Mesmo agora, os críticos de Boris Johnson insistem que ele é um palhaço que não leva a sério a mais grandiosa e mais alta função de Estado. No entanto, como ficaram a saber aqueles que o queriam derrubar, tornar-se primeiro-ministro foi o culminar da obra da sua vida, uma proeza alcançada contra todas as probabilidades e que desafiou todos os padrões políticos. Algo que ele leva muito a sério, de facto. E de que não está pronto a abrir mão facilmente.
A crise atual por que Boris Johnson está a passar sintetiza uma carreira de altos e baixos, em que ele tem constantemente quebrado ou contornado regras em seu próprio benefício, simultaneamente encantando e exasperando os seus chefes, colegas, amigos, esposas e amantes. Uma e outra vez foi-lhe dado mais desconto do que a qualquer outra pessoa, porque uma e outra vez o seu partido, editor ou interesse amoroso vê que ele alcança o quinhão que mais ninguém consegue.
Esta eterna amarga barganha, negociada por todos os que com ele entram em contacto, foi talvez mais bem resumida por Conrad Black, proprietário da Spectator, que em 1999 nomeou Johnson como diretor da revista sob condição de que ele não se candidatasse a ser eleito para o Parlamento. Quando, menos de dois anos depois, Johnson fez exatamente isso, pelo círculo de Henley, Black até deitou fumo pelas orelhas, dizendo que o seu diretor era "indizivelmente traiçoeiro". Mesmo assim, segundo a biógrafa do primeiro-ministro, Sonia Purnell, ele não foi despedido, porque "ajudava a promover a revista".
E, de facto, ajudava. Por essa altura já ele tinha aparecido no programa Have I Got News For You, criando uma personagem desastrada e brincalhona para conquistar audiências televisivas como nenhum outro político conseguia sequer sonhar fazê-lo. E isto foi sempre uma personagem. Johnson, o sempre-em-pé quebra-regras era também Johnson o metamorfo, um perspicaz avaliador daquilo que era popular, capaz de adaptar as suas velas políticas às circunstâncias. Que outro político conservador, por exemplo, poderia ter conquistado por duas vezes a Câmara Municipal numa Londres maioritariamente trabalhista, deixar o cargo com índices de aprovação positivos e, imediatamente a seguir, liderar uma [vitoriosa] campanha de Brexit em que a população da capital votou contra numa proporção de 60%-40%. "Ele está muito a sério", diz Andrew Gimson, biógrafo de Boris Johnson e seu ex-colega no Telegraph. "Muita gente distrai-se com os seus maneirismos superficiais, que visam distrair, e algumas pessoas ficam tão zangadas, sentem uma tão grande indignação moral, que o subestimam."
Subestimá-lo, como fizeram os seus muitos inimigos, até no seu próprio partido e que não conseguiram impedi-lo de alcançar o cargo máximo, sempre foi um erro grave. Este, no fim de contas, é um homem que nunca fez segredo da sua presunçosa ambição, concebida aos oito anos, como ele próprio admitiu perante a irmã Rachel, quando disse que queria tornar-se "rei do mundo". Foi uma ambição que só foi aguçada pelo facto de os seus antecedentes, ao contrário dos de alguns das alas conservadoras, não provirem de uma riqueza sem esforço e de um status de grandiosidade. Ele teve de ganhar uma bolsa de estudos para Eton. Demonstrar que os outros estão errados tem tornado os seus êxitos muito mais doces.
Desde o início, há mais de 30 anos, ele compreendeu a enorme potência de fundir o jornalismo com a política e o entretenimento. "Ele gosta de fazer as pessoas rir. Gosta de representar", diz Gimson. Foi um discernimento cujo poder se tornou claro enquanto correspondente em Bruxelas para este jornal, em 1989, quando a sua forma de reportagem caluniosa dos disparates da UE, alguns dos quais eram verdade, enfureceu os rivais e constituiu uma verdadeira pedrada no charco político da Grã-Bretanha. Se o público aprendeu a gostar do seu estilo brincalhão, isso só aumentou a sua influência. Segundo Gimson, o então seu diretor editorial, Charles Moore, reconhecia que "ele [tinha] de facto falhas, mas tem um toque de génio".
Tratava-se de um génio escorado pela sua capacidade de suportar duas posições aparentemente contraditórias: o ideal pró-ficar com o bolo e pró-comê-lo ao mesmo tempo. "Ele consegue manter duas lebres a correr – um dos seus pontos fortes, enquanto jornalista, era que ele era muito bom a perceber quando a história tinha mudado", diz Gimson. "É uma aptidão política, também. A maioria dos políticos fica presa a uma ortodoxia. Mas a política não é um teste de matemática, tem a ver com a natureza humana. O público em geral é melhor a apreciar isso, do que os comentadores."
