Vinho é sinónimo de prazer para a maioria de nós, mas para quem dele vive é acima de tudo um negócio. Como tal não é muito comum um enólogo receber carta-branca para fazer um vinho, sem qualquer preocupação comercial ou constrangimento, norteado apenas pelo seu gosto pessoal… Mas foi esse o desafio lançado pelo presidente da Sogrape, Fernando da Cunha Guedes, à sua equipa de enólogos: podia ser branco, tinto ou rosé, tranquilo ou espumante, podia ter um autor ou ser uma co-criação, vir de qualquer região, ser monovarietal ou um blend de castas. A única condição era que apresentassem algo diferente, e fossem todos os enólogos da casa, reunidos em sessão plenária, a decidir atribuir esse estatuto especial. O vinho seria depois colocado no mercado sob uma nova chancela: Série Ímpar.
A Sogrape é a maior empresa do sector em Portugal, e está presente por todo o território contando com vários enólogos: do Alentejo (Herdade do Peso, Luís Cabral de Almeida) ao Minho (Azevedo, António Braga), passando pelo Dão (Quinta dos Carvalhais, Beatriz Cabral de Almeida) e Douro (Casa Ferreirinha, Luís Sottomayor). A lista é um pouco mais extensa, mas estes serão os actores principais. Assim deixámos de fora a Bairrada, onde produz a jóia da coroa do grupo e o vinho português mais bem-sucedido de sempre, o Mateus Rosé, editado sob a direção de Miguel Pessanha. E foi na Bairrada, mais concretamente na Quinta de Pedralvites, numa parcela com 2,5 hectares de Sercialinho, que António Braga descobriu a sua preciosidade – e todos acabaram por concordar.
O enólogo fala com evidente orgulho do seu vinho – que numa restrita prova de pairing se portou incrivelmente bem, de acidez firme, e pleno de sabor. Macio e gastronómico, revelou-se um branco para peixes e para carnes, incluindo as vermelhas. E passou com distinção todas as combinações, mesmo as mais complicadas, como um escabeche avinagrado, onde a acidez natural do vinho ajudou bastante. A mesma, aliás, que vai fazer com que este branco envelheça muito bem por uns bons 20 anos ou mais.
Trata-se de uma das características da casta Sercialinho, que provavelmente não conhece e por bons motivos – com apenas uma mão cheia de hectares plantados, a casta não tem qualquer expressão, mas tem, em contrapartida, uma bela história, "uma novela mexicana" conta António Braga.
O Sercialinho começou por ser criado em laboratório, há pouco mais de 50 anos, e foi plantado precisamente nesta zona da Bairrada. Com o tempo foi desaparecendo das vinhas, por troca com outras variedades mais fáceis de trabalhar, produtivas e conhecidas, até que hoje praticamente só subsiste na mão de dois produtores, tornando-a numa raridade. Além da Sogrape temos o bairradino Luís Pato, que a utiliza em lote, maioritariamente no Vinhas Velhas, mas também em ligação com a Maria Gomes (branco e espumante).
Apesar das origens laboratoriais e da tenra idade, não restam documentos escritos da sua criação (ou não se sabe onde estão), pelo que ninguém pode verdadeiramente afirmar o que lhe está na génese. A trama adensa-se, pois uns defendem que se trata de um cruzamento entre Vital e Alvarinho, "uma novela mexicana das modernas", brinca o enólogo, "porque tem dois pais". Outros acreditam que se trata de um cruzamento entre Cerceal e Alvarinho, o que faz todo o sentido até pelo nome, "mas tal como nas novelas, os testes de ADN vieram dar uma reviravolta completa ao enredo" porque os estudos genéticos mais recentes confirmam que o pai é mesmo o Vital, só que se revelaram totalmente inconclusivos relativamente ao outro progenitor. "Provavelmente vamos ter muitos mais capítulos até que se descubra a verdade", conclui. Num final provavelmente comparável ao que este Ímpar nos oferece — Só que ao contrário das novelas, no vinho, um final longuíssimoooo é uma coisa (muito) boa!