Prazeres / Lugares

E depois do adeus?

O Bica do Sapato fechou e, com o desaparecer desta instituição, assinala-se oficialmente o fim de uma era. A MUST relembra os tempos do antigo Pap’açorda, do Frágil do Bairro Alto e da época em que a vida era uma festa constante. Long live the eighties.

Foto: Lux Frágil
13 de novembro de 2019 | Pureza Fleming
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No passado dia 15 de outubro (quase) todos os caminhos da capital foram dar ao Lux-Frágil. Decorreu aquele que é conhecido como sendo "o aniversário do Lux". Banal, porque todos os dias há aniversários de qualquer coisa. Exquisite, porque o Lux será sempre o Lux e está longe de ser apenas "qualquer coisa". Estará? Eu não estive lá, não posso afirmar o que não vi. Porém, houve quem estivesse. E quem esteve — a "velha guarda" que foi capaz de se arrastar a uma terça-feira à noite pluviosa para comemorar o 21º aniversário daquela instituição — não narrou nada de sensacional. Vejamos. O Lux-Frágil continua igual. O tipo de música também. Os dj’s continuam a ser bons. O álcool servido permanece o mesmo. Continua a ser um clube com um ’c’ maiúsculo. Um dos grandes. Tudo é magnífico. O que mudou então? A ausência de Manuel Reis (1946-2018), não só o fundador e proprietário, mas acima de tudo um divulgador de formas de pensar diferentes e relevantes para a sociedade portuguesa, como o cosmopolitismo, a modernidade e o bom gosto. E, claro, o público que o frequenta. Como se costuma dizer, o coletivo faz a festa. Mas a "despersonalização" de espaços tão distintos e de renome, como é o caso do Lux-Frágil, não termina no Lux-Frágil e mantém-se precisamente naquela zona ribeirinha da capital.

Em agosto passado, a imprensa disparou notícias que anunciavam o encerramento do Bica do Sapato. O restaurante ícone lisboeta, que era também uma espécie de irmão gémeo do Lux-Frágil, encerrava as suas portas. Nas diversas notícias publicadas podia-se ler que se "sabia que [o restaurante] estaria à venda, mas que se desconhecia o término do negócio". Na altura, o proprietário, Fernando Fernandes, dizia à revista Sábado que iria "continuar tudo igual". "Não vamos fechar", afirmava. O assunto que, algures entre agosto e setembro de 2019, estaria na ordem do dia, rapidamente se dissipou — comme il faut, no jornalismo de hoje. Não se sabe se, efectivamente, o Bica do Sapato irá ou não reabrir. Também não é isso que está em questão, porque restaurantes abrem e fecham todos os dias — hoje, mais do que nunca. Não é somente o Bica do Sapato que encerra as suas portas — para talvez reabrir (ou então não). Nem é apenas o Lux-Frágil que já não reúne o público do "antigamente", e que passou a estar, como tanto se ouviu comentar, "cheio de ninguém". Aquilo a que se está a assistir é a uma descaracterização de espaços que um dia foram tudo. E por tudo entenda-se como carismáticos. Com personalidade. Com encanto. 

Foto: Lux Frágil

João Pedro (nome fictício) frequentou o Bica do Sapato durante praticamente uma década com visitas quase semanais. Quando questionado acerca dos motivos pelos quais deixou de visitar o restaurante, a primeira palavra que enunciou foi "massificação". Explicava que, a partir do momento em que a Bica começou a fazer os "almoços executivos" — que imediatamente começaram a atrair outros públicos; e depois daquele restaurante ter aderido à Restaurant Week, uma semana que permitia ter uma refeição naquele restaurante por metade do preço, este espaço começaria a perder o lustro que sempre o distinguira. Depois, claro, há a questão do turismo e de tudo o que daí adveio. Resmas de novos restaurantes com ofertas competitivas e conceitos de luxo modernos (e descaracterizados). O produtor de moda Paulo Gomes, um habitué do antigo Frágil (e já lá vamos, ao Frágil, mais detalhadamente), comenta que, atualmente, a geração que sai à noite não o faz para dançar e para "curtir": "Hoje, as pessoas ficam na pista de dança paradas, de copo na mão, e está tudo enlaçado em conversa da treta". E claro, a questão dos telemóveis. Das plataformas socais. Do Instagram. Das stories. "[Hoje em dia] está-se muito mais preocupado em mostrar-se que se está nos sítios, do que estar lá, efetivamente, a aproveitar o momento". A stylist Susana Marques Pinto, outro nome que remonta aos tempos do antigo Frágil, concorda: "A nossa maluqueira [nos tempos do Frágil] acontecia sem redes sociais, sem telemóveis e sem selfies. Era genuína, aquilo era a nossa alma. Remávamos contra a maré, por isso tínhamos de sentir aquilo". E sentiam, como nunca antes se havia sentido. Pelo menos em Portugal. Um país pequeno e, à data, pacato, demasiado provinciano e inquestionavelmente parolo.

