Estou deitado, à espera de um lobo – ou, melhor ainda, de toda uma alcateia. O covil dos lobos está escondido por entre as rochas de um rio seco e poeirento por baixo de mim. Uma hora antes, o meu guia Nergui conduziu-me até à entrada da toca, mostrando-me excrementos, marcas das patas e a carcaça recentemente esquartejada de uma cabra. Ninguém ‘estava em casa’ – a pedra de Nergui atirada para o sítio certo assim o determinou –, pelo que estou de piquete ao esconderijo, nas escarpas mais acima, na esperança de que os proprietários da toca possam regressar. Os meus companheiros regressarão quando o sol se puser para me recolherem.
Enquanto isso, tenho todo aquele território selvagem só para mim. Sou um pequenino ponto por entre áridos efluentes da Reserva Natural de Ikh Nart, na orla norte do Deserto de Gobi na Mongólia. Num país famoso pela sua vastidão e vazio, não há outro local mais vasto ou desértico do que este. Nos últimos 10 dias tenho andado sempre em movimento – como convém nesta terra de nómadas –, mas agora, por fim, parei por um pouco. É como se fosse um tempo de reflexão; talvez até com um pouco de inspiração Zen.
Algures no horizonte está o meu acampamento. Chegámos ontem, depois de uma longa caminhada, a calcorrear as planícies de cascalho enquanto o nosso equipamento seguia à frente, num comboio de camelos-bactrianos com duas bossas. Apesar da sinistra camada de ossos descolorados por baixo dos nossos pés, havia vida por todo o lado: gazelas mongóis em marcha apressada, carneiros da montanha com grandes chifres a olharem fixamente do cimo das escarpas e chascos que surgiam por entre as pilhas de rochas para matraquearem as suas melodias chiadas.
Poderá pensar que é um local demasiado remoto para os humanos. No entanto, se observarmos mais atentamente, alguns destes amontoados de pedras eram antigas campas. Numa das planícies encontrámos as ruínas de um complexo de templos budistas, que – a par com a maioria dos restantes locais sagrados da Mongólia – foi destruído na década de 1930 pelo então governo estalinista. Nergui contou-me que já ali tinham vivido mil monges. Agora conseguimos identificar lascas de peças de cerâmica estilhaçadas e, pior ainda, invólucros de balas dispersas. Mas também vimos uma guirlanda de bandeiras de oração enrolada num pilar de arenito ali perto.
O nosso acampamento tinha meia dúzia de gers [tendas tradicionais mongóis] brancas dispostas como caixas para guardar chapéus, ao longo da areia do deserto. Estas tendas circulares temporárias, frequentemente conhecidas como iurtas, são parte integrante do estilo de vida nómada dos mongóis, sendo tradicionalmente construídas de modo a poderem ser desmanteladas e guardadas nas carroças puxadas por iaques em menos de duas horas.
O interior da minha tenda era fiel à tradição, com os raios da armação da estrutura interna em madeira, forrada com feltro e com uma chaminé. Mas as almofadas espalhadas, as decorações das paredes e o lavatório não são aquilo que um típico pastor mongol poderá esperar. Nem a casa de banho privada do acampamento e as tendas com chuveiro, nem tão pouco o restaurante-tenda onde desfrutávamos das nossas refeições. A paisagem podia ser agreste, mas nós certamente que não passámos por agruras.
O meu primeiro contacto com as paisagens mongóis de fazer cair o queixo tinha acontecido 10 dias antes, nas Montanhas do Altai, no extremo oeste do país. Depois de um voo com saída da capital, Ulan Bator, fomos transferidos, por estrada, para a poeirenta povoação de Delun. Eu disse "estrada", mas, na verdade, o nosso caminho pouco mais era, na maioria das vezes, do que trilhos de pneus. Sem quaisquer povoados ou tabuletas a indicar o caminho, fizemos o percurso orientando-nos pelo horizonte (um cume aqui, uma selada acolá) e seguíamos a pista das tendas que íamos encontrando. "É o GPS mongol", disse o meu guia Batana. "Ger Positioning System!" [Sistema de Posicionamento das Tendas]. Enquanto isso, o nosso motorista, Erdene, prosseguia uma lamentação matinal. "É por causa da mãe dele", explicou Batana, ao ver a minha curiosidade. "Ele diz que ela faz o melhor chá da manhã".
