Era sábado, dia 12 de junho. Em Lisboa, o cheiro da sardinha na brasa e do chouriço assado espalhava-se pelas ruas, antecipando a grande noite das festas da capital, a véspera de Santo António, padroeiro da cidade com especialidade de casamenteiro. No Porto, a festa era outra e os olhos estavam postos num Estádio do Dragão novo em folha. Na verdade, era para lá que todo o País apontava o olhar e os ouvidos, pela televisão e pela rádio, antecipando também uma festa nacional que haveria de durar quatro semanas - uma coisa nunca vista por cá, um dos maiores certames desportivos do mundo: o terceiro maior, a seguir aos Jogos Olímpicos e ao Mundial de Futebol, segundo os números oficiais das televisões. A mobilização era apenas comparável à da Expo ‘98, ainda fresca na memória dos portugueses, mas que fora, ainda assim, demasiado circunscrita à capital portuguesa. O Europeu de futebol, não: esse jogar-se-ia quase por todo o País, já que estádios para o acolher não faltaram.
Vamos do início: foi há precisamente 20 anos, a 12 de junho de 2004, que Angelos Charisteas deu o pontapé de saída do Campeonato Europeu de Futebol, após o apito inicial do lendário árbitro italiano Pierlluigi Colina. Charisteas ficaria para a história por causa de dois toques: esse, no Dragão, de pé esquerdo, com que passou a bola a Zizis Vryzas, seu colega de ataque na equipa da Grécia, e um outro, quatro semanas mais tarde, de cabeça, no Estádio da Luz, para uma baliza deserta, abandonada pelo guarda-redes português Ricardo. Lá chegaremos. O que importa reter é que este primeiro toque na bola foi, à boa maneira dos gregos antigos, um mau presságio, um omen do que estava por vir.
Assinalando o início do Campeonato da Europa de 2024, que começa 20 anos e dois dias depois do Euro 2004 e que é organizado pela Alemanha, aproveitemos para recordar algumas histórias e curiosidades do Euro que Portugal perdeu em casa. Mas antes disso, e a propósito do Euro 2024, ficam aqui alguns dados também eles curiosos. A Alemanha, país com 83 milhões de habitantes e uma área três vezes e meia superior à de Portugal, com o 5.º Produto Interno Bruto e o 15.º PIB per capita à escala mundial, acolhe um campeonato da Europa com 24 equipas em 10 estádios, todos eles remodelados ou apenas ligeiramente melhorados, já que nove desses estádios fizeram parte do elenco do Campeonato do Mundo de 2006 (só o recinto de Dusseldorf foi acrescentado à lista do Mundial - mas mesmo esse já foi inaugurado em 2004).
Portugal, por seu turno, com 10 milhões e meio de habitantes, o 52.º PIB do mundo (58.º PIB per capita), recebeu uma competição com 16 seleções e usou, para o evento, também 10 estádios - quase dava um campo por equipa. Quatro dos estádios - Bessa, Leiria, Coimbra e Afonso Henriques, em Guimarães -, foram completamente renovados; os outros seis foram construídos de raíz, numa operação megalómana que incluiu a destruição dos três maiores recintos de Portugal - os estádios da Luz, de Alvalade e das Antas -, além da construção de verdadeiros elefantes brancos, como o Municipal de Aveiro ou o intermunicipal Faro-Loulé, conhecido como Estádio do Algarve, que tem como função e particularidade acolher jogos amigáveis, provas de desportos motorizados, torneios de verão e ocasionalmente desafios da seleção nacional. De todos, o único construído de raiz que realmente justifica o investimento é o Municipal de Braga, obra maior com assinatura do arquiteto Souto Moura. Embora por cá divida opiniões, é visto em todo o mundo como um incrível exemplar de arquitetura. Mas mesmo o Estádio Municipal de Braga representa um encargo para a autarquia - segundo o plano inicial, o pagamento do empréstimo ficaria saldado no decorrer deste ano - 10% do orçamento anual. O País até pode ser pobre, contudo quando construímos é à rico. Até mais do que rico, se olharmos para o exemplo alemão.
