Viver

Loucas por futebol

Sobre o amor tribal, os piercings na língua, as meninas que choram em frente à televisão e as invasões de campo. Este é um relato fiel sobre a paixão pelo futebol. Escrito por mulheres, sim. Mas isso é apenas um detalhe.

Foto: Getty Images
13 de setembro de 2019 | Maria Wallis
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O meu pai já estava preparado. Pensava que eu me iria cansar de não acontecer nada, que iria achar uma seca "os homens a correr atrás da bola", como ouvia dizer, e que a meio eu iria querer sair. Sem dramas, explicava-me que aquele era, apenas, o jogo de apresentação da temporada 1990/1991 contra o Atlético de Madrid e não dava pontos. Íamos à experiência. Eu ia à experiência. Marinho Peres, o treinador recém-chegado, ainda estava a rodar jogadores (Balakov só chegaria bem depois) e estar ali, naquela noite quente de Agosto, era uma forma aparentemente fácil de juntar o útil ao agradável: "entreter" o desassossego dos meus oito anos e meio e ver o novo plantel ao vivo. A casa das minhas tias ficava em frente ao estádio, das janelas dava para ver o José Alvalade partido ao meio, só que as varandas estavam vazias porque a minha mãe, a minha avó e elas, as senhoras mais velhas, não gostavam de bola. Eu acho que nunca tiveram oportunidade de gostar: a minha tive-a naquela noite, meio metro de gente, magra que nem um canivete, cabelo invariavelmente cortado à rapaz, inquieta, mil perguntas a cada finta, a cada drible. As luzes ajudaram ao espectáculo, é certo, mas acho que foram as pessoas que me fascinaram. Gritavam pela mesma coisa, riam pela mesma razão, cantavam a mesma música. Eu a olhar para o meu pai e a pensar: "Estou em casa." Ele com medo do que a peste (eu) poderia ditar ao intervalo. O estádio tremia de emoções e nós ganhámos. Sei por fiquei até ao fim: 3-0. A partir daí, fiquei sempre. Um mês  depois estava de volta e todos os 15 dias, menos nos jogos com "os grandes" – esses, só os vi com maioridade adquirida. Chorei-os em casa, em frente à televisão, as mãozinhas pequenas a transpirar e a minha mãe de cabelos em pé, a pensar que a filha tinha desistido das bonecas e dos livros. Em 2007, de novo ao lado daquele que me levou de mão até ao velhinho estádio, saí do colorido Alvalade XXI com uma certeza: o melhor clube do mundo não é o que tem mais dinheiro, nem o que ganha mais títulos. O melhor clube do mundo é o melhor porque é o meu.

Esforço, dedicação, devoção e glória. É de coisas destas, de emoções inexplicáveis, que é feita a vida. Amor com amor se ganha. Não se explica. Até que, bem perto dos 30 anos, se tornou demais. Era muito futebol para tão pouco coração. E eu, alma velha, nostálgica, cheia de paixões avassaladoras, deixei de saber de cor o nome dos jogadores, dos suplentes, deixei de fazer os 15 minutos a pé que me separam do estádio, evitei ao máximo os jogos na televisão e os relatos na rádio. E durante quase seis anos soube apenas o necessário para me manter fiel a mim própria, sportinguista desde os oito anos e meio. Foi o nascimento da minha sobrinha Luisinha, há dois anos, e a sua consequente inscrição como sócia que me fez ponderar um regresso a casa. Paguei as quotas em atraso (obrigada, pai) e, dois dias depois, comprei um bilhete para o primeiro clássico da época. Ganhámos 3-1. Que se lixe a razão, as desilusões ocasionais, o balde de água fria que foi perder aquela Taça UEFA, em casa, num ambiente de sonho. Que se lixe o sofrimento, que se lixem as lágrimas. Há um vendaval de sensações à minha espera a cada apito do árbitro. Não é fácil. Não é saudável. Não é normal. Mas é maravilhoso. Tenho amigas benfiquistas tão apaixonadas como eu que o confirmam. Não falamos muito de futebol, é verdade, mas de vez em quando acontece. É isto que uma delas me conta. "Não me lembro do primeiro jogo que vi, mas lembro-me que já foi tarde, já vinha encantada com os jogos na televisão. Por isso, a primeira ida ao estádio foi um momento muito esperado, tenho ideia que não vi os primeiros dez jogos a que fui, estava fascinada com o ambiente e com a paixão das pessoas, que era igual à minha, e eu afinal já não estava sozinha no mundo. Os meus pais são muito benfiquistas. O meu pai ia algumas vezes ao estádio e eu pedia para ir, mas nunca aconteceu. Acho que ele pensava que era uma fase minha e que me passaria. Mas nunca passou. O momento que mais marcou a minha vida benfiquista foi a entrada no actual Estádio da Luz. Estava arrepiante de tão cheio e é, na minha opinião, o melhor estádio do mundo. Sinto-me em casa. Ainda hoje, quando convido alguém para vir comigo pela primeira vez digo sempre: ‘Prepara-te que vais sentir uma coisa muito especial!’", explica-me Sara Cabral Avelino, de 34 anos, que vive o Benfica de uma forma visceral. "Não sei exactamente explicar [a paixão pelo clube], não sei se me vou fazer entender, mas aqui vai: era a única tatuagem que faria – ‘Eu amo o Benfica’ –, pois é a minha maior certeza. Ganhe ou perca, com bons ou maus  presidentes e treinadores, é um amor até morrer! Um clube de vitórias! […] Um clube humilde, vi golos marcados pelo adversário a serem aplaudidos por nós de tão bonitos ou pelo significado que traziam consigo. Um clube que apesar de  estar habituado a ganhar, sabe ganhar e perder; adeptos que raramente vi a atacar as outras equipas com cânticos de ataque à equipa contrária, como se vê frequentemente no futebol de hoje em dia. É, sem dúvida alguma, ter na alma a chama imensa!" 

