Viver

Como lidar com a ansiedade em tempos de covid-19?

Encarar o desconhecido não é fácil e pode gerar sentimentos de ansiedade ou mesmo depressão. Perante uma ausência de respostas é importante que se mantenha a calmo e que não permita que os sentimentos mais negativos levem a sua avante. Com o auxílio de uma psicóloga a Must dá uma ajuda nesse sentido.

Foto: IMDb
23 de abril de 2020 | Pureza Fleming
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Assim que começo a escrever este texto eis que surge, do lado direito do ecrã do meu computador em formato de pop up, uma notícia do Diário de Notícias cujo título reza o seguinte: "Coronavírus. Histórias de quem já não recebe um tostão". Paro de escrever, recosto-me no conforto da minha cadeira e penso: " Como é que eu posso dizer a estas pessoas para lidarem com a ansiedade, seja lá de que maneira for?" Eu sou freelancer e, felizmente, tenho a sorte de poder continuar a trabalhar exactamente no mesmo registo em que trabalhava há um mês. Para mim tudo permanece praticamente na mesma — à excepção do facto de não saber o meu dia de amanhã, tal como acontece com o resto do mundo neste momento. Contudo, a vida de freelancer obriga a isso mesmo, a viver no agora sem pensar muito no que se vai passar amanhã. Digamos que a vida de freelancer me tornou mais resiliente do que algum dia havia sido. E mais presente — sim, aquele cliché de se viver no agora tão aclamado pelas teorias New Age é real e recomenda-se — sobretudo em alturas como esta que estamos a presenciar. Ainda assim, como dizer à esteticista, ao consultor imobiliário, à psicóloga, ao taxista e à mulher-a-dias que contaram ao DN como é que o coronavírus lhes havia trocado as voltas à vida e os havia deixado "sem um tostão", para terem calma? Como os aconselhar a sossegarem a ansiedade quando a vida real tem de continuar a acontecer, só que agora ela tem de se desenrolar sem o básico e o essencial?

"Antes de mais, é importante aceitarmos que estamos perante uma situação excepcional que nos provoca desconforto por várias razões. Por um lado, estamos a combater um inimigo ainda pouco conhecido, por outro, quer a um nível pessoal, quer a um nível social, não temos respostas para todas as nossas preocupações ou soluções imediatas para os nossos problemas". As palavras são da psicóloga clínica Cristiana Pereira, da Oficina da Psicologia, e, para já, não parecem resolver a vida daquelas pessoas acima citadas — nem de todas as pessoas invisíveis que sofrem na pele o que está a acontecer no mundo. A grande questão é que perante os factos, até à data, parece não haver uma solução. A incerteza quanto ao futuro ou perante o desconhecido faz eclodir no ser humano ansiedade bem como sentimentos de angústia. A mudança sempre foi um bicho de sete cabeças para a maioria das pessoas, daí que seja perfeitamente natural que, atualmente, se esteja mais ansioso do que o habitual, que haja mais preocupação, mais receios e uma sensação de se estar perdido. Porém, assevera aquela psicóloga, "é importante entender-se que tudo isto é normal. A ansiedade é um sentimento expectável nesta situação que, em maior ou menor grau, afecta a todos". Cristiana Pereira sublinha que é fundamental relembrar-se que a situação, "não vai durar para sempre, nem vamos ficar em isolamento para o resto da vida". A ansiedade, apesar de tudo, também desempenha uma função importante que é a de nos proteger: "Quando nos sentimos em estado de alerta ou perante uma possível ameaça, ficamos mais atentos e mais preparados para termos comportamentos de protecção e adaptar-nos à situação de modo a promover a nossa segurança e a dos outros", explica aquela psicóloga. Teoria à parte, pois para já tal não resolve a ansiedade, fundamental é saber como lidar com esta inimiga que parece ser simultaneamente inevitável mas importante à sobrevivência. A psicóloga Cristiana Pereira deixa alguns conselhos mais práticos que não prometem fazer milagres, mas garantem dar uma ajuda.

 - Comece por identificar o que sente quando está ansioso. Já reparou como é que a ansiedade se manifesta no seu corpo? Pode experienciar tensão muscular, sensação de "bola na garganta" ou aperto no peito, dor de cabeça, batimento cardíaco acelerado, náuseas e vómitos, vontade de ir à casa de banho, dificuldade em dormir ou sensação de "borboletas no estômago". Também pode ter mais ou menos apetite ou dormir menos ou mais do que o costume. A ansiedade pode tornar-nos mais receosos, em alerta, nervosos, irritáveis, incapazes de relaxar e de nos concentrarmos. Podemos sofrer por antecipação pensando, por exemplo, ‘e se eu ficar infectado?’, ‘e se os meus pais adoecerem?’, e auto-criticarmo-nos excessivamente — por exemplo, ‘não sou suficientemente bom, nunca faço nada bem’. Este tipo de pensamentos pode tornar-se repetitivo e negativo e ser difícil de parar. Tente identificar os pensamentos que o deixam mais ansioso. E, em relação aos outros, como é que se relaciona com eles quando está ansioso? Por vezes, a ansiedade afecta as nossas relações. Podemos dar por nós a evitar comunicar com os nossos amigos ou familiares, não respondendo às chamadas, não aceitando fazer video chamadas, ou discutir mais com aqueles que nos são mais próximos e partilham o mesmo espaço físico.

