta solução concentram-se nas idades mais jovens e, depois, nos mais idosos. Ou seja, naqueles que ainda não tiveram uma experiência de coabitação e nos que já tiveram longos períodos de coabitação. O divórcio é, ainda assim, um forte motivador para este tipo de comportamento". Uma série de pesquisas demonstraram que o casal LAT típico tem mais de cinquenta anos. Depois de viverem sozinhos por um tempo — talvez após uma viuvez ou um divórcio —, estes casais entendem que prosperam quando têm independência bem como o seu espaço individual, e não querem desistir disso quando iniciam um novo relacionamento amoroso e comprometido. Porém, os especialistas avançam que as relações LAT já se encontram em ascensão entre os millennials, muito graças à crescente independência das mulheres, ao mercado de trabalho em veloz globalização e ainda à normalização de outros tipos de relacionamento "não tradicionais", como seja o Poliamor. Aquela terapeuta adianta que a maioria dos casos que lhe surgem em consultório são pedidos de ajuda para gerir uma situação já existente ou algo que os casais pretendem pôr em prática. Entre os principais entraves desta escolha de vida em casal encontram-se as questões financeiras, mas também aquelas ligadas aos filhos: "É caro viver-se em casas separadas. As despesas são a dobrar. E também se existem filhos em conjunto… Como um casal que acompanhei há algum tempo, que se constituiu por amor, teve um filho, e manteve a vida em casas separadas. A não partilha do desenvolvimento do filho pode ser um desafio difícil de ultrapassar, mesmo que conscientemente assumido".

A escolha de se estar junto, mas separado, expõe, como em tudo nesta vida, prós e contras, sendo por isso uma escolha única e particular de quem está envolvido na decisão. Ainda assim, Catarina Mexia assegura que viver-se separado, mantendo uma relação de compromisso, têm inúmeras vantagens: "As mais referidas por quase todos os estudos relacionam-se com a preservação da independência e da autonomia. Por outro lado, das situações que conheço, [este tipo de relacionamento] favorece largamente o não aparecimento daquilo a que muitos de nós designamos por rotina. A não convivência permanente, a não partilha do mesmo espaço em regime de exclusividade, têm um sabor de necessidade de conquista, de novidade que contrasta com o 'ter o outro por adquirido’. Relembra que a deslocação à casa do outro é quase um "cerimonial que envolve toda uma preparação que não é compatível com o desleixo e o descuido que muitas vezes vemos acontecer numa relação em que o outro está simplesmente ali". O que me leva à questão do tal facilitismo: com um pouco de esforço e de empenho a rotina não pode ser vencida? Um casal não deveria viver, efetivamente, ‘em casal’? "Sim e não. Uma relação é sempre constituída por duas pessoas que em interacção criam uma terceira entidade conhecida pelo nós. Às vezes essa é bem sucedida e a coabitação é uma realidade feliz; ou então as perspectivas individualistas são difíceis de quebrar, o desligamento das famílias de origem não se dá, entre outras razões, e não há um final feliz para essa tentativa de coabitação. Para muitas pessoas, e eu atrever-me-ia a dizer, para os portugueses em específico, uma casa ou um lar em comum é sinal de que existe uma família, de que se conseguiu construir alguma coisa. Mas a realidade é que as relação constroem-se para além das coisas materiais, e a filosofia de quem opta por esta forma de relacionamento fala muito em cumplicidade, liberdade, respeito pelo espaço do outro, amor. Pode dizer-me que podemos ouvir tudo isto de quem partilha casa, mas se o ouvimos também de quem não partilha se calhar essas pessoas estarão no caminho certo", assoma aquela terapeuta. E traz à conversa a questão das famílias "modernas", das famílias reconstruídas com ‘os teus e os meus’, que são cada vez mais uma realidade. Nestes casos específicos, assegura que "a vivência de uma relação em casas separadas evita, entre outras coisas, as dificuldades de uma educação partilhada dos filhos do outro em regime contínuo, deixando o tempo em comum mais livre para investir na relação, mesmo que na presença desses mesmos filhos".

Este tema faz, de certa forma, relembrar um aclamado texto de Miguel Esteves Cardoso que reza o seguinte: "Hoje as pessoas apaixonam-se por uma questão de prática. Porque dá jeito. Porque são colegas e estão ali mesmo ao lado. Porque se dão bem e não se chateiam muito. Porque faz sentido. Porque é mais barato, por causa da casa. Por causa da cama. Por causa das cuecas e das calças e das contas da lavandaria. (…) Hoje em dia as pessoas fazem contratos pré-nupciais, discutem tudo de antemão, fazem planos e à mínima merdinha entram logo em ‘diálogo’. O amor passou a ser passível de ser combinado. Os amantes tornaram-se sócios. Reúnem-se, discutem problemas, tomam decisões. O amor tornou-se uma questão prática". E a questão que coloco é: não se tratará, este tipo de vivência em casal, de mais uma coisa… ’prática’? Inventada pelos para se evitar as chatices próprias da vida? "Este é um desafio importante, pois envolve um processo de amadurecimento pessoal em que estas relações, tal como as outras, são relações em que o factor diálogo franco e confiança representam dois ingredientes fundamentais. O amor não tem nada a ver, esse pode lá estar sempre, se não houver uma capacidade de diálogo franco e constante e uma capacidade de confiar, em nós mesmos, antes de confiarmos no outro, não funciona", remata aquela terapeuta de casal.

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Tal como Miguel Esteves Cardoso adiantava: "O amor é uma coisa, a vida é outra. O amor não é para ser uma ajudinha. Não é para ser o alívio, o repouso, o intervalo, a pancadinha nas costas, a pausa que refresca, o pronto-socorro da tortuosa estrada da vida, o nosso ‘dá lá um jeitinho sentimental’". Não há uma receita para se definir o amor, nem tão pouco uma que nos diga de como este deverá ser vivido. Mas há a certeza de que onde amor há vida e de que onde vida há esperança. Seja a partir da mesma casa, de uma casa ou de outra casa. Afinal, é só um espaço físico e o amor, esse, pode ser transcendental.

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