São tempos difíceis, estes - para escrever sobre viagens. Talvez esteja melhor assim, não? Um travessão pode fazer toda a diferença, neste caso é como se me ilibasse de uma pequena dose de culpa, até porque numa altura destas e com um vírus que corre mundo, algumas pessoas olham para a área do turismo ainda com mais desdém, como se falar ou escrever sobre viagens fosse dar boleia à infeção.
Vejam estas maravilhosas frases-bomba que encontrei na caixa de comentários de uma revista: "a culpa disto tudo é dos aviões". Seguiam-se outras duas: "deviam ter vergonha de publicar artigos de viagens numa altura destas" e, para terminar, só mais uma, de longe a melhor: "Os turistas vivem numa bolha e (depois) admiram-se".
Não sei o que está ali a fazer o parêntesis, se é propositado ou não, a verdade é que lhe empresta uma dimensão crítica e poesia inesperadas. Para a maioria das pessoas viajar é isso mesmo, um parêntesis, uma bolha em que a vida e o tempo ficam suspensos criando a ilusão de uma realidade paralela. É fácil ficarmos presos lá dentro.
O problema das bolhas, sejam elas quais forem, é que são feitas de ar e sabão.
Não há que ter qualquer vergonha em falar de viagens, naturalmente - algum bom senso, porventura, o mesmo de sempre, aquele que tantas vezes falta a quem viaja - até porque pensar nas férias pode ser por estes dias uma estratégia de sobrevivência tão válida como fazer pão caseiro.
"Tenho sonhado com as férias todos os dias"; disse alguém, ainda na mesma caixa de comentários, onde entretanto, e coisa rara, se gerou uma bonita discussão. "Já eu tenho viajado muito pelo Google Earth", diz outro; e ainda: "Sei que o mundo não vai acabar, mas ontem dei por mim a ver e organizar as fotografias das minhas viagens, como quem arruma dispensa. Será normal?"
É normal, claro. Quando estamos com medo, e é natural que estejamos com medo e, sobretudo, quando o horizonte se apresenta tão cinzento e desfocado temos tendência a olhar para trás de forma a ganhar perspectiva.
Durante a adolescência - uma espécie de quarentena que só em adultos vimos a descobrir, ou a acreditar, que foi a nossa época maior de liberdade - sempre que era obrigado a ir de castigo para o quarto perguntava "Posso levar O Livro?" Se o castigo fosse muito grave a resposta era não, se fosse assim-assim lá me deixavam.
O livro era a Enciclopédia Geográfica, uma Edição da Selecções do Reader’s Digest, de 1988, forma que as famílias de classes média e média baixa tinham de embelezar os móveis gigantes da sala e dar algum mundo aos filhos. Ainda hoje é o livro a que recorro quando quero ganhar perspetiva. 752 páginas de pura magia, uma bolha onde a Rússia e a Ucrânia faziam parte da URSS, o Muro de Berlim dividia a Alemanha e países como o Burkina Faso, o Djibuti ou o Lesoto ainda não tinham sido "descobertos".
A página de Portugal começa assim: "Um pequeno e diversificado país enquadrado pelas mais antigas fronteiras da Europa, porta de partida das grandes viagens de expansão dos tempos modernos".
O que diz da China? E de Itália?
Isso agora não interessa. Portugueses, chineses, italianos, andamos há séculos a construir e a destruir muralhas, a transportar e espalhar vírus, a culpa não é de ninguém, é a vida, a responsabilidade, essa sim, é de todos nós, mais ou menos turistas, que enchemos esta bolha até fazer boom.
Dentro em breve tudo regressará ao normal, viveremos durante uns tempos como se estivéssemos em 1988, depois tudo passa, poderemos, enfim, voltar a enterrar os pés na areia e viajar (quase) sem culpa e a olhar para estes dias como se fossem ficção.