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Os loucos anos oitenta

Foi um pós-25 de abril que se desenvolveu de forma lenta. Antes deste, estava-se perante uma sociedade extremamente estratificada. Eram poucos os restaurantes de topo, em Lisboa. Havia o Aviz, o Tavares Rico e alguns clubes privados. Todos eles muito elitistas. A burguesia, por sua vez, frequentava espaços tais como a Solmar, contígua ao Coliseu, uma das cervejarias mais caras do país. Era para onde afluíam as pessoas endinheiradas. Não havia um meio termo e, muito menos, uma classe artística, louca até — no melhor dos seus sentidos, claro, já que o tom cinzento em que o país marinava implorava por um pouco daquela loucura que tardava, mas que acabaria por chegar. O 25 de abril trazia consigo uma reestruturação aparente desta estratificação. Depois da revolução dos cravos, a habitual clientela de espaços como o Aviz, entre outros da mesma categoria, começaria a dissipar-se. Os motivos eram vários: havia aqueles que saíam do país para se exilar no estrangeiro por motivos políticos; e aqueles que ficavam e que, apesar de (ainda) manterem a sua riqueza, não se atreviam a frequentar estes locais — tirando alguns mais velhos e com status suficiente para fazer das suas aparições factos evidentes e incontestáveis. Até que tudo mudou. De repente, passou a achar-se que se iria ter um Portugal "muito à frente". Os mais jovens começam a frequentar um Bairro Alto sujo, decadente, perigoso. O bairro das casas de prostituição, mas também o bairro das sedes de jornais. Era caótico, porém cool. Era caquético, contudo carismático e a transbordar de personalidade. Tinha tudo, só não tinha um spot que reunisse, em poucos metros quadrados, toda a classe pujante sedenta de alguma ordem de soltura. Em 1981 parte do problema começa a ser resolvido com a abertura do Pap’açorda. Pelas mãos da dupla Fernando Fernandes e José Miranda, abre aquele que dava início a um Portugal mais moderno. O Bairro Alto, no geral, e o Pap’açorda, em particular, passam a ser os spots de eleição, não só daquela geração mais artística, excêntrica e desalinhada da sociedade pré-25 de abril, como também de outras personalidades mais conhecidas do público em geral. No turno do almoço daquela concorrida porta da Rua da Atalaia era comum sentarem-se à mesa nomes como Mário Soares, Maria João Avillez, Jaime Nogueira Pinto e Maria José Nogueira Pinto, entre jornalistas dos títulos com morada nos arredores. A açorda de bacalhau, a açorda de marisco, a açorda real e uma belíssima garrafeira justificavam a excelsa frequência. Meia Lisboa "parava lá". À noite, o cenário mudava e a afluência idem.

A 15 de junho de 1982, o panorama ganha outro élan. Na antiga panificadora que ocupava o quarteirão entre a Atalaia e a Travessa da Queimada há um bar que se inaugura. Chamava-se Frágil: "A noite é de festa. Toda a década será de festa, o Bairro Alto está prestes a explodir e ainda ninguém sabe", escreve o jornal Público, em 2013, numa homenagem àquele local de culto. "Era o sítio que faltava", aponta Susana Marques Pinto. E mantém: "Andávamos todos dispersos e, de repente, abrem estes sítios como o Frágil e o Trumps [no Príncipe Real], que destoavam completamente de outros clubes como o Stones que, definitivamente, não tinham nada a ver connosco". E o clima era de festa constante. "Festa era todos os dias", confirma aquela stylist. E, desengane-se o leitor, esta era uma geração que trabalhava, que metia a mão na massa de uma forma que não vemos acontecer nos dias de hoje. Não que se trabalhasse mais ou menos. A postura é que era diferente: "Claro que trabalhava. Tinha de fazer tudo e a falta de tempo não me afligia. Costumava dizer que tinha a eternidade inteira para descansar", assevera Susana Marques Pinto.

