Prazeres / Sabores

Legado 2019: a nova vida de um grande tinto

Numa casa onde o sucesso é medido pelo Mateus Rosé e a qualidade pelo Barca Velha, não é fácil um vinho sobressair. Mas o Legado destaca-se, e de que maneira.

Foto: DR
Ontem às 15:31 | Bruno Lobo
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Sempre que ouvimos falar em "vinhos de memória" ou "vinhos de lugar" — e ultimamente ouvimos bastante — a nossa mente vagueia até à Quinta do Caêdo, no Douro, e ao Legado. 

A Quinta é deslumbrante na sua rusticidade, desenhada num anfiteatro natural onde os muros pré-filoxéricos parecem formar uma plateia, mas são, na verdade, o palco principal. É aqui que nasce o Legado, um vinho "de assinatura", embora Luís Sottomayor faça questão de esclarecer que não é a sua assinatura, mas sim a das vinhas velhas: "É um retrato autêntico do terroir da Quinta do Caêdo", explica. Um tesouro vínico com mais de 25 castas em field blend, "algumas das quais, como a Tinta Nevoeiro, nem sabemos se existem em mais algum lugar", revela o Diretor de Enologia da Sogrape no Douro, responsável pelos vinhos da Casa Ferreirinha, Sandeman e Ferreira.

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Além disso, encontramos Rufete, "sobretudo Rufete", Tinta da Barca e Touriga Francesa — provavelmente das primeiras plantações destas castas, visto que a vinha foi replantada logo após a filoxera —, Touriga Nacional, Donzelinho, Tinta Amarela ou Casculho. "As vinhas velhas nunca dão muita estrutura", explica, "mas conferem complexidade e harmonia, que é o que pretendemos apresentar." 

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Este é um vinho "de uma simplicidade total", afirma, pois a única "concessão" enológica são as duas ou três passagens durante a vindima — em 2019, foram três — para colher as parcelas, plantadas a diferentes altitudes e exposições solares, no seu ponto ideal de maturação. De resto, "é o que é. O melhor que a vinha nos deu naquele ano, apresentado da forma mais autêntica possível." Sottomayor gosta de enfatizar esta periodicidade: "Sai todos os anos", repete, distinguindo-o assim do Barca Velha, vinho pelo qual também é responsável, e realçando o tributo ao tempo e ao lugar: "Um vinho por vezes imperfeito, mas sempre único."

A história de um Legado 

"Este vinho retrata tudo o que aprendi e recebi do meu pai", disse um dia Fernando Guedes. "Por detrás de cada Legado está sempre a história do meu pai", diz agora o presidente da Sogrape, Fernando da Cunha Guedes. "Do que ele fez, produziu, aprendeu, ensinou e nos deixou." Por essa ligação sentimental e intergeracional, nenhum outro vinho do grupo tem o mesmo significado para a família, nem sequer o Mateus Rosé, com o qual tudo começou, em 1942, pelas mãos de Fernando Van Zeller Guedes. 

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Foi, de facto, Fernando Guedes, um dos primeiros enólogos nacionais, quem melhor entendeu o potencial e a intemporalidade destas vinhas velhas do Caêdo, que fornecem vinhas à Casa Ferreira desde as década de 40 ou 50 do século passado. Foi ele quem, em 2007, já reformado mas ainda muito ativo, convenceu Luís Sottomayor a vinificar essas uvas em separado, "para ver o que sai dali". 

Luís Sottomayor arranjou então um balseiro de duas toneladas — que ainda hoje está na Quinta do Seixo — para essa experiência. A qualidade e a diferença para qualquer outro vinho no portfólio da Sogrape — presente do Alentejo ao Minho, passando por Lisboa, Bairrada, Dão, Douro e Porto — tornaram a decisão de o engarrafar incrivelmente fácil. Mas ainda não era Legado — nesse ano foi engarrafado como Casa Ferreirinha Vinhas Velhas. O nome só surgiu na colheita seguinte, "por decisão do Salvador, do Manuel e do Fernando", recorda o enólogo. "O senhor Fernando Guedes não queria, mas os filhos acharam que seria uma justa homenagem, e tinham razão." 

2019 é, assim, a 12ª edição do Legado, uma história ainda jovem em muitos aspetos, mas com tempo suficiente para estabelecer um padrão de qualidade que, uma vez mais, se confirma. Trata-se de um vinho de cor rubi viva, acidez marcada e fruta madura muito presente. O estágio em pipas maiores, de 1200 litros, contribuiu para que as notas balsâmicas e de resina não se sobreponham à fruta, criando um todo que Luís Sottomayor, e com razão, chamou de "harmonioso". 2019 foi um ano temperado e o ciclo vegetativo desenvolveu-se de forma muito suave, o que se refletiu na elegância do conjunto. 

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Surpresa em paralelo 

Pela sua simbologia, a Sogrape tem por hábito apresentar o Legado em locais ligados à vida e obra de Fernando Guedes. Já o fizeram em sua casa e na escola, em Santo Tirso. Desta vez, foi na Casa da Música, da qual foi mecenas e membro fundador da Fundação. Foi também a oportunidade para ouvir uma peça original de Martim Sousa Tavares, composta em homenagem ao Legado e tocada ao piano pelo próprio. 

Seguiu-se uma "tainada" no Rogério do Redondo, onde nos esperavam muitos dos seus amigos mais próximos. A noite, no entanto, ainda guardava uma surpresa: o Quinta de Azevedo Torre Grande Escolha Branco 22. Definido como o objetivo máximo da marca na aposta nos Vinhos Verdes premium, este verde branco é exuberante, elegante e fresco, cheio de fruta, com todos os atributos de um grande vinho. Uma excelente forma de abrir as hostilidades antes do bacalhau cozido com todos, o prato favorito de Fernando Guedes no Rogério, deixando o palco ao Legado, que brilha onde mais gosta: à mesa. 

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