À primeira vista, o design do mais recente rótulo do Château Mouton Rothschild parece impenetrável aos olhos de um ocidental. Criado pelo artista e gravurista chinês Xu Bing para adornar o vintage de 2018 do excelente vinho Bordeaux, parece reproduzir os hanzi: caracteres chineses. "Quando o mostrei aos meus familiares muito próximos, eles não compreenderam à primeira. ‘O que significa?’, perguntaram. E eu adorei isso", conta Julien de Beaumarchais de Rothschild, vice-presidente do conselho de administração da Baron Philippe de Rothschild SA e co-proprietário daquele Premier Cru [designação dada os melhores vinhos].
O design é um truque visual que une duas culturas. Observando mais atentamente, torna-se evidente que as letras são do alfabeto latino, mas que foi dado um tratamento quadrado à caligrafia e à especificação – que outra poderia ser? – Mouton Rothschild.
Os rótulos artísticos do Mouton Rothschild são famosos junto dos colecionadores de vinhos e conhecedores de arte. Com os anos, um espetacular rol de artistas de classe mundial criou trabalhos originais para celebrar os vinhos vintage desta prestigiada propriedade do Médoc [na região francesa de Bordéus]. Marc Chagall representou uma criança e um tordo a comerem uvas, Henry Moore desenhou três cálices dourados envolvidos em mãos entrelaçadas, Salvador Dalí desenhou uma ovelha desordenada; e a ilustração produzida por Joan Miró, facilmente reconhecível no seu estilo, centra-se num grande bago de uva escarlate.
Agora, Julien de Beaumarchais de Rothschild, que tem supervisionado a escolha anual do artista desde o falecimento da sua mãe, a Baronesa Philippine, em 2014, fala sobre a correria atrás dos artistas (nem todos têm aceitado de imediato) e sobre a história e natureza pitoresca daquilo a que chama de ‘casamento entre o artista e o Mouton".
A tradição dos rótulos artísticos remonta à década de 1920, quando um jovem – que tinha sido evacuado de Paris para Mouton durante a Primeira Guerra Mundial – implorou para ficar responsável pela propriedade vinícola que era do seu pai mas que ele nunca tinha sequer visitado. O Barão Philippe de Rothschild – avô de Julien – chegou a Bordéus em 1922 e, com 20 anos, começou a fazer mudanças. Era uma figura impressionante. Além do vinho, participou várias vezes no Grande Prémio do Mónaco, foi um navegador entusiasmado e geriu uma sala de cinema. No mundo do vinho, foi um modernizador não apenas para o Mouton mas também para o Bordeaux.
Uma das suas grandes conquistas foi conseguir que o Mouton Rothschild fosse elevado ao estatuto de Premier Cru, juntando-se assim à elite das elites –Margaux, Haut-Brion, Latour e Lafite – no topo da classificação de 1855. Foi uma batalha que travou durante décadas e uma promoção que nenhuma outra propriedade vinícola conseguiu. Foi também graças ao Barão Philippe que em 1924 o Château Mouton Rothschild se tornou a primeira propriedade vinícola a engarrafar o seu vinho em vez de o vender em barris.
E foi assim que tiveram início os rótulos artísticos. "Foi revolucionário [engarrafar por conta própria] para a época, por isso quisemos destacar isso e expressar a sua presença no rótulo", explica Julien de Beaumarchais de Rothschild.
Jean Carlu, estudante de arquitetura que se tinha virado para a arte comercial depois de ter perdido o braço direito num acidente aos 18 anos, foi contratado para fazer o primeiro rótulo. O seu arrojado desenho para o vinho engarrafado de 1924 apresenta linhas sóbrias, com o vermelho do vinho e a ovelha a tornarem-se o símbolo do castelo (a tradução de mouton é ovelha, se bem que se diga que o nome do castelo [Château Mouton Rothschild] deriva da antiga palavra francesa motte, que significa pequeno monte). "Mas depois… acho que talvez tivesse sido demasiado revolucionário [para a sua época], por isso ele parou por ali", diz Julien de Beaumarchais de Rothschild.
No final da Segunda Guerra Mundial, o Barão Philippe retomou a ideia, dessa vez pedindo ao artista Philippe Jullian para criar uma ilustração para o lendário vinho da safra de 1945. O rótulo [com um V, de vitória] celebra o fim da Segunda Guerra Mundial e o facto de ser um vinho feito sem a presença das tropas ocupantes alemãs (as forças aliadas libertaram Bordéus em agosto de 1944). Quis o destino que também viesse a ser um vintage espetacular. O Château Mouton Rothschild 1945 é um dos mais venerados vinhos que já existiram e foi nesse ano que começou a tradição de criar um rótulo artístico para cada nova safra.
"O início da coleção foi feito por artistas que o meu avô conhecia pessoalmente", conta Julien de Beaumarchais de Rothschild. "Mas eis que entretanto surgiu o Georges Braque a pedir para fazer um rótulo. Foi incrível. O meu avô estava sempre a dizer que tinha ficado completamente atónito". Braque fez o esboço de um copo de vinho e de um punhado de uvas para o vintage de 1955. "Depois disso, foi como um passaporte, se assim se pode dizer [para atrair artistas de renome mundial].
