O cozinheiro trocou as voltas ao destino que lhe tinha ditado o curso e o casamento. Tem quatro restaurantes em Lisboa, três dos quais com cozinha italiana. Sonha quase sempre, mas a meditação e os conselhos da mulher dão-lhe tranquilidade e paz.
Como foi a sua infância?
Nasci no Nepal, mais ou menos no centro do país, numa aldeia numa casa de campo, rural, onde o meu pai era agricultor. Tinha alfaias, moinhos, animais e produtos como milho, arroz, grão, muita coisa. No contexto dali, era rico, mas saliento que não vivi como tal. Ia à escola – 45 minutos para cada lado a pé, mas depois tinha de trabalhar com o meu pai. Todos ajudavam, pai, mãe e os filhos, eu mais três rapazes. Ficava perto de Pokhara, a segunda cidade maior do Nepal.
E depois da escola? O que esperava fazer?
A ideia do meu pai era que fosse advogado e, para o satisfazer, entrei na faculdade e estudei Direito. Como era mais longe, cerca de 15 quilómetros, vivia numa casa alugada perto da universidade com o meu irmão que estava na mesma turma.
Chegou a terminar?
Não terminei. Na altura ainda havia muitos casamentos combinados pelas famílias e tinha medo que o meu pai me pedisse para casar. Por isso "fugi" do Nepal.
Como é que foi essa "fuga"?
No dia de casamento do meu irmão mais velho, encontrei um amigo que ia para fora e pedi-lhe que me levasse. Supliquei ao meu pai, disse que não precisava de nada, não queria herança nem nada, só queria um cheque de mil dólares para viajar para a Alemanha. O meu pai acabou por ceder.
Como é que foi essa conversa?
No início não queria, mas depois convenci-o. Ele tinha boa impressão, acreditava em mim. Estava preocupado, tal como a minha mãe, porque eu tinha feito 18 anos apenas há dois meses. Mas convenci-os de que não me iria meter na droga nem noutros problemas.
Como foi o começo?
Fui para Estugarda. Tinha um irmão que já lá estava, sabia que ia ter com ele, mas mais nada. Mas só tive um emprego. Trabalhei sempre no mesmo restaurante, o Villa Rustica. Com o mesmo o patrão, Mauricio Estrano, com quem ainda hoje tenho uma grande ligação. Foi onde tive todas as oportunidades para aprender. Comecei por lavar pratos um mês e 19 dias, contados. Depois a ajudar a fazer saladas e a seguir a fazer pizzas. Nessa altura trabalhei 23 semanas sem folgas por minha vontade, não que ele me tivesse obrigado. Estive como copeiro, ajudante de cozinha, pizzeiro, barman, empregado de mesa, sous chef e, em menos de três anos, chef. Quando veio ter comigo no ano passado, disse-me que fui o único na sua vida que tinha aprendido tão rápido e com tanto gosto.
Aprendeu várias línguas?
Antes de aprender alemão aprendi a falar em italiano. Depois frequentei um curso de alemão. Mas ainda bem que aprendi porque foi muito importante para a minha carreira.
Como é que era a sua vida na Alemanha?
Como era novo conseguia fazer amigos alemães, mas muito mais italianos. Em Portugal consegue-se fazer amigos sem nos sentirmos estrangeiros, mas na Alemanha é mais difícil. Tenho admiração pela forma como trabalham mas, para viver, Portugal e os portugueses são maravilhosos.
Esteve quatro anos e meio no mesmo restaurante. O que mudou a seguir?
Vim de férias a pensar que ia ficar duas semanas em Portugal e já lá vão 26 anos. Não sou de acreditar no destino, mas calhou Portugal, e ainda bem, porque gosto de viver cá. Gosto das pessoas, do clima. Fora do meu país, é o melhor país do mundo.
Mas na altura, porque decidiu ficar?
Quando vi as cozinhas italianas em Portugal percebi que estavam muito abaixo do nosso nível na Alemanha. Foi a luz ao fundo do túnel. Se eu ficasse por aqui conseguiria fazer o meu próprio negócio.
Veio sozinho?
Naquela altura sim. Cheguei em outubro de 1996 e tinha trazido 500 marcos. Falei com o meu patrão e perguntei-lhe se podia ficar por cá, para surpresa de todos. Na altura o dinheiro acabou e eles chegaram a enviar-me mais, mas como voltou para trás, dormi vários dias num quarto onde não havia cobertores. Tive de me tapar com o casaco. Foi uma experiência isolada. A partir daí, todos me ajudaram e muitos destes meus novos projetos é como se fossem um pagamento desta dívida para com Portugal.