Assim, até mesmo os defeitos do seu caráter, a sua incontinência amorosa por exemplo, podem de certa forma tornar-se pontos fortes, demonstrando que ele não era parte de uma elite emproada e arrogante. Boris Johnson desenvolveu um talento para fugir à punição por crimes praticados que teriam levado outros à ruína, um talento que lhe foi de grande valia até hoje.
É claro que tais métodos de fuga funcionam só até um dado momento. Três anos depois de ter conquistado o seu assento parlamentar em Henley, Johnson foi demitido do cargo de secretário de Estado-adjunto pelo líder conservador Michael Howard por ter mentido relativamente a um caso amoroso. Isso, juntamente com um artigo de opinião na Spectator que ofendeu Liverpool inteira, e devido ao qual foi obrigado a fazer uma visita de penitência à cidade, levou a que perdesse qualquer hipótese de se candidatar a líder do partido quando a vez de Howard chegou ao fim.
Ainda assim, a sua capacidade de encantar, mesmo aqueles predispostos a não gostarem dele, granjeou-lhe um substancial prémio de consolação em 2008, quando foi eleito presidente da câmara (mayor) de Londres. Foi durante a campanha autárquica que, como conta Katie Perrior, a sua ex-chefe de relações públicas, ele foi abordado em Romford "por um homem em tronco nu, bebendo uma lata de cerveja Stella". Em vez de distribuir insultos, o desordeiro inebriado de Essex nada mais nutria senão admiração pelo ex-aluno de Eton, em tempos membro do Clube Bullingdon. "Boris", gritou ele. "És um c*nas, mas continuo a gostar de ti!"
Reeleito em 2012, Johnson conseguiu vogar a crista desta onda de tão grande adulação nos Olímpicos de Londres, mesmo tendo estes sido atribuídos à Grã-Bretanha muito antes do seu mandato [como mayor]. E se ele adorava toda a adoração. "O que as pessoas pensam a seu respeito importa imenso para ele", diz um observador de há longo tempo. "Ele é muito sensível a isso."
O seu estatuto como o intruso peso pesado ficou cimentado pelo seu regresso ao Parlamento em 2015, como deputado pelo círculo de Uxbridge e South Ruislip. Embora David Cameron delirasse em público por ter de volta o seu maior talento, havia falatórios constantes acerca de uma potencial luta pela liderança. No fim, foi a campanha do Brexit no ano seguinte, que lhe escancarou as portas do Partido Conservador.
Se os acontecimentos dos últimos dias parecem tumultuosos e sem precedentes, isso é para fazer esquecer o caos de 2016. Então, depois de liderar a campanha da Saída (Leave) até à vitória, Johnson foi apunhalado pelas costas por Michael Gove, sendo atirado para um deserto político naquele que estava agendado para ser o seu momento de grande triunfo. Contudo, de uma forma quase bizarra, em breve era convocado de volta desse deserto por Theresa May, a sua antítese política a nível de natureza e estilo, para servir como seu ministro dos Negócios Estrangeiros. No fim, a sua ascensão ao nº 10 alimentada pelo Brexit teria de aguardar mais três anos.
Boris Johnson obteve algum sucesso no MNE, nomeadamente inspirando uma resposta internacional dura e unificada contra a tentativa por parte da Rússia de envenenamento, com um agente neurotóxico, de Sergei Skripal, em Salisbury. Ao galvanizar aliados e coordenar a expulsão de espiões e diplomatas de embaixadas em todo o mundo, ele deu a provar o apoio inequívoco que ofereceria à Ucrânia em 2022.
Mas, de igual modo, foi obrigado a tomar consciência do custo até das pequenas gafes, quando desastradamente disse à Comissão Especial dos Negócios Estrangeiros que Nazanin Zaghari-Ratcliffe tinha estado "simplesmente a ensinar jornalismo às pessoas", contradizendo a sua defesa e fornecendo munições aos seus captores iranianos. Quando, após a sua recente libertação, ela se encontrou com Johnson, em maio deste ano, pôde dizer-lhe cara a cara que tinha "vivido sob o espetro das suas palavras durante quatro anos e meio, sr. primeiro-ministro".
A história recente também serve para lembrar quanto tempo um primeiro-ministro, aparentemente ferido de morte. Consegue aguentar-se no cargo. Quando Johnson apresentou demissão enquanto ministro dos Negócios Estrangeiros, em julho de 2018, poucos imaginavam que ainda seriam necessários quase exatamente mais outros 12 meses até que Theresa May viesse a ser forçada a demitir-se. Por fim, quando foi obrigada a abandonar o cargo, a candidatura de Johnson à liderança do partido, por uma vez na vida, passou quase sem incidentes.
