A maioria dos contrarrótulos nas garrafas não dizem grande coisa. Meia dúzia de jargões vínicos, pensados para impressionar os leigos, e pouco mais. Mas o contrarrótulo do Legado merece especial atenção porque tem uma frase de Fernando Guedes que explica bem a sua razão de ser: "Legado é mais do que um vinho", lê-se, "é o testemunho de um saber que recebi do meu pai, e que agora deixo às gerações futuras da nossa família".
Fernando Guedes sabia que um dia deixaria a Sogrape (que recebeu do pai, transformando-a na maior empresa do setor em Portugal) aos seus filhos, mas aqui tratava-se de outra coisa. Este vinho seria a sua passagem de testemunho, o símbolo do seu amor pelo vinho. O seu "legado", portanto, e teria de ser especial…
Ora, esta história começa numa vinha perdida em pleno Douro. Talvez a mais isolada de todas as propriedades que a Sogrape detém. Uma vinha antiquíssima, mais do que centenária, assente ainda em socalcos pré-filoxéricos o que contribui para aumentar o dramatismo daquele anfiteatro natural… É uma vinha à qual ninguém, hoje, fica indiferente, mas quando a Sogrape adquiriu a Quinta do Caêdo nos anos 1990, foi o presidente da companhia quem percebeu primeiro o seu potencial, e salvou aqueles oito hectares da sede modernista das suas equipas, que pretendiam plantar novas vinhas e aumentar a produtividade.
Depois foi necessário reparar e cuidar essa vinha antiga, um processo que só deu frutos na colheita de 2008, que chegou ao mercado cinco anos depois, em 2012. Nascia assim o primeiro Legado e Luís Sottomayor, hoje e então o diretor de enologia da companhia no Douro, recorda-se bem como "o senhor Fernando Guedes nunca me pediu para fazer um vinho perfeito. Queria mostrar ao mundo o que era aquele terroir, aquela vinha, e é isso que temos tentado fazer ano após ano: meter em garrafa aquilo que a vinha nos dá."
Nesses oito hectares podemos encontrar mais de 20 castas, "e algumas em quantidades muito pequenas, mas todas aportam qualquer coisa de único. É isso que lhe aumenta a complexidade."
2017 também não foi um ano fácil. Foi talvez dos mais quentes de que há memória e isso obrigou a fazer uma vindima muito precoce. "Assim tão cedo só me recordo de 1991 e 1995", conta o enólogo antes de acrescentar "é aqui que uma vinha velha faz toda a diferença. Está tão bem-adaptada ao terroir que consegue ultrapassar estas condicionantes e fazer um vinho com muita frescura e harmonia". Teve, ainda assim, uma "pequena" ajuda das equipas de viticultura, que chegaram a realizar três vindimas diferentes para conseguir apanhar cada uva, de cada casta, no ponto certo da maturação.
Um ano quente produz sempre com mais intensidade e concentração, e mesmo passados estes cinco anos temos a sensação de que este Legado tem muito ainda por revelar. A margem de evolução em garrafa parece incrível, o que não é uma boa notícia para quem não tem o dom da paciência. Ainda assim, junte-o à mesa com um bom prato de carne ou caça e vai perceber a sua genialidade. É que alguns vinhos sabem realmente bem por que são extraordinários, mas outros sabem melhor ainda porque são especiais. Podem nem ser tão certinhos, mas as suas "avarias" contribuem também para o prazer que oferecem.
Dez anos separam a edição original de 2008 deste 2017. Dez colheitas, dez Legados, sendo que os últimos foram já lançados sem a presença do mentor. Fernando Guedes viria a falecer um ano após esta colheita, mas a tocha segue em frente, levada pela família. Como faz questão de afirmar o atual presidente do grupo, Fernando da Cunha Guedes: "É um vinho muito emocional para nós, pois cada edição recorda-nos o meu pai, e tudo aquilo que aprendemos com ele."