Mas falemos antes de coisas boas: Portugal ganhou a organização do Euro 2004 a 12 de outubro de 1999, superando as candidaturas rivais de Espanha e da proposta conjunta de Áustria e Hungria. Entre a task-force que fez lóbi, perdão, diplomacia e relações públicas junto da UEFA, a equipa portuguesa incluía nomes de cidadãos distintos, como Gilberto Madail, histórico presidente da Federação Portuguesa de Futebol, ou Carlos Cruz, que na altura era conhecido principalmente por ser um popular apresentador de televisão. Outros tempos.
No Europeu, propriamente dito, e apesar de uma dolorosa e premonitória derrota (1-2) diante da Grécia no jogo de abertura - o tal disputado no Dragão, na véspera de Santo António, com Lisboa a cheirar a sardinhas -, o dia 12 de junho de 2004 é data para ficar na história por uma razão especial. Foi nesse dia, aos 90 minutos de um jogo já perdido, que um jovem irreverente marcou, de cabeça, o seu primeiro golo ao serviço da Seleção Nacional portuguesa - entretanto, à data deste texto, já conta 130, com os últimos dois marcados na terça-feira, contra a Irlanda. O seu nome completo é Cristiano Ronaldo dos Santos Aveiro, mas o mundo conhece-o de outras formas - CR7 para os que apreciam abreviaturas, GOAT (Greatest Of All Time) para os mais devotos, Ronaldo para a generalidade da população mundial e ainda simplesmente Cristiano para os adeptos espanhóis, possivelmente numa atitude justificadamente diligente para com o Ronaldo que o precedeu no Real Madrid (falamos de Ronaldo Nazário, também conhecido como "o Fenómeno").
Um dos grandes momentos de Portugal no Euro 2004 aconteceu aos 57 minutos da 3.ª jornada da fase de grupos, em Alvalade, contra precisamente a Espanha. Ao intervalo, o 0-0 deixava Portugal fora das eliminatórias, o que, a acontecer, seria certamente motivo para mais uma profunda depressão nacional. Com aquela combinação de resultados (no outro jogo do grupo, a Rússia ia ganhando à Grécia - e acabou mesmo por vencer a partida), Espanha ganharia o grupo A, com 5 pontos, e à Grécia, que empatara com Espanha e vencera Portugal, os 4 pontos bastavam-lhe para passar à fase seguinte. Portugal, também com 4 pontos, cairia sem glória. Mas foi então que, apenas 13 minutos depois de entrar em campo, o improvável Nuno Gomes - qualquer ponta-de-lança de Portugal será sempre improvável - marcou de fora da área, dando o 1-0 à equipa liderada por Luiz Felipe Scolari, que daria ordem para conservar aquela magreza de resultado até ao fim. Os jogadores assim fizeram e Portugal ganhou o jogo e o grupo, com 6 pontos, atirando a favorita Espanha para o 3.º lugar e deixando-a de fora da fase seguinte - a Grécia passou, com os mesmos pontos e a mesma diferença entre golos marcados e sofridos (0) dos espanhóis, mas com mais golos marcados (4 contra 2).
Portugal jogou nos quartos-de-final contra a Inglaterra, mas já lá vamos. Primeiro, as meias-finais, em que os a seleção defrontou a, na época, Holanda, que hoje se chama Países Baixos. Nesse jogo, também em Alvalade, Portugal bateria os holandeses por 2-1. Para a memória geral, fica o momento do 2-0 para Portugal, apontado por Maniche aos 58 minutos: ninguém, exceto os que estavam no estádio, viram o golo. Uma falha na transmissão televisiva não mostrou o momento em que o médio português fez uma obra-prima e marcou um golaço para a posteridade. É uma pena que só o tenhamos visto na repetição e não possamos ter desfrutado dele em direto, mas o golo contou e foi belíssimo.