Menina (não) entra. Pensar no desporto-rei como uma coisa de homens é tão arcaico como achar que as mulheres não sabem conduzir. É certo que são eles os mais bem pagos, os mais famosos, os mais virtuosos. É certo que é por eles que vamos ao estádio, mas nem por isso percebemos menos do jogo ou temos direito a menos opinião. O amor não escolhe géneros. Ouvimos recorrentemente comentários pejorativos como "Se gostas assim tanto de futebol, relembra-me lá a constituição de todas as equipas principais do teu clube desde os anos 80…" ou "Tu só gostas de bola para veres as pernas dos jogadores". Valerá a pena responder a estas provocações? Valerá a pena sugerir que os incomodados façam a lista dos Presidentes da República que tivemos no mesmo período? Claro que não. Em ano de Mundial, aliás, a acusação mais frequente já se faz sentir. "Não podes dizer que gostas de futebol só porque vês o Campeonato do Mundo." Caros senhores, nada temam. Nós, mulheres que realmente gostamos de futebol, pagamos quotas, vamos ao estádio, vemos os jogos na televisão e temos a app do nosso clube no telefone. O Mundial é um extra. Querem provas? Joana Fabião, de 30 anos, tem uma memória impressionante de recordações "feitas de Sporting". Além de se lembrar, com clareza, do primeiro jogo a que assistiu ("Óbvio que sim, foi uma excitação. Foi contra o Salgueiros, ainda lá jogava o Sá Pinto. Era bem novinha, tinha uns nove ou dez anos"), menciona com facilidade momentos marcantes – bons e maus: "Aquela final da Taça UEFA com o CSKA deixou-me realmente mal. Aliás, esse ano tivemos momentos tão felizes e acabou de uma maneira tão má… Até custa lembrar. Tenho algumas alegrias… Mas um jogo que para mim foi inesquecível aconteceu com o Newcastle, nos quartos-de-final da Taça UEFA, em casa: 4-1 com golos do Niculae, do Sá Pinto, do Beto e depois, nos descontos, do Rochemback! Eu fiquei tão eufórica que depois do futebol tinha combinado ir sair com umas amigas, mas nem fui porque estava cheia de arritmias e fui beber chá para casa. O ambiente do estádio estava incrível." Se isto é conversa de adepto de ocasião… É certo que muitas de nós ainda não se renderam à magia de ver um jogo ao vivo e a cores. Porque será? "Não me faz sentido e eu sinto que cada vez há mais! Adoro as minhas amigas da bola, somos muito apaixonadas por este desporto incrível, faz-nos sentir vivas! Sei de muitas mulheres assíduas de futebol e parece-me que a todas corre muito rápido o sangue nas veias e para quem uma ida ao estádio é muito libertador. Sem dúvida que é um desporto maioritariamente masculino, mas com cada vez mais mulheres", sugere Sara. Joana concorda. "Não entendo, sinceramente, mas acho que está a mudar. Cada vez mais vejo mulheres no estádio e a falar de futebol." 

