Prazeres / Lugares

Uma grande surpresa vínica no Alentejo

Famoso pelo seu hotel de cinco estrelas, o São Lourenço do Barrocal quer agora afirmar-se pela produção de vinhos, o que, depois de percebermos melhor a história do lugar, estava mesmo destinado a acontecer.

Foto: Ash James
29 de março de 2022 | Bruno Lobo
PUB

A maioria dos enólogos e viticultores diz-nos que um bom vinho não nasce em solos ricos e férteis. Pelo contrário, precisa de algum stress hídrico (de pouca água, entenda-se) para que as vinhas possam revelar todo o seu potencial. Longe de nós contrariar os especialistas, mas, rodeados pelas vinhas de São Lourenço do Barrocal, e olhando para a beleza da vila de Monsaraz que se ergue bem à nossa frente, ficamos com vontade de questionar a ideia. Afinal, aqui nada parece stressante.

Foto: Nelson Garrido

O mais estranho é que a ideia pode não ser totalmente absurda. Pelo menos, a julgar pelas palavras de José Rogel, enólogo residente no Barrocal, que nos explica a influência da paisagem sobre o vinho. "Monsaraz é uma grande rocha de xisto", conta, "e a erosão traz muita argila para aqui, o que ajuda a tornar o solo mais rico e aumenta a capacidade de retenção de água." Um pormenor fundamental numa vinha propositadamente de sequeiro, numa das regiões mais quentes do Alentejo. José (leia-se Xosé, pois é galego) é o vice-comandante desta armada capitaneada por Susana Esteban, e é ela quem continua a nossa educação: "Ali é xisto e aqui granito. É essa a beleza deste terroir. O granito ajuda a produzir vinhos mais frescos, que não são só concentração, e têm mais complexidade." A enóloga, que nasceu em Tui, Espanha, mas tem feito carreira em Portugal, diz que de início "não acreditava que pudesse produzir vinhos tão frescos, com todo o calor que aqui se faz sentir. Foi uma grande surpresa". E explica também a opção de não regar: "conseguimos vinhos mais autênticos e fiéis ao terroir".

Foto: Nelson Garrido
PUB

Uma surpresa, parece-nos, partilhada agora pelos hóspedes do hotel. Afinal, quem chega ao Barrocal vem normalmente para relaxar num dos enormes quartos do hotel, dar uns mergulhos na piscina desenhada por Souto Moura, fazer um passeio de balão de ar quente que levanta voo dentro da propriedade, ou até para fazer um tratamento no Susanne Kaufmann Spa. Provar os vinhos não estava certamente no topo da lista, mas foi com sacos de garrafas que vimos muitos hóspedes sair – e, pelo chocalhar, diríamos até que gostaram muito desta descoberta inesperada.

Quem parte e reparte, e não fica com a melhor parte…

Para se fazer a história do vinho em Reguengos não é necessário recuar aos tempos dos fenícios ou dos romanos. Bastam 200 anos. E a história de um homem, Manuel Mendes Papança, empresário local, como hoje se diria, político e benemérito, que chegou a pagar a dívida da Câmara Municipal do seu próprio bolso quando assumiu as funções de presidente. Mais importante, foi o grande impulsionador e o responsável pela reconversão da gigantesca Coutada de Caça da Casa Real em terrenos agrícolas. As terras foram divididas pelas gentes do concelho, mas em troca ficou uma obrigação: a de plantar pelo menos um hectare de vinha. Foi esta a génese da maior sub-região de vinhos do Alentejo e a razão, também, pela qual ainda hoje Reguengos tem das propriedades mais fragmentadas de todo o Alentejo, com muitos pequenos produtores.

Foto: Ash James
PUB

Entretanto, o "velho Papança", que não era obviamente tolo, guardou para si a maior e a melhor de todas as parcelas: 780 hectares que transformou numa pujante propriedade agrícola, onde se criava gado e cultivavam cereais, azeite e, claro, vinho.

Com o tempo, o São Lourenço do Barrocal (SLdB) tornou-se numa comunidade que albergou mais de 50 famílias, que trabalhavam e viviam da terra. Uma "aldeia" com rua principal e praça central, com as casas dos trabalhadores e a casa do senhor. Tinha oficinas, celeiros, adega, lagar e pocilgas. Tinha cocheiras e até uma escolinha e uma praça de touros. Pormenor curioso, o apelido de Manuel Mendes Papança perdeu-se no tempo, mas não a linhagem e em dois séculos a propriedade nunca deixou de estar nas mãos dos seus descendentes.

