A notícia não fez muito ruído por cá, mas ainda assim foram vários os meios que lhe deram um bocadinho de atenção: Matteo Messina Denaro, o "último padrinho" da máfia siciliana, foi preso a 16 de janeiro deste ano. Prenderam "o último padrinho", dizem, mas veremos mais adiante se foi mesmo assim e o que é que isso significa. Desde então, têm vindo a público algumas revelações de maior ou menor interesse acerca de Messina Denaro, aquele a quem puseram a alcunha de Diabolik. Por exemplo, sabe-se que tinha amantes, que essas amantes não sabiam de quem se tratava e uma delas terá mesmo dito à imprensa italiana que Denaro era um cavalheiro de bom trato, gentil e atencioso. "Não podia imaginar que se tratava do homem mais procurado de Itália", declarou a senhora sob a proteção de um mais que justificado e compreensível anonimato.
TOTÓ RIINA
São muitas as coisas que não se sabem, ou não se sabiam, acerca de Messina Denaro e da máfia siciliana, e isso lembra-me uma história, ou até várias, principalmente do tempo em que os noticiários cá em Portugal abriam pontualmente com notícias de atentados em Itália com assinatura da máfia. Era uma época em que o nome Totò Riina soava familiar aos telespectadores portugueses, que ainda por cima tinham visto pouco tempo antes uma série televisiva que continha tudo para ser um sucesso de audiências: O Polvo, ou La Piovra, no original, uma história em que o destemido comissário Corrado Cattani (Michele Placido) perseguia e não dava tréguas a uma máfia violenta e cheia de artimanhas.
Salvatore "Totò" Riina veio desmontar a ideia de que os comissários da vida real podiam ser como Cattani era na ficção, por melhor que essa ficção fosse. O impiedoso Riina, U Curto ("o baixote", em siciliano – Riina tinha um metro e 58 de altura), aniquilou sem hesitação os juízes antimáfia Giovanni Falcone e Paolo Borsellino, num momento em que se esperava que a Cosa Nostra, principal associação mafiosa da Sicília, pudesse finalmente ser desmantelada.
Totò Riina não é aqui mencionado por acaso. O título de "último padrinho" de Messina Denaro foi herdado precisamente de U Curto, quando este morreu na prisão em 2017, fazendo de Diabolik uma espécie de chefe de todos chefes, "capo di tutti capi", o líder supremo da organização. Riina, ao contrário de Denaro, não aguardou pela morte de ninguém para chegar à cúpula do poder mafioso. Astuto como quase todos os que são bem-sucedidos no mundo mafioso, mas violento como poucos ousaram ser, Totò Riina foi o responsável, por exemplo, pelo assassinato de Michelle Navarra, um dos mais poderosos chefes mafiosos da Cosa Nostra. Navarra era, nessa altura, chefe de Luciano Leggio, a quem Riina era leal. Assim, Leggio ascendeu ao principal posto e pouco depois foi preso, deixando a Totò Riina o cargo máximo.
CORLEONESI
Toda esta linhagem - chamemos-lhe assim - de mafiosos pertence a um clã que passou a ser conhecido como Corleonesi. Quem viu – ou leu – O Padrinho estará familiarizado com o nome Corleone, o apelido da família de Don Vito, chefe de um dos cinco clãs de Nova Iorque e, posteriormente, apelido do mais poderoso chefe mafioso em território norte-americano, Michael Corleone. Acontece que Corleone não era o apelido original de Don Vito. A questão do apelido fica clara na analepse de O Padrinho II, na passagem em que Vito, ainda pequeno, desembarca nos Estados Unidos juntamente com centenas de outros emigrantes italianos. É quando Vito faz o registo de entrada no novo país que, devido a um equívoco, fica registado com esse nome. Porém, o que Vito queria dizer é que vinha de Corleone, uma pequena cidade no Oeste da Sicília.
É precisamente do nome da cidade que o clã mafioso herdou o nome Corleonesi, ou seja, os corleoneses. Fundado durante os anos de 1970, o clã Corleonesi acabou por integrar membros que não eram necessariamente de Corleone. Durante a Segunda Guerra da Máfia, que envolveu fações opostas da Cosa Nostra desde a década de 1970 até ao início da década de 1990, os Corleonesi distinguiam-se por serem a principal oposição aos Palermitans, que, como o nome sugere, estavam sediados na capital siciliana, Palermo.
A Segunda Guerra da Máfia é também conhecida como A Grande Guerra da Máfia, ou ainda como a Mattanza – sim, "a matança", tal foi o número de homicídios que provocou (não se saberá ao certo quantos foram, mas sabe-se que se contam aos milhares). Entre as vítimas da Mattanza, além de membros das fações opostas, encontram-se ainda inúmeros procuradores do Ministério Público, políticos, detetives, agentes, ativistas e muitos mais representantes da oposição ideológica àquilo que é – ou àquilo em que se transformou – a máfia.
