Desde a Peste de Atenas no ano 430 a.C. (hoje conhecida como febre tifóide), que matou cerca de um terço da população ateniense e marcou profundamente a identidade da capital grega; à Peste negra na Idade Média, considerada uma das pandemias mais mortíferas de que há registo; ao surto mais recente de ébola pela África Subsariana, as crises de saúde pública deixaram sempre marcas profundas nas cidades por onde passaram, quer a nível económico como social, político e arquitetónico.
Enquanto o mundo une todos os esforços para combater a propagação rápida do novo coronavírus, confinando as pessoas às suas casas, alterando radicalmente a forma como nos movimentamos, trabalhamos e pensamos as nossas cidades, especula-se quais destes ajustes ditos "temporários" perdurarão além da época de contenção, e como a vida urbana se mudará realmente quando a tempestade passar.
Certo é que, sendo as cidades o fruto natural de um coletivo, sente-se uma certa dificuldade em encontrar um "novo normal" na vida citadina (ou no nosso quotidiano em geral). Numa altura em que os cafés, restaurantes, museus ou locais de culto estão fechados, surge uma barreira contra o hábito humano de procurar consolo entre aqueles com que nos identificamos, quer nas áreas da religião, artes, desporto, etc.
Num artigo recente do The New York Times, o jornalista Ezra Klein defende que o distanciamento está a causar uma espécie de "colapso no contacto social", já que o isolamento pode tornar-se bastante duro em especial para a população mais vulnerável, como é o caso da terceira idade, de quem sofra de algum tipo de deficiência ou doença debilitante.
Não obstante, a narrativa do covid-19 tem vindo a ser diferente em várias cidades, como é o caso de Lisboa, em que a inflação das rendas tornou a vida de muitos cidadãos mais precárias e até transitórias. Fatores como este, em épocas como esta, tendem a alimentar oportunidades de entreajuda entre as comunidades, aproximando as vizinhanças entre gerações e divisões demográficas. Por muito irónico que seja, o distanciamento social tem aproximado pessoas mais do que nunca, resta saber se o espírito se manterá.
Um exemplo é o de Eric Klinenberg, um sociólogo na Universidade de Nova Iorque, que escreveu recentemente sobre uma onda de calor que atingiu Chicago em 1995, tirando a vida a 739 pessoas. Os mais afetados estavam entre a população mais envelhecida, residente nos bairros mais pobres e segregados da cidade que forneciam aos residentes contacto social escasso.
No entanto, bairros semelhantes (entre comunidades pobres marcadas pelo crime) registaram uma taxa de mortalidade significativamente mais baixa, graças ao acesso a que Klinenberg chama de "uma infraestrutura social robusta": uma rede de lojas, instalações públicas e organizações comunitárias que punham as pessoas em contacto com os seus amigos e vizinhos.
No que toca ao planeamento, um dos problemas que se revela pertinente para os urbanistas no futuro é o conflito aparente entre a densidade (que torna as cidades mais concentradas, fator considerado essencial para melhorar a sustentabilidade ambiental) e a desagregação, separação de populações, que é uma das ferramentas-chave utilizadas atualmente para combater a transmissão de vírus. Numa entrevista ao diário britâncio The Guardian, o professor de Estudos Urbanos no MIT Richard Sennett, comentou: "a densidade é uma coisa boa: as cidades mais densas têm a energia mais eficiente. Por isso penso que a longo prazo irá surgir um conflito entre as necessidades em competição da saúde pública e do clima". Com isto, Sennett acredita que no futuro haverá um novo foco em encontrar soluções de design para prédios individuais e bairros maiores que permitam às pessoas socializar sem lotar restaurantes, bares ou discotecas. Mesmo que, dado o elevado custo de vida em cidades como Nova Iorque ou Hong Kong, o sucesso depender de grandes reformas económicas.
Com o distanciamento obrigatório, a crise conseguiu diminuir significativamente os custos de viver à distância: a grande maioria das empresas estão a estabelecer sistemas que permitem aos seus colaboradores trabalhar de casa. Se a proximidade do local de trabalho deixar de se tornar num fator decisivo para escolher a zona em que se vive, por exemplo, poderemos estar a caminhar para um mundo em que os trajetos longos e diários sejam parte do passado.
Outro possível impacto do coronavírus poderá ser a intensificação das infraestruturas digitais nas nossas cidades. A Coreia do Sul, por exemplo, é um dos países mais afetados pela doença e que também apresentou uma das taxas de mortalidade mais baixas, uma proeza que pode estar relacionada com uma série de inovações tecnológicas- incluindo a medida controversa de mapeamento e publicação dos movimentos dos pacientes infetados.
Na China, as autoridades aliaram-se a gigantes tecnológicos como a Alibaba para conseguir acompanhar o alastramento do vírus, usando a informação escolhida para tentar perceber onde se irá aglomerar de seguida. Tendo em conta que uma das conclusões do governo é que as "cidades inteligentes", incluindo Songdo ou Shenzhen são mais seguras no que toca à saúde pública, podemos esperar maiores esforços para captar e gravar o nosso comportamento em áreas urbanas, o que gera debates mais concretos sobre os efeitos de permitir mais vigilância às empresas e governos.
Numa altura de instabilidade política a nível global, em que a direita tem vindo a ganhar terreno em vários países como o Brasil, Estados Unidos ou Hungria, outra consequência poderá ser o reforço de narrativas políticas de exclusão e culpabilização do "outro", levando à construção de novas fronteiras até mesmo dentro das comunidades urbanas, com o selo de aprovação de líderes com capacidade para as construir. Até lá, não podemos prever ao certo a vida citadina pós-pandemia, mas resta a esperança de uma mudança positiva nas relações sociais na cidade, com o aumento recorrente da entreajuda dos seus residentes, unindo-nos além das nossas diferenças.