Viver

Os sórdidos segredos de Silicon Valley

Os clubes de bondage, à hora do almoço. As sex parties, à noite. Não porque o sexo seja, talvez, o melhor modo de estar em forma e de queimar calorias. Uma reportagem jornalística, publicada no livro Brotopia, revela os escândalos sexuais da indústria da tecnologia e fez manchetes, na América. Emily Chang, a mulher que denunciou esse mundo de devassidão, fala-nos, aqui, de orgias, de sexismo, de machismo e de prepotência em Silicon Valley.

Foto: D.R.
08 de dezembro de 2019 | Ben Machell
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No primeiro dia de trabalho como engenheira de software para a Uber, Susan Fowler recebeu várias mensagens no chat interno da empresa. Eram do seu supervisor. Encontrava-se, como ele lhe explicou, numa relação aberta. Contudo, ao contrário da namorada que se dava muito bem com a situação, ele não estava propriamente a ter o mesmo sucesso e, portanto, procurava mulheres com quem pudesse ir para a cama. Isto aconteceu no início de 2016 quando Susan Fowler tinha 24 anos e era uma principiante em Silicon Valley. "Ele queria, claramente, que eu tivesse sexo com ele", viria a escrever num blog post que se tornaria viral. "Era tão óbvio que ele estava a pisar o risco que fiz, imediatamente, screenshots das mensagens e comuniquei o sucedido aos Recursos Humanos." E depois… nada. Na verdade, não. Susan Fowler foi informada de que o seu supervisor tinha recebido uma admoestação e tudo ficou por aí. Disseram-lhe que ele era uma pessoa "de grande competência" e que, em todo o caso, o que fizera "foi provavelmente um erro inocente", apesar de ela, mais tarde, ter descoberto que outras engenheiras tinham passado por situações semelhantes. Talvez não devesse ter ficado tão chocada com este comportamento. Pouco tempo antes, o CEO da Uber, Travis Kalanick, vangloriara-se de que a sua grande riqueza lhe permitia divertir-se com as mulheres que queria, quando queria e como queria. "Sim, chamamos a isto Boob-er [o sex appeal do homem rico]", disse à GQ [americana]. Tinha 37 anos, na altura. Gabi Holzwarth, uma ex-namorada de Kalanick, viria, mais tarde, a declarar que as festas que os executivos da Uber frequentavam tinham uma grande afluência de modelos e que executivos seniores se gabavam das suas proezas no quarto, proezas, essas, que muitas vezes envolviam várias raparigas em simultâneo.

A vida sexual dos jovens milionários de Silicon Valley foi revelada em Brotopia, um livro de Emily Chang, jornalista e apresentadora do canal televisivo Bloomberg Technology, galardoada com um Emmy. Esta jornalista conhece a indústria da tecnologia intimamente e o seu retrato dela – como um mundo no qual o assédio sexual e a devassidão são endémicos – já tinha causado controvérsia e negações categóricas. "Há muitos homens que enriqueceram demasiado depressa", escreveu. "Isso conduziu a um sentimento de detenção de privilégios." Emily Chang, de 37 anos, descreve um mundo de sex parties exclusivas organizadas em mansões privadas, onde são fornecidas drogas – sobretudo MDMA (ecstasy) –, e nas quais o número de jovens e atraentes mulheres é o dobro do número dos homens. "Entrevistei uma empresária que tinha sido convidada para uma festa na casa de um proeminente investidor", conta. "Teve de deixar o seu telemóvel na entrada e assinar um contrato de confidencialidade. Assim que entrou, viu duas mulheres e um homem num jacuzzi a trocarem beijos e a tocarem-se de forma lasciva." Numa das festas que Emily Chang descreve, encontrava-se Elon Musk, o multimilionário por detrás das companhias Tesla e SpaceX. Em Janeiro, Musk fez uma declaração na qual repudiava os relatos de Chang, considerando-os "um disparate libertino" e afirmando que a festa tinha sido "aborrecida" e que não vira qualquer sexo ou nudez. "Vamos lá falar com franqueza", diz Emily Chang. "Era uma festa patrocinada por uma empresa, onde as drogas eram oferecidas. Falei com várias pessoas que se consideraram desconfortáveis [com a situação] e com uma mulher que se sentiu pressionada a envolver-se em actividades sexuais." Emily Chang sublinha que a questão não é o que Musk viu ou não numa determinada festa, mas, isso sim, que estas festas existem. "É a cultura mais generalizada. Tenho fotografias e posts das redes sociais. Vi convites. Isto é real."

