Há inúmeras áreas de estudo, investigação e intervenção na Associação Crescer, desde o apoio a toxicodependentes, refugiados, migrantes, habitantes vulneráveis e população em situação de sem-abrigo. Nos seus restaurantes já empregaram 60 pessoas que viviam na rua. Américo Nave responde sempre no plural porque, no fundo, é a associação a responder.
Como surgiu a ideia e como é que tudo isto começou?
Uma pessoa da Câmara Municipal de Lisboa propôs à Crescer gerir um restaurante para que os sem abrigo pudessem ir lá comer, mas declinei, não era o nosso objetivo. Mais tarde, com outra insistência, sugeri que então deveriam ser eles a cozinhar para nós, o que serviu para demonstrar o estigma que ainda existe em relação a estas pessoas em situação de sem-abrigo. Sugeriu um churrasco simples, mas retorqui que convidava um chefe de renome e fazia fine dining. Assim se combateu o estigma.
Envolveu mais gente?
Convidámos o Nuno Bergonse e a Escola de Hotelaria de Lisboa, que é atualmente onde as pessoas têm formação.
Porquê este chef?
Pensámos em vários, mas como não é a nossa área começámos a falar com algumas pessoas que conhecíamos e uma delas, a Paula Cosme Pinto, fez a ponte. Gostámos logo muito do Nuno, da proatividade e de como se envolveu. Creio que estaria numa fase da vida que andaria à procura de algo nesta área mais social, queria fazer algo com propósito, e creio que houve aqui um excelente casamento entre o que nós pretendíamos e a forma de estar do Nuno. Faz parte do projeto desde o início até hoje. Entretanto, atualmente temos outros chefs que têm integrado o projeto, mas o Nuno continua como embaixador e consultor.
Recentemente esteve o chef Bertílio Gomes…
O Nuno Bergonse convida um chefe de dois em dois meses. Começou há pouco mais de dois meses com a Andreia Cruz do Feitoria que tem uma Estrela Michelin. É muito importante para estas pessoas que estão e que vêm de uma situação de extrema vulnerabilidade, muito desacreditadas nas suas competências e na sua capacidade de autonomia quando, de repente, se veem a cozinhar com chefs de renome. Também lhes dá motivação.
Como chegam os sem-abrigo à Crescer?
As pessoas são encaminhadas pelas nossas equipas de rua. Mas no início, quando começámos o primeiro restaurante, reunimos com todas as organizações que trabalhavam com eles. Apresentámos o projeto, o modelo, como funcionava e, a partir daí, sempre que abrimos uma turma, enviamos um e-mail para essas organizações. E também há quem se autocandidate porque conhecem alguém que fez o curso de formação, amigos, pessoas que dormem nos mesmos albergues, nos mesmos sítios.
Como funciona o processo?
Há uma entrevista e são selecionadas aproximadamente 25 pessoas por turma. Tudo funciona em parceria com a escola de hotelaria, o IEFP, a Segurança Social, a Câmara Municipal de Lisboa e muitas outras empresas que nos têm apoiado tanto financeiramente como em géneros.
Há desistências?
Há quem diga que afinal não gosta assim tanto da restauração. Mas nós tentamos ajudar. Podem ir para jardineiros, trabalhar em armazéns, em lares de idosos. Convém referir que estas pessoas estão sempre acompanhadas por psicólogos e assistentes sociais, que estão nos restaurantes, nas formações com uma grande proximidade, mesmo quando já estão a trabalhar noutros restaurantes ou noutras entidades.
Há muitas histórias para contar?
Entre outras, uma pessoa que foi trabalhar para um restaurante bastante conhecido, o Mama Shelter, em Lisboa, como copeiro. Já lá deve estar há uns três anos e as pessoas gostam imenso dele. Estão sempre a desafiá-lo para ir para a cozinha para servir às mesas, para que assuma outras posições. Mas diz que gosta de ser copeiro e é fantástico porque realmente é um excelente profissional e gosta mesmo daquilo que faz. Caracteriza um pouco estas pessoas que gostam mesmo e fazem-no por amor à posição que têm.
O "É um Restaurante" foi o primeiro em 2019, mas pouco depois tiveram de encerrar …
Abriu em outubro de 2019 na Rua de São José, no nº 56 em Lisboa. Correu bem, mas tivemos de fechar em março de 2020 com a pandemia. Foi uma altura difícil para as pessoas que se encontravam em situação de sem-abrigo, porque muitas daquelas equipas que distribuíam comida na rua deixaram de ir. Nessa altura os formandos que estavam no restaurante tiveram a iniciativa de propor passarem a cozinhar e irem eles distribuir comida. Até tivemos uma recomendação das Nações Unidas por essa atividade.
Foi um prémio?
Diria que foi uma distinção às pessoas que vieram da situação de sem-abrigo e passaram a cozinhar e a distribuírem comida quando estava tudo fechado. Foram os próprios a responder às pessoas que estavam na rua. Foi uma recomendação da ONU como uma boa prática.
Os clientes do restaurante percebem que se trata de um sítio onde quem cozinha são pessoas sem-abrigo?