Onde começou a trabalhar?
No centro de Lisboa no La Trattoria que ainda existe. Comecei a fazer pizzas porque em Portugal, nos anos 90, ninguém fazia pizzas sem ser com um rolo de massa. Então comecei a fazê-las à mão e as pessoas olhavam como se fosse um espetáculo.
Abriu o seu primeiro restaurante, Come Prima, em 1999. Tinha a ideia do que iria ser?
O crédito vai todo para o meu ex-patrão Maurício que me ensinou tudo. Sabia o que ia fazer porque o tinha feito na Alemanha. Só não tinha a noção de que iria ter sucesso tão rapidamente.
E como correu?
Não sei se é sorte ou trabalho, também não acredito muito na sorte, mas depois de uma semana começou a haver filas para o restaurante.
Porquê isso aconteceu?
Em 1999 fazia o meu próprio pão. Em 2000 fazia a minha massa fresca. Depois as coisas foram acontecendo. Em 2006 já trabalhava com fermento biológico e em 2010, quando ninguém sabia o que era pizza napolitana, comecei a fazê-las no Come Prima.
E quem eram os clientes?
Havia pessoas vindas de muitas empresas e dos ministérios da Educação e Negócios Estrangeiros. Penso que terão vindo os ministros, mas não os conhecia. Havia gente das embaixadas que são hoje meus amigos e, passados 24 anos, continuam a ser meus clientes.
Quando abriu o seu primeiro restaurante já estava casado, mas conseguiu que não fosse o tal casamento acordado pelas famílias. A Sita Sapkota também é nepalesa…
Quando falo da Sita, fico sem palavras. Eu sou o voador e ela puxa-me um pouco à terra. Diz-me para pensar, para ter calma. Sempre me apoiou nos meus projetos e cada ano que passa tem mais influência. É uma mulher de sonho, que está feliz em família. Se não fosse ela muitas coisas podiam não ter acontecido. Conseguimos sonhar a dois.
Como a conheceu?
Quando fui ao Nepal em 1998 ainda era pequena e conheci-a porque tinha uma ligação anterior com o pai. Depois cresceu e comecei a escrever-lhe cartas. Demorava um mês para chegarem. Enganei-a um pouco na idade [risos].
Como foi isso?
Pela fotografia nunca descobriu a minha idade porque eu tinha cara de criança. Ela e a família nunca perguntaram que idade eu tinha e, afinal, tenho nove anos e três meses de diferença. Tenho 49 anos: não é muito nem é pouco. Casámos em 2002 e ela veio para Portugal.
Mais tarde abriu mais três restaurantes. Qual foi a ordem?
Come Prima, Casa Nepalesa, Forno d’Oro e Il Mercato.
Porquê o nepalês?
As pessoas perguntavam-me sempre porque não fazia comida nepalesa no Come Prima. Respondia que nunca o faria, não gostava de misturar comidas. Então decidi fazer a cozinha da minha terra Natal num sítio com todas as condições. E, de facto, quando se entra, sente-se que se está no Nepal. Abri numa altura em que havia crise, em 2010, mas mesmo assim correu sempre muito bem.
E o Forno d’Oro?
É um sonho que começou a surgir em 2009, 2010, quando fazia pizzas napolitanas no Come Prima. Falei com a Sita, consultei clientes e disseram que os portugueses gostam de pizzas finas, crocantes, pelo que seria um enorme risco. Arrisquei e abri em 2015. Poucos portugueses sabiam o que era pizza napolitana, hoje há centenas de cópias, mas fico muito contente por isso.
Finalmente o Il Mercato.
Em 2016. Comecei quase na brincadeira, mas depois começou a ser um assunto sério. Quando abri não havia quase nenhum restaurante com um mercado dentro e hoje é uma moda. Fico tão orgulhoso de ter feito estas maluqueiras. Acho que tenho algum jeito para fazer coisas diferentes.
Há mais na calha?
Desde 2016 que me comprometi a focar-me na qualidade dos meus restaurantes e não abrir mais. O dinheiro faz falta, mas não é tudo. Estou a concentrar-me em oferecer a melhor qualidade possível.