A Segunda Guerra da Máfia foi instigada pelos Corleonesi. Depois de várias alianças entre famílias e clãs, e na era de grandes mudanças que se seguiu à prisão de Luciano Leggio, Salvatore "Totò" Riina liderou sem escrúpulos o crescendo do seu clã. Os assassinatos de líderes antagonistas do grupo de Coreleone sucederam-se a uma velocidade estonteante no início dos anos de 1980, deflagrando a Mattanza que haveria de ceifar muitas vidas entre mafiosos, civis e elementos ligados às instituições estatais, ao mesmo que garantia aos Corleonesi a liderança da Cosa Nostra.
A Grande Guerra da Máfia foi estancada, ou pelo menos suavizada, após o Pacto Estado-Máfia, um acordo entre membros das instituições italianas e a Cosa Nostra. O pacto consistia, muito sucintamente, na suspensão dos ataques mortíferos por parte da máfia, sendo que, em troca, o estado italiano garantia brandura – ou até maior benevolência – no tratamento de casos de priorioneiros mafiosos que, até então, estavam sujeitos a um regime de "prisão dura" instituído pelo grupo de luta antimáfia que fora liderado pelo juiz Giovanni Falcone – esse mesmo que Totò Riina mandou matar em 1992.
O QUE É MÁFIA
Ouvimos a palavra máfia e associamo-la imediatamente a coisas que, numa sociedade dita e tida como sã, são vistas como más: o submundo, o obscuro, os bastidores e, em casos mais extremos, a alta criminalidade, tráfico de droga, controlo de sistemas de prostituição e, claro, matança. Porém, esta é uma ideia moderna do significado de máfia. Esta ideia, obviamente, deriva das práticas instituídas e levadas ao extremo. Porém, a origem do termo é, de certo modo, honrosa. O mafioso era, até há não muito tempo, o indivíduo destemido e hábil que, graças aos seus dotes – físicos, intelectuais e diplomáticos – mais ou menos lícitos, conseguia defender a sua família, a sua comunidade, a sua terra. A licitude desses atos deve sempre ser posta em perspetiva: o termo máfia tem origem no Sul de Itália ou na Sicília, territórios amplamente menosprezados pelos estados, quer na era da república italiana, quer no período que antecedeu esta. O mafioso defendia, à sua maneira, os interesses das comunidades que eram menosprezadas pelo sistema.
No século XIX, e segundo o académico italiano Diego Gambetta, o adjetivo italiano mafioso (mafiusu, em siciliano) significava "destemido", "empreendedor" e "orgulhoso", no sentido e na medida em que defendia a honra de um determinado grupo. Referindo-se a uma mulher, o adjetivo mafiusa significava "bela" ou "atraente".
Etimologicamente, o termo deriva, sem dúvida, de uma expressão árabe. Graças à presença islâmica na Sicília entre o final do primeiro e o início do segundo milénios, a palavra ficou enraizada na cultura. A palavra que lhe deu origem, ao certo, é fonte de debate, mas entre as várias hipóteses, há traços que acabam por fazer todo o sentido na definição que máfica acabou por ganhar antes de se transformar em sinónimo de organização criminosa. De "lugar de sombras" a "indivíduo merecedor de regime de exceção" (nos impostos, por exemplo), passando por "agressivo e gabarolas" ou "rejeitado do sistema", ou ainda por "proteção", as definições dos diferentes vocábulos árabes todas se encaixam e se enquadram na construção global do significado mais romântico de máfia ou de mafioso.
PARA LÁ DA COSA NOSTRA
Voltando ao princípio: será Diabolik realmente o último dos chefes da máfia? Não. Claro que não. Matteo Messina Denaro foi preso em Palermo, numa clínica onde fazia tratamento a, segundo a imprensa italiana, um cancro. Denaro era procurado pelas autoridades há mais de 30 anos. Não havia sequer fotografias dele desde cerca de 1993, era procurado com recurso a projeções do seu rosto feitas a partir de inteligência artificial. O motivo da sua procura: centenas de suspeitas de homicídios – certa vez, na década de 1990, terá mandado um recado à imprensa (que se questionava acerca de quantas pessoas teria matado o Diabolik) dizendo que as pessoas que matara "dariam para encher um cemitério inteiro". Não especificou a dimensão do cemitério, não deixa de ser uma declaração impressionante.
Quando se diz que Denaro é "o último padrinho", está-se a fazer um eufemismo bonzinho, cheio de otimismo. Não será sequer o último chefe dos Corleonesi, quanto mais da máfia. Só na Sicília, além desse clã, ainda há os outros pretendentes à cúpula da Cosa Nostra; e além da Cosa Nostra, há outras organizações divergentes, como a Stidda, que é rival em certos territórios e determinados negócios. Fora da Sicília, e só para mencionar as mais conhecidas, existem a Camorra, da Campania (Nápoles) e a poderosíssima ‘Ndrangheta, da Calábria. Na vizinha Apúlia, existe ainda a muito obscura e igualmente perigosa Sacra Unita Corona. Tudo isto só no Sul da Itália. Não, Matteo Messina Denaro não é o último padrinho – e muito mais rapidamente será derrotado pelo cancro do que a máfia será derrubada pelo estado.