Voltando aos quartos-de-final, dir-se-ia que esse é o momento mais alto de todo o Euro 2004. Portugal e Inglaterra, ambas as equipas recheadas de estrelas, encontraram-se às 19h45 do dia 24 de junho, dia de São João, o padroeiro do Porto, num Estádio da Luz completamente cheio. Os ingleses marcaram primeiro, logo aos 3 minutos, por Michael Owen. Portugal só conseguiria responder já na reta final da partida, aos 83, pelo improvável - um ponta-de-lança, portanto - Hélder Postiga. O melhor estava então para vir: um prolongamento de loucos, com Portugal a virar o marcador aos 110 minutos, com um golaço de levantar o estádio apontado pelo "maestro" Rui Costa. Mas os ingleses não desistiram e, aos 115 minutos, Frank Lampard voltou a empatar a eliminatória. E a partir daí deu-se uma sequência de eventos que quem viu dificilmente esquecerá.
Os penáltis dessa tarde-noite são um monumento ao futebol, à emoção e ao guionismo de suspense cinematográfico. Beckham, David Beckham, falhou o primeiro penalti - a bola saiu disparada para a bancada, com o inglês a olhar depois para o chão com cara de quem pensa "talvez eu possa culpar o relvado". Parecia que estava ganho, mas não, claro que não estava. Ao terceiro pontapé, o mesmo Rui Costa que virara o resultado, falhava o seu penalti e ficava tudo empatado de novo. Na 5.ª e última ronda regulamentar, o improvável Postiga fez o impensável: num jogo de nervos, decidiu marcar à Panenka, picando a bola devagarinho para o meio da baliza e correndo o risco não só de perder a eliminatória, como também de causar a paragem cardíaca a milhares de concidadãos que, nesse momento, pararam tudo o que faziam na vida, incluindo respirar - mas a bola entrou mesmo, com jeito, com classe, com tempo, com estilo, com nobreza e sem vergonha. Foi golo!
As equipas chegaram empatadas ao fim das 5 rondas de pontapés. Era preciso um milagre para desatar o nó da situação. E foi então que Eusébio - O Eusébio, da Silva Ferreira, mago de outros tempos, divindade então ainda terrena - foi falar com Ricardo, o guarda-redes português. Ricardo tirou então as luvas antes do pontapé do inglês Darius Vassell. E defendeu o remate. E, depois de celebrar o feito, pegou na bola e foi ele próprio marcar o penalti. Os portugueses, ainda mal refeitos das oscilações cardíacas provocadas por Hélder Postiga, sofriam agora agarrados a todos os santos, mezinhas, terços e outras figuras de igual peso e relevo cósmico, torcendo para que o guarda-redes soubesse o que estava a fazer. E não é que sabia? Ricardo bateu de pé direito e a bola entrou! Foi o delírio. A euforia foi de tal ordem que, no centro de Lisboa, havia quem se banhasse nas fontes do Rossio, por exemplo. Tudo era normal, tudo era permitido.
Pena é que, 10 dias mais tarde, no mesmo Estádio da Luz, o grego Charisteas, depois de ter dado o primeiro toque na bola, tivesse dado a última machadada nas legítimas aspirações portuguesas. Após um canto para os gregos, aos 57 minutos, deixou-se ficar quieto na sua posição e aproveitou a precipitação de toda a defesa, desviando de cabeça, ao primeiro poste, para uma baliza portuguesa vazia. Acabava o sonho de Portugal. Era o grande balde de água fria para uma equipa de excelência, que acabava por perder contra um adversário tão improvável quanto justamente vencedor - recorde-se que a Grécia venceu Portugal por duas vezes na mesma competição.
Os portugueses teriam de esperar 12 anos para acertar contas com a história - e fazer então a desfeita aos anfitriões, então os franceses, desta vez tendo o improvável Eder como protagonista. Mas essa é uma outra história.