Recentemente, com uma equipa vinda de Itália, procurou trufas em Portugal. A trufa na cozinha é uma marca sua?
Comecei a trabalhar com a trufa preta na Alemanha e, em 2007, com a branca no Come Prima que hoje já é uma referência nacional nas trufas. Em 2018 fiz um documentário sobre a cozinha italiana e acabei nomeado Cavaleiro das Trufas Brancas da Alba, uma das 20 pessoas escolhidas no mundo inteiro. E, entretanto, sempre me perguntei porque não fazia uma plantação de trufas em Portugal.
Arrancou com esse projeto em 2022…
É um projeto muito difícil e dispendioso. O mais complicado até hoje, mas fico contente pelas ajudas porque não era possível fazer individualmente. No início pareceu impossível, mas depois começaram a abrir-se portas. Tornou-se viável graças aos ministérios da agricultura e ambiente e universidades que ajudaram.
O projeto passava por encontrá-las no nosso país?
Encontrámos apenas trufas vermelhas, mas parece que temos condições para um dia conseguimos cultivar trufas pretas. Dois meses antes o sonho era encontrar trufas, hoje é conseguir produzir trufas pretas em Portugal.
E essas trufas vermelhas?
São muito perfumadas, mas em Itália não têm tanto valor comercial porque são utilizadas de um dia para o outro. Até podem ser mais valiosas, mas sem se certificar não podemos dizer.
Onde esteve?
Vimioso, Figueira da Foz, Pombal, Lisboa e Marvão. Depois de termos passado por estes territórios, ficámos mais convictos de que temos possibilidade de produzir trufas pretas.
Tem ideia de onde se poderiam produzir?
Para conseguir cultivar trufas são necessários, pelo menos, cinco condições: ph alto entre 6.8 a 8.5, terreno calcário, altitude até 600 metros, plantas como choupos, azinheiras e carvalhos e bastante chuva. Condições que temos entre Figueira da Foz e Lisboa ou em Marvão. Nos próximos tempos vamos revelar como vamos fazer o próximo projeto.
Que pratos de trufa mais gosta de cozinhar?
Quando falo de brancas há pratos mais simples para as conseguir sobressair, para não perderem o perfume, com ovo cozido a baixa temperatura ou estrelado e massas frescas. Em pretas podem fazer-se muitos tipos de pratos.
Entre projetos e restaurantes, como se divide no dia a dia?
De manhã, pelas 8h, 8h30, faço pelo menos uma hora de meditação. A seguir vou para a gestão dos restaurantes, saber como as coisas estão a correr e, à tarde, o mesmo até às 17h, 17h30, onde faço mais meia hora de meditação. Janto pelas 18h e trabalho até cerca das 23h30. A seguir faço um passeio com o cão. Creio que trabalho demais e gostava de reduzir um pouco, mas não está a ser possível. Não fumo, bebo um copo de vinho por semana e não tenho nenhum mau hábito, apenas o trabalhar demais.
Costuma passar em todos os restaurantes ou tem pessoas de confiança em cada um?
Tenho pessoas de muita confiança em cada um, mas passo quase todos os dias para perceber o que correu bem e mal, e onde podemos melhorar. Tenho a minha família como meus braços direitos, meus pilares, para conseguir manter a qualidade dos restaurantes.
Quantas pessoas da família tem a trabalhar consigo?
O meu irmão na Casa Nepalesa, dois cunhados no Forno d’Oro e il Mercato e dois primos no Mercato e Come Prima.
Tem algum projeto em mãos?
O próximo passo é divulgar produtos locais para terem mais força no mercado. Boletos, espargos, túberas, percebes, há muita coisa além de vinho e azeite. Os italianos divulgam muito bem os seus produtos e gostava de ajudar a divulgar os nossos.
Como é que acha que Lisboa vai reagir isto tudo? Primeiro pandemia, depois a guerra…
Lisboa creio que não vai sofrer muito, porque temos muito turismo. Portugal pode perder a força que tinha, mas talvez sofra menos que o resto da Europa. Estamos aqui no canto, não é? Talvez o sítio mais seguro da Europa. As pessoas têm apostado nos negócios, compram casas e vivem aqui, mas vai ser muito difícil para os portugueses porque não há condições salariais para pagar os valores das casas. Não posso mudar o mundo, mas posso ajudar a melhorá-lo.