O fantástico vinho Château Mouton Rothschild é um vinho imenso: complexo, de textura acetinada e com frutas escuras e solo de floresta de terra, típico da denominação de origem Pauillac, a comuna de Bordéus na qual é produzido. O de 2018 tem uma estrutura densa e distinta, com uma abundância característica de frutas negras e notas florais (violetas), sendo opulento na boca e com um toque de exotismo.
Embora o vinho seja altamente colecionável por si só, os rótulos artísticos tiveram o efeito de intensificar de forma única o desejo dos colecionadores de terem o conjunto completo. "Sem dúvida que embora muitos outros tenham adotado a prática de colocar arte nos rótulos, nada se aproxima do impacto que isso tem num Mouton", diz Jamie Ritchie, diretor mundial da Sotheby's Wine. "Mesmo no caso dos vintage menos reputados, o preço de uma garrafa de Mouton é mais elevado do que o de qualquer outra propriedade vinícola comparável. Os vintage mais fracos tendem a ser consumidos mais cedo, pelo que desaparecem do mercado, mas continuam a ser procurados por colecionadores que querem completar o conjunto".
Desde que teve início, tem havido todos os anos um rótulo artístico de alguma espécie (no ano 2000, toda a garrafa se tornou a superfície do desenho) e, incluindo o ano de 1945, o conjunto é formado por 74 rótulos até à data – 75 se contarmos com o original, de 1924. No ano passado, uma garrafa do aclamado vinho de 1945 foi vendida pela leiloeira Zachys, em parceria com as lendárias adegas do Enoteca Pinchiorri [um restaurante três estrelas Michelin em Florença], por 9.920 libras (11.400 euros).
Os artistas são pagos em vinho: os vintage que os seus rótulos adornam e alguns vintage históricos. "Não há qualquer tipo de transação em dinheiro entre os artistas e a Mouton", explica Julien de Beaumarchais de Rothschild, e eles "são livres de criar o que quiserem". Lucian Freud (2006) pintou uma zebra e uma palmeira. David Hockney (2014) fez uma ilustração no iPad, de um copo de vinho cheio e um copo vazio sobre um fundo azul forte. Hockney era cortejado pela família há várias décadas, depois de ter visitado a propriedade Mouton na década de 1970, ainda no tempo do Barão Philippe.
"Não sei a história toda, mas eles não chegaram a acordo… eram ambos possuidores de personalidades muito fortes… não sei bem o que sucedeu", afirma Julien de Beaumarchais de Rothschild, com uma expressão atormentada. A Baronesa Philippine voltou a tentar, na década de 1980, quando ela e Hockney atuaram na mesma peça em Nova Iorque. Mas foi Julien de Beaumarchais de Rothschild quem selou o acordo, ao meter-se num avião para o visitar na Califórnia e discutir o projeto. "O contacto humano, conhecer pessoalmente o artista, é muito importante", diz.
Ocasionalmente, os rótulos comemoram acontecimentos históricos. Para o rótulo de 1989, por exemplo, o pintor Georg Baselitz da Alemanha Oriental desenhou duas ovelhas deitadas com as patas no ar e fez referência à queda do Muro de Berlim. Para o de 2004, o príncipe de Gales foi convidado a fazer uma ilustração e o rótulo ostenta uma das suas aguarelas com os pinheiros da paisagem da cidade costeira francesa de Cabo de Antibes. "A ideia foi celebrar o 100.º aniversário da Entente Cordiale anglo-francesa. O ramo da nossa família que comprou esta propriedade em 1853 era oriundo de Inglaterra, pelo que há uma lógica nisso", explica.
A escolha do artista tem pouco a ver com um processo formal, sendo mais o resultado de conversas em família, afirma Julien de Beaumarchais de Rothschild. "Debatemos uns com os outros e fazemos uma lista com ideias de diferentes artistas de várias partes do mundo. A única questão é que têm de ser bastante conhecidos – isso é absolutamente vital. É uma escolha que fazemos: não descobrirmos artistas novos". Alguns dos artistas mergulham mesmo de corpo e alma no lado vinícola da sua arte: o pintor Lee Ufan, nascido na Coreia do Sul, fez questão de ajudar com os preparos, na adega, do vintage para o qual desenhou um rótulo (o de 2013). Outros contentam-se simplesmente em desenhar.
Julien de Beaumarchais de Rothschild transporta-nos até à ligação poética entre a arte e o vinho. "Todos eles, cada um à sua maneira, nos transportam para um outro mundo. Mas o facto de o trabalho artístico no rótulo do Mouton mudar todos os anos também nos faz lembrar que embora um grande vinho mantenha sempre o seu carácter distintivo, definido pela excelência do terroir [termo que traduz a influência de diversos fatores na qualidade das uvas das vinhas, como os solos, clima, casta, etc.] e por quem está encarregado dele, há sempre uma variação de um vintage para outro".
Victoria Moore/The Telegraph/Atlântico Prees
Tradução: Carla Pedro