Desde então, no entanto, não tem havido outra coisa. A princípio, grande parte dos estragos eram políticos, ligados aos seus esforços para "concretizar o Brexit". Num momento altamente dramático, por exemplo, o Supremo Tribunal decidiu que ele tinha ilicitamente, interrompido a sessão no Parlamento. Mas já havia algumas insinuações das distrações pessoais que viriam a afligir a sua administração. No mesmo mês da decisão do Supremo Tribunal, Johnson foi reportado ao órgão de supervisão das polícias devido a alegações de que ele tinha previamente usado a sua posição enquanto presidente da câmara de Londres para "beneficiar e recompensar" a empresária americana de tecnologias Jennifer Arcuri, que alegava manter com ele um caso, na altura.
A investigação ditou que ele devia ter feito uma declaração de interesses respeitante à sra. Arcuri. Um incidente quase copiado a papel químico veio à tona este ano, quando foi alegado que ele também tinha posto à consideração a ideia de nomear Carrie, hoje sua mulher, para sua chefe de gabinete no Ministério dos Negócios Estrangeiros, enquanto os dois mantinham um caso amoroso.
As escadas e serpentes do seu mandato como primeiro-ministro estavam a tornar-se cada vez mais longas e ingremes. A sua apoteose ocorreu no inverno de 2019-20, quando a uma gigantesca vitória eleitoral se seguiu a saída formal da Grã-Bretanha da UE. Mas quase imediatamente depois, como uma qualquer figura trágica, ele viu a sua presunção ser seguida pela deusa vingança, Némesis. Por volta de março, a covid varria o país. Em abril, ele estava a lutar pela vida nos cuidados intensivos. "Ele é uma figura muito grega", diz Gimson.
Saindo do contratempo com vida, Johnson regressou a uma carreira política que, daí para a frente, pareceu mais não ser do que gerir crises – muitas vezes nem tanto relacionadas com a covid, mas mais com o seu próprio comportamento e com o da sua equipa. Em maio, ele apoiou Dominic Cummings depois da desventura de Barnard Castle; em novembro, ignorou um relatório alegando que Priti Patel tinha praticado bullying para com a sua equipa de pessoal, levando a que o seu principal conselheiro de ética, Sir Alex Allan, se demitisse. E quando ele, por fim, despediu Cummings neste mesmo mês, aparentemente fez um inimigo implacável. Na primavera seguinte, Cummings viria a ficar registado ao dizer publicamente que o seu antigo chefe era "inapto para o cargo" que ocupava.
Mas num dos muitos incidentes meramente acidentais que têm ajudado a mantê-lo no cargo até agora, nessa altura já Johnson estava a beneficiar da implementação do plano de vacinação, em que a Grã-Bretanha foi líder no mundo inteiro. Ainda assim, mesmo esse triunfo não conseguiu mascarar uma sucessão de escândalos: um furor por causa dos pagamentos pela remodelação do apartamento de Downing Street; uma insistência para que o seus deputados apoiassem o seu colega caído em desgraça Owen Patterson; um discurso estrambólico perante a Confederação da Indústria Inglesa (CBI, na sigla inglesa), em que ele fez referência à Porquinha Peppa e fez sons de "vrum-vrum". A desorganização, falta de preparação e predisposição para humilhar colegas, alterando instruções e levando-os a defender o indefensável – tudo traços que conduziram à atual situação – foram-se aglomerando.
Os primeiros rumores lesivos relacionados com aquilo que viria a ser conhecido como Partygate, estavam também a emergir à medida que o final de 2021 se aproximava. O ano foi coroado por uma derrota terrível nas eleições parciais em North Shropshire.
Desde então, Westminster tem assistido, mais do que nunca, à combinação do mais alto desempenho como estadista com o mais baixo nível de farsa que há muito vêm caracterizando a carreira de Boris Johnson. A Ucrânia trouxe ao de cima o melhor que nele existe. E, por um qualquer milagre, ele foi poupado ao impacto total da ira decorrente do relatório de Sue Gray sobre o Partygate – quando parecia certo e seguro que este seria o seu fim – pelo inesperado anúncio do inquérito interno da própria Polícia Metropolitana. "Ele foi salvo pelo carrasco das polícias", refletiu Andrew Neil na altura. "Penso que se o relatório de Sue Gray tivesse sido publicado em toda a sua glória, poderia bem ter sido o cair do pano para ele. Mas o sr. Johnson tem-se demonstrado ser bastante sortudo. Ele sempre teve sorte".
No fim, no entanto, a sorte acaba por se esgotar. Chris Pincher, um drama inesperado numa carreira Johnsoniana cheia deles, tratou disso.
Harry de Quetteville/The Telegraph/Atlântico Press
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