Aproxima-se a quarta corrida do dia, a Big Race, como lhe chamou um homem que deve ter quase tantos anos de Ascot como os que leva de vida (e são muitos…). Toda a gente – ou seja, homens impecavelmente vestidos de fraque e de cartola e senhoras elegantes exibindo vestidos de cores vivas e chapéus de tão extravagantes que se tornaram quase tão famosos como a corrida – se perfila junto às casas de apostas, tentando a sorte. A paixão pelas corridas de cavalos e pela elegância da assistência só tem mais um paralelo em Ascot: as apostas. Para a Big Race, o grande favorito é Churchill, o vencedor das seis últimas corridas onde participou, algumas contra os rivais deste dia. Soa a sineta, dando o sinal de partida, e os cavalos saem largados. Churchill assume a liderança. Mas a corrida tem 1500 metros e todos querem vencer. De facto, a meio da pista as coisas complicam-se: Churchill continua na frente, mas já foi apanhado pelo pelotão. O líder muda a cada passada e o speaker, nos altifalantes, relata as trocas como se fossem um contra-ataque de Portugal na final de um Campeonato do Mundo de Futebol. A corrida está aberta e o entusiasmo estende-se aos espectadores. Será este Churchill feito da mesma fibra do inigualável político inglês de quem recebeu o nome, o qual nunca dava uma batalha por perdida? Não sem surpresa, Winston Churchill era um apaixonado por corridas de cavalos e um assíduo de Ascot. Depois de abandonar a política, dedicou-se à criação de cavalos e um deles, Colonist II, venceu uma prova nesta pista da bela cidade do condado de Berkeshire. Em 1950, poucos meses depois dessa vitória, o ex-primeiro ministro foi convidado para o Jockey Club, o clube de criadores de cavalos mais exclusivo de Inglaterra, honra que passou a partilhar com o pai, que tinha sido eleito 70 anos antes. Entre os membros, na altura, contavam-se o rei Jorge VI e os duques de Windsor e de Edimburgo.
As corridas de Ascot surgiram no seio da família real inglesa, uma relação umbilical que permanece intocada até hoje, com todo o peso da tradição e das regras que lhe estão associadas. É essa a sua grande diferença em relação a qualquer outro evento desportivo. Em Ascot, nada começa sem a Royal Parade, o cortejo real que desfila de carruagens abertas pela pista, com a rainha Isabel II e o duque de Edimburgo à cabeça, seguidos pelos príncipes, princesas, duques e condes da família. A Must está numa posição privilegiada. Viemos a convite da Longines, parceira do evento e cronometrista oficial da prova, pelo que podemos assistir a tudo no espaço mais exclusivo: o Royal Enclosure. Tal como o nome indica, é a zona exclusiva da família real e dos seus convidados. A admissão está aberta aos convidados da rainha (ou melhor, do representante da rainha que gere o espaço) e aos dignitários estrangeiros com representação no Reino Unido. Ou aos membros do Enclosure, um clube restrito com uma longa lista de espera e cuja aceitação depende da vontade exclusiva da rainha (ou do seu representante).
A presença neste espaço implica o cumprimento escrupuloso de uma série de regras, sob pena de não se entrar, independentemente do peso dos apelidos. As senhoras, por exemplo, não podem usar saias ou vestidos curtos (altura máxima acima da rótula) ou vestidos ou tops sem alças. Têm de usar chapéu, claro, ou um enfeite de cabeça que o substitua e que não pode exceder os 10 centímetros. As meninas observam as mesmas regras das senhoras adptáveis à idade. Os cavalheiros são obrigados a usar cartola, obrigatoriamente nas áreas exteriores, bem como os fraques preto ou cinzento, um colete e uma gravata. Os sapatos só podem ser pretos e de atacador. Estas regras são quase imutáveis há 200 anos, embora surjam algumas novidades, como a deste ano em que foi permitido às senhoras usarem jumpsuits. A última condescendência aconteceu, em 1971, quando foi permitido o fato de calças feminino que ainda tem de ser sóbrio, com as calças compridas e uníssono na cor. E também correu o rumor de que os homens podiam aligeirar na indumentária, tudo por culpa do aquecimento global e dos mais de 30 graus de temperatura exterior que se faziam sentir. Não vimos um único homem que não tivesse cumprido as regras, até porque as normas da galanteria garantem que um verdadeiro cavalheiro nunca sua.
