Situada mesmo junto à saída do Castelo de São Jorge, a igreja do Castelo é ponto de passagem – e paragem – para muitos dos milhares de turistas que diariamente visitam um dos mais emblemáticos monumentos da capital. Muitos talvez nem saibam, mas terá sido ali, naquele mesmo local, onde, antes, se acredita ter existido uma mesquita, onde terá sido "celebrada a primeira missa depois da reconquista de Lisboa por parte dos cruzados", como explica o padre Edgar Clara, o pároco da igreja, cujo empreendedorismo já se tornou num autêntico caso de estudo.
Não se sabe se os cruzados terão brindado com cerveja após a entrada na cidade, mas é bem provável, tendo em conta que a maioria vinha do norte da Europa e das ilhas britânicas, de qualquer forma seria sempre uma boa narrativa para publicitar a nova Santa Cruz, a cerveja artesanal que a partir deste mês estará à venda na loja da Torre Sineira, também ela criada pelo Edgar, para financiar o restauro de um dos mais antigos templos de Lisboa. "O conhecimento é o grande investimento, pois o nosso único objetivo é recuperar para dar a conhecer e expor o património desta igreja", refere o pároco, dando como exemplo "a relíquia da santa Cruz", um pequeno pedaço de madeira que se acredita pertencer à cruz na qual Jesus Cristo foi cruxificado, hoje exposta na igreja com todas as condições de conservação e segurança.
A cerveja Santa Cruz, recentemente lançada, faz parte desta estratégia, já antes ensaiada na vizinha igreja de São Cristovão, também ela recuperada envolvendo a comunidade local e os turistas.
"Esta não é uma igreja tão imponente como a de São Cristovão, mas também tem uma luz própria", reconhece o padre, que criou ele próprio um novo desenho de luz, para evidenciar a beleza dos diversos altares, cujo restauro é feito ao vivo e em frente aos visitantes. "Este tipo de projetos só são possíveis devido ao turismo e têm de ser totalmente transparentes em termos financeiros, para que não haja qualquer dúvida sobre a forma como o dinheiro é usado", sublinha Edgar, que financiou, por exemplo, um trabalho arqueológico com recurso a georradar para tentar encontrar a antiga mesquita que se acredita ter aqui existido.
Edgar, que é o pároco responsável por mais outras oito igrejas, reconhece haver cada vez menos moradores no centro histórico da capital. Devido a essa realidade, assume-se como "um padre frustado", mas também viu nela uma oportunidade para fazer algo mais. "Passei a ter 5 milhões de paroquianos, embora na maior parte das vezes só tenha 5 minutos para interagir com eles uma única vez. Tive de adaptar a minha pastoral a essa nova realidade", diz com humor. Exatamente o mesmo raciocínio aplicado, primeiro, na igreja de São Cristovão e, agora, na de Santa Cruz, onde os espaços de culto são de entrada livre nas zonas em que as partes que o não são, como a torre ou o coro, têm entrada paga. "Não peço um milhão a uma pessoa, mas um euro a um milhão de pessoas", esclarece com humor.
O projeto de recuperação da Igreja de Santa Cruz do Castelo começou em 2018, com a abertura ao público da torre sineira, literalmente um dos pontos mais altos da Lisboa antiga e que está assente em plena muralha da Alcáçova do Castelo de S. Jorge. A torre foi reconstruída após o terramoto de 1755 e tem uma das melhores vistas panorâmicas sobre a capital e o Tejo. Ao longo de vários anos o espaço esteve encerrado e foi sofrendo um processo de degradação acelerado. Por iniciativa do Padre Edgar, foi então transformada em miradouro, com a entrada a ser feita pela antiga capela mortuária, entretanto transformada em bilheteira e loja de recordações, onde são vendidos vários produtos feitos em conventos nacionais – vinhos, biscoitos, doces ou infusões.
Desde que abriu e mesmo com a interrupção da atividade turística devido à pandemia, já subiram à Torre dos Sinos quase 300 mil pessoas e terão visitado a Igreja de Santa Cruz do Castelo perto de 400 mil. Só no ano passado, o miradouro da torre sineira recebeu mais de 58 mil visitantes. A entrada tem um preço de €5 e inclui a degustação de uma bebida (vinho do Porto de missa, ginja, café, água e, agora, também a nova cerveja). À entrada, os visitantes são encaminhados para uma primeira sala, onde é projetado um curto filme com a história de Lisboa desde a chegada dos cruzados até hoje, seguindo-se então a aguardada subida dos 50 degraus que conduzem até ao topo da torre.
Aquando da nossa visita estavam lá em cima um casal neozelandês e outro australiano. Não se conheciam, mas ambos tinham vindo fazer os caminhos de Santiago e aproveitado para ficar mais uns dias a conhecer outros recantos da Península. Uma oportunidade de ouro para apreciar ao vivo a nova pastoral do padre Edgar, que convidou a mais nova do grupo a tocar o sino da igreja, antes de encetar uma breve e animada conversa sobre a história da igreja e do próprio catolicismo em Lisboa. "Posso mesmo? Diz ali que é proibido", hesitou a jovem neozelandesa. "Sim, pode, fui eu que escrevi isso, sou o padre desta igreja", respondeu Edgar, provocando gargalhadas em todos os presentes.
O objetivo, agora, é conseguir as receitas suficientes, "cerca de 200 mil euros", para terminar o restauro dos altares, mas também e especialmente para restaurar "os valiosos e lindíssimos painéis da Cartuxa", 11 telas da autoria de Domingos António de Sequeira, pintor português da segunda metade do século XVIII, que retratam os mártires da Cartuxa de Londres e terão vindo da Cartuxa de Évora para esta igreja. Mais uma vez, o objetivo é tornar este tesouro público, mesmo os trabalhos de restauro, que segundo Edgar, poderão ser observados ao vivo por quem visita a igreja, tal como já acontece com os altares.
É caso para dizer que a nova Santa Cruz é assim uma cerveja abençoada, mas também solidária, pois foi criada para "ajudar a restaurar uma herança cultural com 800 anos". Além de ser muito boa, pois sendo do estilo Imperial Saison, normalmente bastante simples, é temperada com medronho e cardamomo, o que lhe acrescenta bastante personalidade, bem como mais um pouco de teor alcoólico – mas isso, decerto, também não será pecado, tendo em conta o objetivo final. Portanto, quem a quiser provar (e ajudar em tão nobre projeto) pode adquiri-la na loja da Igreja de Santa Cruz ou no bar cervejeiro Crafty Corner, em Lisboa.