Nas montanhas em redor de Delun encontrámo-nos com Yerbol, um dos tradicionais caçadores com águias daquela região [que são, habitualmente, cazaques]. Chegámos e encontrámos o nosso homem com vestes tradicionais de cor púrpura e um chapéu de pele de raposa – e atracada a ele estava a Achtanik, a sua águia dourada, uma fêmea com quatro anos. Esta ave formidável empoleirava-se nas grossas luvas do seu detentor, que se estendiam pelo pulso, batendo de vez em quando as suas vastas asas para se equilibrar. Atualmente, já só restam menos de 200 caçadores com águias e Yerbol é uma espécie de lenda local. Montado no seu cavalo, tendo como pano de fundo o Altai coberto de neve, Yerbol é uma figura que impressiona. Mesmo tendo eu colocado as suas luvas e sentido a aderência daquelas enormes garras, não consegui ter a mesma confiança que ele.
O Altai é a terra do leopardo das neves – e de regresso a Delun tivemos conhecimento de um projeto local de monitorização destes raros animais que visa também atenuar os conflitos com os pastores da região. No dia seguinte descemos até ao vale de Chigertei, ali perto, para nos dirigirmos aos gigantescos picos na fronteira chinesa. Um bando de grous-pequenos levantou voo à nossa aproximação e um pastor e o seu filho montados a cavalo encaminhavam o seu rebanho pelo vale, num irresistível pano de fundo a fazer lembrar um quadro numa caixa de bombons. Mais à frente, numa zona florestal, o nosso guia dos parques nacionais, Yelik, parou para verificar uma armadilha fotográfica montada no tronco de um larício.
Num aglomerado de tendas ali perto, parámos para cumprimentar e provámos uma caneca de chá de manteiga de iaque, com o seu sabor salgado. Este acampamento tinha sido montado há apenas três dias, quando a família chegou para as pastagens de verão. Batana chamou a atenção para as particularidades do interior da tenda: como o lado do homem está virado para oeste e o da mulher para leste, com os seus pertences dispostos da mesma forma. Sentámo-nos em cima de tapetes e trocámos cortesias, enquanto algumas crianças espreitavam à porta com os olhos abertos de espanto. Perguntei à avó – com a ajuda da tradução de Batana – se alguma vez tinha visto um leopardo das neves. Ela contou-nos como os pastores locais tinham, certa vez, matado um desses leopardos e pendurado a sua pele no exterior da sua tenda; e como, na noite seguinte, dois outros leopardos tinham descido as montanhas e matado 500 ovelhas. Uma história inacreditável, talvez, mas a lição de moral implícita parecia dar algum incentivo a este predador perseguido.
Escusado será dizer que não apareceu qualquer leopardo das neves para deleitar as nossas vistas. Mas naquela noite, de volta ao acampamento, Yelik ligou o seu computador portátil para nos mostrar algumas imagens previamente descarregadas da armadilha fotográfica pela qual tínhamos passado. Entre essas imagens estava uma deslumbrante sequência de uma fêmea leopardo das neves e dois filhotes a cheirarem as lentes da máquina fotográfica. Senti os meus pelos da nuca a eriçarem-se.
À medida que a nossa viagem prosseguia, as surpresas sucediam-se de forma rápida. A um dia de distância para leste, demos connosco a flutuar nas águas límpidas do Lago Dorgon. Este vasto lago interior de água salgada surgiu sob a forma de um impressionante azul por entre os poeirentos planos do deserto e anilhado por um igualmente inesperado mini-Sahara de dunas de areia cor de alperce. Havia uma sensação de irrealidade em torno do nosso piquenique, enquanto os camelos – com as pernas grotescamente alongadas na neblina de calor – passeavam pelas margens e as andorinhas-do-mar sobrevoavam em círculos por cima do balanço das ondas. As Montanhas do Altai continuavam alinhadas no horizonte, mas os seus distantes cumes cobertos de neve pareciam agora uma espécie de falsas imagens geradas por computador.
Cada novo dia foi também reforçando a ideia de movimento que começava a definir a minha visão da Mongólia. Muita da vida selvagem que encontrámos era migratória, desde os raros antílopes saiga que galopavam por entre plumas de poeira, até aos gansos-de-cabeça-listada que tinham sobrevoado os Himalaias
para ali chegarem e procriarem. Sem vedações à vista, os rebanhos – de camelos, iaques, cabras e cavalos – passeavam todos à vontade. E todas as paisagens tinham os seus viajantes humanos: figuras distantes, a cavalo ou de motorizada, percorrendo toda aquela vastidão, e tendas brancas a materializarem-se como naves espaciais no meio do nada. Parámos para cumprimentar um cavaleiro solitário ao estilo de Clint Eastwood, que entreabriu os olhos para os céus e anunciou que o kang (seca) estava a chegar ao fim.