As vinhas do Uva

Hoje é José António Uva, oitava geração da família, quem lidera os destinos do Barrocal. Uva cresceu a ouvir falar nesses tempos de glória, mas o que via na viragem do milénio era uma propriedade degradada e com edifícios quase em ruínas. A herdade foi expropriada após o 25 de abril, e os anos subsequentes estiveram longe de ser prósperos. Situação que não melhorou com a devolução das terras. "Ou", pensou, "se cria um plano para recuperar e rentabilizar a quinta ou chegou finalmente a hora de a deixar partir". Foi assim que idealizou um projeto moderno e ambicioso, com a criação de um hotel rural de luxo discreto, que funcionasse a par da propriedade agrícola. Cada uma das duas vertentes do negócio tinha a ganhar com a outra e, neste contexto, o vinho fazia obviamente parte dos planos – à semelhança do já tinha feito o seu tetra, tetra (ou algo parecido) avô.  

PUB
Foto: Ash James

Mas antes de concretizar o sonho havia muito trabalho por fazer e José António soube escolher os nomes certos. Convidou o vencedor de um prémio Pritzker para desenhar o hotel, com o constrangimento de não poder alterar nada daquilo que estava edificado na velha propriedade agrícola, em total respeito pelo passado. Uma "intervenção mínima" que, como justificou o próprio Eduardo Souto Moura, valeu-lhe um Leão de Ouro na Bienal de Arquitetura de Veneza. O projeto de interiores ficou a cargo da dupla Ana Anahory e Felipa Almeida, que contrabalançaram as linhas minimais com objetos antigos, fotografias da família e uma curadoria de artesanato local, que traz a história do lugar para esta nova vivência. E, para o Spa, convenceu Susanne Kaufmman que o complemento perfeito aos alpes austríacos era a planície alentejana… Para o final estava a escolha da enóloga.

Foto: Philippa Langley

 

PUB

"No vinho, só os primeiros 200 anos é que são difíceis"

Susana Esteban já foi considerada enóloga do ano e produtora revelação, e foi uma das grandes responsáveis pela recuperação de Portalegre e das suas vinhas antigas para a ribalta nacional. Mas aqui não encontrou propriamente vinhas velhas que adorasse: "as castas", explica, "foram plantadas mais pela quantidade que produziam do que pela qualidade", numa altura em que a ideia não era vender vinho, mas uvas. Admite, no entanto, que a idade já lhes conferiu outro estatuto, e é com base nas Perrum, Rabo de Ovelha e Manteúdo que produz um dos topos de gama do Barrocal: um delicioso vinho de Talha, muito macio na boca.   

Foto: Filipe Lucas Frazão

Algumas vinhas mudaram de sítio, para apanhar também solos de xisto, e reconverteram toda a produção para ser certificada como 100% biológica, o que aconteceu o ano passado. Susana plantou também novas castas, algumas internacionais como Syrah, Viogner ou Marsanne, que por aqui se dão muito bem. O Syrah, aliás, está no bom caminho para se tornar num monocasta icónico do Barrocal. Na base dos outros tintos encontramos uma trilogia composta por Alicante Bouschet, Aragonez e Touriga Nacional, tanto no Reserva como no Tinto do Barrocal, embora não necessariamente nas mesmas percentagens. Diferem ainda pelo tempo de barrica, só para o Reserva, mas curiosamente, apesar de fazer a diferença, a madeira surge tão discreta que mal se nota.

PUB
Foto: Philippa Langley

Nos brancos a situação é semelhante, com o Reserva a fazer-se de Roupeiro e Viogner, e o Branco a juntar-lhes Marsanne. São ambos vinhos equilibrados e frescos, que resistem bem à passagem do tempo, ainda que o Reserva revele uma melhor acidez.

A dupla Esteban/Rogel aproveitou estes últimos anos para afinar melhor as castas e os blends em adega que, por sinal, também foi desenhada por Souto Moura e é outro ex-libris do Hotel. Nota-se a grande evolução dos vinhos, o que nos faz lembrar a célebre frase da Baronesa de Rothschild, antes de concluir como o São Lourenço do Barrocal parece definitivamente preparado para enfrentar os próximos 200 anos.

PUB