Foto: IMDb
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A Ciência explica. "Quando um adepto da selecção invadiu o campo para abraçar o Renato Sanches, o meu telefone não parou de tocar. Ligavam a perguntar se tinha sido eu." Sara ainda não fez nenhuma loucura (confessável) pelo Benfica, mas o episódio que relata é o espelho do seu amor imensurável. Até onde vai uma mulher que ama futebol? Até ao fim do mundo. Porquê? Não se sabe. Mas a Ciência tenta perceber o cerne da questão. O "fanatismo da bola", como lhe chamam, há muito que deixou de ser conversa de balcão. É assunto de laboratório. Três investigadores do Instituto de Ciências Nucleares Aplicadas à Saúde, da Universidade de Coimbra, estudaram, durante três anos, os cérebros de 56 adeptos de futebol (54 homens e duas mulheres com idades compreendidas entre os 21 e 60 anos, na sua maioria das claques oficiais da Associação Académica de Coimbra e do Futebol Clube do Porto), cujo nível de paixão foi medido através de scores de avaliação psicológica. Por outras palavras, foram expostos a vídeos emocionalmente intensos para estudar as suas reacções cerebrais. Os resultados do estudo, publicado há pouco mais de um ano, na Social Cognitive and Affective Neuroscience (SCAN), uma das mais prestigiadas revistas de Neurociência, falam por si: quando vêem o seu clube, os adeptos activam circuitos cerebrais semelhantes aos do amor – ao amor tribal, mais especificamente, que se caracteriza pelo fanatismo e pela sensação de pertença a um grupo e a rivalidade com outros. "Foi observada a activação de circuitos cerebrais de recompensa que são semelhantes aos que são activados na experiência do amor romântico. Em particular, os circuitos de memória emocional são mais recrutados pelas experiências positivas do que pelas negativas", explicava Miguel Castelo-Branco, coordenador do estudo. À medida que eram expostos às memórias visuais, as reacções cerebrais alteravam-se, ao ponto de a paixão prevalecer sobre conteúdos menos positivos, como derrotas, que são facilmente "apagados" da memória emocional. "Por isso, o estudo coloca em relevo os aspectos positivos desta forma de amor tribal, salientando que o cérebro dispõe de mecanismos para suprimir conteúdos negativos. O cérebro parece, por essa razão, ter mecanismos de protecção contra memórias susceptíveis de levar ao ódio tribal", acrescentava o investigador. É por estas e por outras razões que, por exemplo, temos loucuras explicáveis como a de Joana: "Fiz uma aposta que se o Sporting fosse campeão, nesse ano, eu faria um piercing na língua. Morro de medo de agulhas e sangue, mas em 2001/2002, quando o Sporting foi campeão, honrei a aposta e o piercing está comigo até hoje." 

Prolongamento. Este texto não terminava assim. Ainda teríamos oportunidade de ler como, às vezes, é melhor não discutir futebol quando membros da nossa família não partilham do amor ao nosso clube – o pai de Joana, por exemplo, é do Benfica ("Ui, já deu muita discussão. Agora decidi deixar de responder às provocações. Não atendo as chamadas, nem respondo às constantes mensagens e raramente vejo jogos com ele ao lado porque nunca correm bem. Ele é muito faccioso!") – ou como Sara se assume "perfeitamente racional" na hora de discutir quem jogou a bola com a mão. Mas perante os acontecimentos recentes (este texto foi escrito após a invasão da Academia de Alcochete, a 15 de Maio último), e independentemente da sua autora ser do clube afectado pelos incidentes, importa parar para pensar no rumo que está a tomar este "amor tribal." Se o acto terrorista com que o país foi confrontado não chega para impor limites dentro e fora das quatro linhas, nada chegará. A paixão celebra-se, estimula-se, mas não pode pôr em causa vidas humanas. Não pode incutir medo. Não pode incapacitar o sonho de quem larga a mochila da escola para perder as tardes num campo de futebol improvisado. O futebol deixa de ser um espectáculo quando o ódio se sobrepõe ao festejo do golo, quando o fairplay é anulado pela rivalidade mesquinha. É preciso voltar ao tempo em que as mulheres (e os homens), que agora se assumem adeptos de alma e de coração, iam pela primeira vez ao estádio pela mão dos pais, dos tios ou dos avôs para se descobrirem num desporto que é feito de adrenalina, de prazer e de entusiasmo. E um número infinito de heróis de todas as cores, de todos os clubes, com uma massa associativa que semana sim, semana sim, repete sem hesitações: "Hoje vamos à bola!"

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