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Paulo Gomes, um assíduo da noite daquele Bairro Alto, assegura: "Todos trabalhávamos e muito, mas fazíamo-lo por paixão. Não havia telefones, nem nada. Encontrávamos-mos todos os dias e saíamos todas as noites. Era produtivo (risos). Os nossos encontros à noite eram uma oportunidade para a partilha de ideias e para desenvolver projetos em grupo. Havia um rol de disciplinas em comum que se complementavam — do cinema à moda, passando pelas artes plásticas, fotografia, música, …". Num momento de revival, que Paulo Gomes não quer considerar nostálgico, uma das coisas que mais sente falta é, precisamente, daquele trabalho de equipa: "Tudo era partilha: ideias, sonhos, experimentação, tentativa-erro. Sinto falta daquele método de chegar às coisas, que considero fundamental no ser humano. Através da partilha chegávamos às melhores ideias. Trabalhávamos pelo prazer de trabalhar. O trabalho, por si só, era o nosso objetivo de vida. E o dinheiro, uma consequência. Milhões de projetos nasceram daí, como é o caso da ModaLisboa", remata.

Era muito difícil entrar-se no Frágil. E não se era ninguém se não se fosse ao Frágil (ou ao Pap’açorda). Já no ano 2000 cantavam os Ena Pá 2000, no tema Baum, "Eu quero ir ao Frágil sexta-feira/ Eu quero ser amigo da porteira/ Eu quero vir na capa das revistas/ Quero andar nos copos com os artistas". Isto é, ter-se um convite para uma festa do Frágil era ter-se um Óscar na mão. Fechava-se a rua e as suas perpendiculares. Tirava-se um dia de férias — ou antes ou após o dia da grande festa. Era uma questão de prioridades: quem tirava o dia antes fazia-o para planear a toilette. Quem tirava o dia seguinte fazia-o por uma questão de ressaca (hoje ninguém tira o dia antes). Era impensável as pessoas não se arranjarem para sair à noite: "Reuníamos-mos em grupos em casa ora de uns, ora de outros. Todos tínhamos um talento. Éramos maquilhadores, cabeleireiros, designers — a dupla Manuel Alves e o José Manuel Gonçalves rebentava nessa altura —, e não íamos para a rua enquanto não estivéssemos todos impecáveis. O glamour era uma realidade. Ninguém ia para a noite diretamente do trabalho. Era impensável não se ir a casa trocar de roupa. Era irreal não haver uma produção por detrás de cada saída à noite", relembra Susana Marques Pinto. E assegura que mesmo um visual mais delabrée era um estilo estudado, ao contrário do delabrée descuidado que caracteriza os dias de hoje.

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Paulo Gomes sublinha: "Tínhamos prazer em tudo: no vestir, no divertir, no trabalhar. Tínhamos a ambição de querer mudar o mundo". Todas aquelas pessoas eram, de certa forma, artistas. E, como tal, "estranhas". "Éramos uma centena de pessoas, uma tribo que se juntou, uma seleção natural. As pessoas de fora tinham medo de entrar naquele sítio [Frágil]… Eu também era estranhíssima, aos olhos da minha mãe (risos). Não fazíamos nada para sermos modernos, era aquela a nossa natureza. Não éramos designers, ou maquilhadores, ou cabeleireiros para fazer carreira. Éramos, sim, porque adorávamos o que fazíamos", remata Susana Marques Pinto. E fizeram-no muito bem, não fosse a turma do Frágil dos anos 80 hoje uma classe reconhecida, tanto a nível nacional como internacional: Miguel Esteves Cardoso, António Variações, Sérgio Godinho, João Botelho, Jorge Palma, Rui Reininho, Rui Pregal da Cunha, Julião Sarmento, Pedro Cabrita Reis ou Clara Ferreira Alves, para nomear apenas alguns. Como dissertou o sociólogo Georg Simmel (1858-1918), "assim que a maioria começa a imitar as elites e a apropriar-se do seu estilo, aquelas abandonam este último e mudam para outra moda, adotam uma nova que as distingue das massas, relançando assim o carrossel da moda. E assim sucessivamente". Sociologicamente, este fenómeno não seria de estranhar. Mas há outras premissas que não podem ficar de fora. Que moda será essa, ainda não sabemos. A única certeza que temos é que quando se fecha uma porta, algures uma janela se abre. E nós cá estaremos para assistir à erupção de uma nova (e necessária) movida lisboeta.

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