Não. Nos nossos restaurantes, desde o início, pretendemos ter um bom serviço e boa qualidade na comida, porque dessa forma provamos que podem estar a trabalhar em qualquer restaurante e ao lado de qualquer chef. Podem ter uma ficha técnica e acompanhar outros chefes com mais conhecimento a executar, a confecionar a comida e a servir à mesa.
Abriram o "É uma Mesa" em 2022 no Bairro Padre Cruz em Lisboa. Hoje é mais do que um restaurante?
É um espaço para eventos com capacidade para 150 pessoas no interior e mais 40 na esplanada. Serve, por exemplo, para empresas organizarem almoços, jantares, aniversários particulares… e também é a nossa cozinha, porque é o restaurante onde dispomos de melhores condições de espaço e de equipamentos. Dá todo o apoio e suporte aos caterings que fazemos.
Os caterings também são fora do espaço?
Sim. Já fizemos um almoço para o conselho de ministros que decorreu no Centro Cultural de Belém, eventos para a EDP, para a Zurich, para grandes empresas. Estamos também a investir cada vez mais nessa área: coffee breaks, almoços, jantares, casamentos.
Depois veio o "É um Almoço".
É o refeitório que funciona no interior da empresa Ageas. É importante para nós porque provamos que estas pessoas podem estar a trabalhar dentro de grandes multinacionais. Os clientes gostam do serviço e dizem que a nossa comida é melhor do que outras empresas anteriores. Também conseguimos fazer caterings dentro da própria empresa, desde almoços da administração a simples coffee breaks nos eventos que criam internamente.
E o "É uma Copa"?
É semelhante. Abriu em 2023 e foi o último. Também tem almoços e caterings dentro da empresa Cofidis, mas com a particularidade de ser aberto ao público. Nestes dois refeitórios servimos cerca de 250 almoços diariamente.
Ainda há o "É uma Esplanada"…
É no museu de São Roque e tem duas esplanadas, uma interna e outra externa. Resulta de uma parceria com a Santa Casa da Misericórdia no museu da própria instituição. Servimos pequenos-almoços, almoços e lanches, não estamos abertos ao jantar, é um espaço mais de tapas, de petiscos.
Que números tem hoje para apresentar?
Passaram cerca de 150 pessoas nas nossas formações, chegaram ao fim à volta de 120 e integrámos no mercado de trabalho aproximadamente 60 pessoas.
Ficou dentro das vossas expetativas?
Foi uma experiência. Um projeto piloto. Integrar 60 pessoas no mercado de trabalho deixa-nos muito contentes. Achamos que é um número bastante otimista. E percebemos, muitas vezes em reuniões internacionais, quando apresentamos o projeto fora do país, que as pessoas ficam admiradas pelo lado positivo de conseguirmos integrar 50% das pessoas no mercado de trabalho.
São frequentes as apresentações internacionais?
Sim. Tentamos divulgar o que fazemos. Por exemplo, no ano passado estivemos em Chicago onde apresentámos este mesmo projeto dos restaurantes. Fizemos por cá um congresso internacional em novembro de 2023 onde vieram os maiores especialistas do mundo nestas áreas, do Canadá, dos Estados Unidos, de vários países da Europa. Trocamos experiências para perceber o que melhor se faz nos outros países e também apresentámos o que estamos a desenvolver. E, na nossa perspetiva, podemos dizer que não estamos atrás dos outros.
Há muitas iniciativas semelhantes pelo mundo?
Em relação à restauração, não. Aliás, nós temos uma candidatura para que possamos fazer, como nos pediram de outros países, uma supervisão a organizações para implementarem este tipo de projeto.
Então, que se lembre, não há nenhum país como uma iniciativa semelhante?
Da forma como fazemos, creio que não existe. Por exemplo, há organizações que utilizam restaurantes onde empregaram pessoas que vêm de uma situação de vulnerabilidade. Mas não neste modelo de formar as pessoas e no final integrá-las no mercado de trabalho, constituir novas turmas e trabalhar em conjunto com chefs como bastante know how na área.
E parece que há algumas novidades…
Estamos na perspetiva de abrir um novo restaurante na Amadora em conjunto com a Câmara Municipal e estamos a pensar alargar as turmas a jovens institucionalizados, a pessoas com questões de saúde mental e a jovens em situação de refugiados.
Já tem o nome e o local?
Nem nome nem sítio. Mas vai ser um restaurante parecido com os outros. As turmas ainda estamos em negociação com a Segurança Social que também é um dos nossos parceiros.
Há mais além do restaurante na Amadora?
Na área da restauração estamos a organizar um festival gastronómico na Amadora ainda este ano e queremos que aconteça uma vez por ano. Chama-se "É um Encontro" e temos tudo preparado para que se realize. Gostávamos que, em conjunto com o município, houvesse um festival gastronómico que juntasse chefs também de renome que estivessem com populações da Amadora em situações de maior carência económica. Sabemos que existem excelentes cozinheiros de muitas partes do mundo e que poderiam, neste festival, juntar este saber mais informal e de outras culturas, com o saber dos chefes nacionais. Estamos a prever que seja em setembro no Parque Central da Amadora.