Apesar de restrita, esta é a face mais visível de Ascot. Foi magistralmente captada no filme My Fair Lady, de George Cukor, em que, pela primeira vez, se rodou em estúdio uma corrida de cavalos sem os ditos, como se se estivesse num palco. A decoração e o guarda-roupa com o cunho de Cecil Beaton tornou a cena inesquecível, na qual Audrey Hepburn, no papel da jovem vendedora de rua Eliza Doolittle, assiste às corridas no Royal Enclosure depois de ter tido aulas de dicção e de porte ministradas pelo professor Henry Higgins, interpretado por Rex Harrison, que a transformariam numa lady, em tempo recorde. O filme, baseado na peça Pigmaleão, de George Bernard Shaw, é um musical e uma comédia, atingindo um clímax quando a jovem Doolittle perde as boas maneiras e grita para um cavalo em que apostaram, no mais puro sotaque cockney, "Come on, Dover! Move your bloomin’arse!", perante o escândalo geral e alguns desmaios de senhoras. Os tempos mudaram e hoje ninguém desmaia por ouvir praguejar, e ainda bem, porque estamos certos que devem ter sido proferidas algumas obscenidades nesta quarta corrida, à medida que os cavalos se lançam no galope final. Cortam a meta: Primeiro… Segundo… Terceiro… Quarto… E Churchill termina em quarto. O speaker grita, sem fôlego, e a multidão aplaude, mas também é audível um desiludido coro de "Aaaaaah!". Não porque os espectadores torcessem pelo cavalo como se fosse uma equipa do coração, mas porque ninguém podia imaginar que Churchill não terminasse, pelo menos, entre os três primeiros, numa das apostas preferidas. Quem primeiro cortou a meta foi Barney Roy, um dos cavalos do grupo Godolphin, o maior sindicato do mundo de cavalos de corrida, que pertence à família real… do Dubai. Em Royal Ascot os tempos mudaram, sim, mas a tradição ainda é o que era. A avaliar pelas clássicas cartolas e pelos sofisticados chapéus.
"The whole thing looked very splendid!"
A história de Ascot remonta a 1711, quando a rainha Anne deu um passeio a cavalo perto do Castelo de Windsor e deparou com um campo "ideal para deixar os cavalos galopar a toda a velocidade". O duque de Somerset, o seu mestre de caça, mandou que o campo fosse limpo e preparado para receber corridas que começaram nesse ano. Aos poucos, as provas foram ganhando importância e fama, tornando-se um importante evento social. Quando Jorge IV assumiu o trono, em 1820, uma das suas primeiras medidas foi reformular as bancadas de Ascot – remonta a essa altura a criação do Royal Enclosure, um edifício de dois andares e bancadas, com um relvado fechado à volta, para o rei receber os seus convidados. Foi também esse rei quem criou a Royal Parade, levando a família real a percorrer toda a pista, em frente à multidão. Algo que levou um colunista da altura a escrever a frase: "The whole thing looked very splendid!" E foi Jorge IV, ainda, quem insistiu num traje de rigor para os homens "respeitáveis e elegantes". Foi o seu amigo Beau Brummel quem criou o dress code da "casaca preta comprida e gravata" que evoluiu para o fraque de hoje. As mulheres seguiram-lhes o exemplo e, em 1922, um jornalista do The Times escrevia que Ascot era "notoriamente o melhor lugar em Inglaterra para ver mulheres bonitas muito bem vestidas". A 21 de Maio de 1945, as corridas regressam a Ascot, após o interregno da II Guerra Mundial, e a então princesa Isabel, com 19 anos de idade, assiste à prova, pela primeira vez. Desde então, nunca mais falhou uma edição.
Artigo originalmente publicado na edição de julho de 2017 da Must