Foto: Twitter @emilychangtv

Porque se comportam assim os homens de Silicon Valley? Tal como o supervisor de Susan Fowler ou os inúmeros jovens empresários que aparecem nas sex parties, na expectativa de encontrar duas mulheres à sua espera num jacuzzi? Por um lado, a resposta é simples: porque podem. Silicon Valley sempre foi um "clube de rapazes", afirma Chang, um sítio onde apenas 25% do trabalho é feito por mulheres, que representam 7% dos investidores e recebem 2% dos financiamentos. E esta tendência tende a perpetuar-se. Emily Chang conta que um importante investidor em empreendimentos de risco, o multimilionário Chris Sacca, gostava de convidar potenciais parceiros de negócio para se juntarem a ele no jacuzzi, a fim de testar quanto tempo suportavam o calor. Sacca foi um dos primeiros investidores na Uber, depois de Kalanick ter conseguido aguentar dez horas [no jacuzzi]. Emily Chang mostra sinais de indignação. "Bom, quantas mulheres vestem o biquíni para apresentar um projecto de negócio num jacuzzi?" Porém, não é só a proeminência dos homens de Silicon Valley que representa um problema. É também o tipo de homens. Correndo o risco de dizer o óbvio, estas pessoas são egocêntricas e nerds – muito inteligentes, mas detestáveis e sem competências sociais. Homens que, durante a adolescência, tipicamente, eram incapazes de arranjar uma namorada, mas que, agora, graças à sua brilhante app ou ideia, são bem-sucedidos e ricos, embora em termos de experiência sexual ainda estejam atrasados em relação ao resto da matilha. Por isso, tentam compensar o tempo perdido, convidando modelos para as suas festas e fazendo propostas às suas subalternas no primeiro dia de trabalho. O resultado é o homem arrogante, o geek, ou seja, um inepto, com a palma das mãos sempre suada, encontrado pelas mulheres que Emily Chang entrevistou para o Brotopia. "Somos alvo de abordagens sexuais e os homens atiram-se a nós vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana", denuncia umas das engenheiras. Uma empresária da tecnologia expõe o problema sem rodeios: "Ninguém os f**e na escola secundária", declara. "Nem hoje as mulheres teriam relações sexuais com eles." Há uns anos, entrevistei Whitney Wolfe, que fundou a app de encontros Bumble depois de ter saído do Tinder na sequência de um processo de assédio sexual. Ela acreditava que os "geeks machistas" de Silicon Valley provavelmente "não eram aceites na escola" e, por isso, consideram o seu sucesso e riqueza como uma desforra. "É quase uma vingança", dizia. "Penso que muitos destes maníacos da tecnologia se deixam levar. São rapazes muito novos." Outro problema deste mundo específico é não ser tanto um emprego, mas mais um estilo de vida. Trabalho e diversão confundem-se com frequência.

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Foto: Getty Images

Muitas empresas tecnológicas, por exemplo, vangloriam-se do facto de terem cerveja tirada à pressão gratuita para todos os seus empregados. "Em Silicon Valley há um mau comportamento dentro dos escritórios, mas muitos negócios são feitos fora deles", diz Chang. "Num bar. Numa festa. Num jacuzzi. Algumas engenheiras com quem falei diziam que era muito comum serem solicitadas para irem a clubes de striptease ou de bondage a meio do dia. Há muitos investidores que convidam empresárias para sair e elas acreditam que vão falar sobre a sua empresa, enquanto o investidor pensa que é um encontro e que acabarão por as levar para a cama. Esse é o tipo de comportamento sistemático de que estamos a falar." Ainda mais insidioso, no entanto, é o aumento do poliamor. "Os relacionamentos abertos não são novidades em Silicon Valley, mas estão a aumentar. Em alguns círculos, é visto como prudente não estar disponível para um relacionamento aberto." O motivo é simples: muitos desses homens são pretensos visionários, cujas apps e sites mudaram o comportamento de milhões de pessoas e que acreditam que têm a capacidade de prever o futuro. E o engraçado é que muitos deles prevêem um futuro onde terão a possibilidade de fazer sexo com muitas mulheres, sem se sentirem mal com isso. O que resulta no crescimento das sex parties. Desde sempre que os homens ricos se aproveitam das mulheres. Mas poucos o fizeram com tamanha e hipócrita convicção. "Penso que o que faz Silicon Valley e a elite tecnológica diferentes é a arrogância e o sentimento de prerrogativa que advém da convicção de que estão a mudar o mundo", declara Chang. "Muitos destes homens pensam que estão a desafiar os bons costumes sociais e a moralidade tradicional ao manterem uma relação aberta ou dando festas para as quais convidam duas mulheres para cada homem. É a hipocrisia dessa convicção e o desprezo pelas mulheres de que se aproveitam que leva os homens a justificarem o que fazem, declarando que estão a mudar o mundo." O problema é que, neste admirável mundo novo de sexualidade desinibida, as mulheres nunca vencem. "É um dilema", diz Chang. Se, à hora do almoço, aceitam ir aos clubes locais de bondage ou participam nas exclusivas sex parties, são "desacreditadas e desrespeitadas". E se não o fizerem? São afastadas de potenciais oportunidades. "O modo como os negócios são feitos em Silicon Valley perpetua uma dinâmica de poder incrivelmente desequilibrada." Os homens que frequentam as sex parties são todo-poderosos, afirma, e a "gigantesca rede de insinuações" dentro de Silicon Valley salvaguarda a sua identidade, a todo o custo. E as mulheres? Não lhes são concedidos favores. "É uma história tão antiga como o mundo, na verdade." Emily Chang, contudo, tem esperança. Tal como o movimento #MeToo, que teve grande impacto em Hollywood, ela acredita que algo semelhante poderá acontecer em Silicon Valley. Em 2017, vários casos de assédio sexual na Uber – incluindo o de Susan Fowler – levaram a que Travis Kalanick se demitisse do seu cargo de CEO. Do mesmo modo, há não muito tempo, alguns investidores apresentaram, publicamente, desculpa por comportamentos sexistas ou demitiram-se devido a estarem a ser investigados por assédio [sexual]. Na lista dos primeiros encontra-se Chris Sacca, o homem do jacuzzi, que apresentou desculpa por "pessoalmente ter contribuído para tornar a indústria da tecnologia inóspita para as mulheres". No elenco dos que se demitiram está Steve Jurvetson que promoveu a tal festa para a qual Elon Musk foi convidado. Negou tratar-se de uma sex partie e declarou ter deixado a empresa por razões que não estavam relacionadas com essa questão. Ponto final?

 

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