Tudo isto serviu para nos recordar aquilo que tínhamos aprendido no museu nacional, em Ulan Bator, logo no primeiro dia: que a Mongólia era o local onde a humanidade tinha começado por aperfeiçoar a arte da deambulação. Tinha sido ali, afinal de contas, que os primeiros pastores tinham aprendido a pastorear os rebanhos ao longo das estações do ano, e também onde – sob a liderança de Genghis Khan – uma cultura alicerçada na atividade equestre tinha criado o maior império alguma vez conhecido, que se estendia desde as estepes húngaras até ao Mar do Japão. Infelizmente, o meu itinerário não tinha sido delineado em torno da arte equestre ou da mudança das estações. Foi por via aérea que regressei a Ulan Bator e depois, de 4x4, ao Deserto de Gobi, onde Ikh Nart – o nosso destino final – nos aguardava.
De passagem, estivemos dois dias no Parque Nacional de Hustai. Esta reserva acolhe um cavalo especial, mas nem os mongóis lhe conseguem colocar uma sela. Conhecido localmente como thaki, o cavalo-de-przewalski já foi uma espécie em vias de extinção. Hoje em dia, pequenas famílias deste cavalo selvagem percorrem as encostas do parque, arriscando-se a encontros com os lobos locais. Na sede do parque, o nosso guia, o biólogo Tsegii Tserendulam, explicou de que forma os thakis ali tinham sido reintroduzidos em 1992, a partir de uma população de reprodução em cativeiro na Polónia, estando agora a crescer em número. Mais tarde, vimos um pequeno grupo a beber água num riacho à beira da estrada e depois a afastar-se a galope num cume. Mais encorpados do que os seus primos domésticos, estes cavalos pareciam ter algo de familiar e, de certo modo, pré-histórico.
O dia seguinte trouxe-nos abutres-pretos, marmotas dos Himalaias, veados-vermelhos e outros destaques da história natural. E, uma vez mais, a paisagem revelou ser igualmente rica em história humana. O nosso guia Tsegii levou-nos até um túmulo da Idade do Bronze, onde linhas radiantes esculpidas na pedra imitavam a estrutura interna de uma tenda tradicional mongol, revelando que – não obstante os motores de combustão interna e os telemóveis – nalgumas coisas a Mongólia pouco mudou nos últimos 1.200 anos.
Foram estas reflexões que ocuparam a minha mente, três dias mais tarde, naquela última tarde enquanto esperava deitado sobre a toca do lobo. À medida que as sombras iam ganhando mais volume, as pilhas de rochas à minha volta pareciam ganhar formas: cabeças de cavalo, corujas, Genghis Khan montado num camelo. Por fim – talvez quando o nirvana me acenava –, o som distante de um veículo a aproximar-se quebrou o encantamento. Guardei a máquina fotográfica e a garrafa de água, vesti uma camisola e regressei ao nosso ponto de encontro.
Infelizmente, não vi lobos. Isso seria sido um final em grande para a minha aventura. Mas, no percurso de regresso ao acampamento, já sob a luz do crepúsculo, um pequeno animal de cauda grossa atravessou-se no nosso caminho. "Manul!", gritou Nergui, travando a fundo. Esse é o nome local para o gato-de-pallas – um felino peludo, semelhante a um pequeno leopardo das neves mas mais fugidio. Foi um dos pontos altos do dia: nem mesmo Nergui, que habitualmente via lobos, tinha avistado um manul este ano.
De volta ao acampamento, o nosso encontro com o manul foi motivo de celebração e a história foi contada vezes sem fim enquanto jantávamos churrasco de cabra. Mais tarde, quando os meus companheiros chegaram, sentei-me a beber uma última cerveja gelada. Pouco depois, tudo o que conseguia ouvir era o suspiro do vento e um ruidoso mastigar de um grupo de camelos reclinados, com as suas silhuetas dispersas sob as estrelas. Foi um momento profundo. Teria alguma vez Genghis Khan sentido algo parecido? Quem sabe onde começa a inspiração dos impérios.
Como ir
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Mike Unwin/ The Telegraph/ Atlântico Press
Tradução: Carla Pedro