 - Quais são as situações que lhe estão a gerar mais ansiedade? Experimente fazer uma pirâmide com os seus receios e preocupações. Da base até ao topo coloque as situações ou os pensamentos que lhe causam mais ansiedade e inquietação em grau crescente. Este exercício também pode ser realizado em família, adaptado às crianças (como um jogo), onde todos constroem a sua escala, partilham e falam sobre os pontos que têm em comum e os semelhantes. Mais tarde, podem voltar a ele e refletir sobre o que mudou ou o que se manteve.

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 - Depois de conhecer melhor a sua ansiedade, pode começar a enfrentá-la. Concentre-se no 'aqui e agora’, nas actividades que está a fazer: cozinhar, fazer exercício, jogar um jogo, ler um livro, ver um filme. Existem pensamentos que o estão a perturbar? Se sim, pergunte-se sobre a probabilidade de isso acontecer. Tente encontrar cenários alternativos e tente adoptar pensamentos realistas de acordo com estes novos cenários.

 - O que é que neste momento pode fazer e controlar, além de lavar bem e frequentemente as mãos, manter o distanciamento social, permanecer em casa e fazer actividades de que gosta? Por agora, o que está ao nosso alcance prende-se com mantermo-nos informados e actualizados, usando apenas fontes oficiais de informação, tais como são a DGS, a OMS e a Ordem dos Psicólogos Portugueses. É aconselhável ver as notícias apenas uma vez por dia, pois existe a tendência para nos focarmos apenas na informação negativa.

 - Fale com amigos e com familiares. Partilhe com alguém o que está a sentir e como está a lidar com esta situação. Falar com alguém ajuda-nos a normalizar o que sentimos e a sentirmos que não somos os únicos a passar por isto, o que resulta numa diminuição da ansiedade.

 - E em relação ao passado? Com certeza que esta não é a primeira vez que passa por uma situação difícil, certo? O que é que o ajudou anteriormente? Existem algumas estratégias que aprendeu que pode usar ou adaptá-las à realidade actual?

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 - Crie uma lista com as actividades de tempos livres e de lazer que mais gozo lhe dão fazer. Coloque-a num local visível e reserve um período do seu dia, todos os dias, para se dedicar exclusivamente ao que mais gosta. Se algumas das actividades da sua lista que lhe dão mais prazer são realizadas no exterior, reinvente, seja criativo. Por exemplo, crie o seu ginásio em casa ou faça almoços e jantares virtuais com os seus amigos. Com certeza que existiu sempre aquela sensação de que não tinha tempo para fazer nada. O que é que ficava sempre na gaveta? São arrumações ou reparações em casa? Livros ou filmes que gostaria de ler ou de ver? Ou um prato que gostava de experimentar cozinhar?

 - Experimente, no final do dia, registar os aspectos positivos do seu dia, sozinho ou com a família, e faça um plano para o dia seguinte – pode usar a lista de tarefas que lhe dão prazer e a das coisas que não tinha tempo para fazer.

 - Crie um espaço e um momento diário de relaxamento. Escolha um local da sua casa que lhe transmita tranquilidade e onde se sinta confortável. Uma vez por dia (ou sempre que precisar) use esse espaço para relaxar, como por exemplo, ouça música de olhos fechados, faça um desenho ou use os livros para colorir. Por fim, lembre-se: projecte-se no futuro de forma positiva. Pense na forma como se vai sentir quando isto tudo terminar, na capacidade de adaptação que demonstrou, na criatividade que teve para manter as rotinas e evitar o aborrecimento, no tempo de qualidade que passou com a sua família, nas competências que desenvolveu, na forma como as suas relações e as da comunidade se fortaleceram. Podemos encarar esta experiência como uma oportunidade de crescimento individual e enquanto família.

Resumindo, é importante que se proteja e que cuide da sua saúde mental durante este período que atravessamos, "recorrendo apenas a informação oficial e verídica, criando rotinas, vendo as notícias apenas uma vez por dia, aproveitando para aprender algo novo ou para fazer aquelas tarefas ou actividades para as quais nunca tinha tempo, alimentando-se bem, evitando o álcool e as drogas e, por último, mas não menos importante, ligando-se aos outros", colmata aquela psicóloga. Por mais complicado que seja digerir este facto, a realidade é que a preocupação nunca resolveu  os problemas de ninguém. Esta é uma situação difícil de se aceitar, ainda mais para casos como são o do taxista ou da mulher-a-dias que, recebendo o salário à hora, de um dia para o outro se viram "sem um tostão". Mas é a realidade possível. Como se costuma dizer: é o que há. Tente praticar o que aconselha aquela psicóloga e, se os seus sentimentos de inquietação forem excessivos e/ou persistentes, se sentir que os níveis de ansiedade estão a interferir com o seu funcionamento na rotina diária, peça ajuda, contacte um psicólogo. De resto é tentar viver um dia de cada vez, fazer a sua parte e esperar que também isto passe. Porque passará. E quando me preparo para terminar esta peça eis que outra pop up surge, no mesmo lado direito do ecrã do meu computador. Desta vez lê-se o seguinte: "Crescimento nas infecções em Itália continua a baixar. Itália continua a viver um percurso descendente na percentagem de crescimento diário nas infecções por covid-19". Só para terminar em beleza e deixar bem claro: nem tudo são más notícias.

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