Prazeres / Lugares

Do Irão, com amor. Um retrato in loco

Nas mesmas ruas onde há mais de 40 anos, no auge da Revolução Islâmica, se gritava “independência, liberdade e Islão”, ouve-se por estes dias um novo lema, que à “liberdade” junta agora as palavras “mulher e vida”. Por Martins Freitas no Irão.

Foto: Getty Images
04 de novembro de 2022 | Martins Freitas
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Escrevo estas linhas desde o Irão, onde, durante as últimas semanas, tenho tido a rara oportunidade de assistir à história a acontecer. Já se passaram mais de 40 dias desde a morte de Mahsa Amini mas, nas ruas de Teerão, Mashhad, Isfahan ou Shiraz, bem como um pouco por todo o país, os protestos não diminuem, mesmo com as constantes ameaças do regime. A repressão tem, aliás, cada vez mais como resposta a imaginação dos manifestantes, com flash mobs do protesto onde menos se espera, enquanto a polícia de choque aguarda em locais previamente anunciados nas redes sociais (bloqueadas, mas em funcionamento, com recurso a VPN, que toda a gente utiliza, mesmo sendo proibido) e exposta a ensurdecedores buzinões de protesto por parte de quem passa.

"O medo mudou para o outro lado da barricada, é nos olhos dos polícias que ele hoje está presente e não nos das pessoas", sublinha o meu amigo Farzad, enquanto bebe um café numa esplanada da zona norte de Teerão, onde é cada vez mais comum ver mulheres com a cabeça descoberta na rua. "O que o regime conseguiu com toda esta repressão foi tornar de vez o hijab facultativo. Neste momento já são tantas as mulheres que não o usam, e sê-lo-ão cada vez mais no futuro, que é impossível dar a volta", sustenta, com indisfarçável orgulho, este engenheiro de 33 anos.

Foto: DR

Ao contrário da imagem que se tem no ocidente, as regras de vestuário no país até são bastante permissivas, quando comparadas com outros países do médio oriente, em especial os dos árabes sunitas. Cultural e socialmente, a Pérsia xiita sempre foi muito mais liberal e também por isso a morte de Mahsa Amini às mãos, alegadamente, de uma cada vez mais irrelevante Polícia da Moral (mas nem por isso menos perigosa, como se percebeu durante os protestos), causou tanta revolta. E apesar deste novo normal em termos de vestuário e dos costumes (começa também a ser cada vez mais frequente ver jovens casais de namorados a passear de mãos dadas ou a trocar carinhos em público, algo igualmente proibido por lei), os protestos não diminuíram. Pelo contrário, até aumentaram, alargando-se geograficamente para além das grandes cidades (por norma mais liberais) e agregando também camadas da população até agora arredadas desta luta – incluindo alguns clérigos e membros das até então sempre fiéis forças de segurança.

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Foto: DR

"Este movimento foi iniciado por adolescentes e mulheres muito jovens. Tenho um orgulho imenso nelas, mas também não posso deixar de sentir uma certa vergonha pelos homens da minha geração, pois deixámos chegar o país a este ponto e nada fizemos. Não tenho nada contra a religião, mas o governo de um país não pode ser definido pela teologia", confessa com alguma amargura na voz, mas muito mais esperança no espírito, Ramim, 40 anos, comerciante no bazar de Shiraz, por onde caminhamos a saborear um Faloodeh (um gelado tradicional iraniano, cuja origem remonta a mais de dois mil anos). Também por aqui são cada vez mais os cabelos femininos a descoberto, tal como nas aprazíveis esplanadas junto à mesquita Vakil, onde alguns namorados trocam tímidos carinhos sem qualquer constrangimento que não apenas o da falta de hábito.

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Apesar dos recorrentes conflitos com a polícia, é nos pequenos atos do dia-a-dia que a resistência, pacífica mas em nada passiva, mais se manifesta. Que o diga Ava, 35 anos, que vive sozinha desde que foi estudar para a universidade, em Teerão, já há mais de uma década. "Ainda não é muito comum uma mulher viver sozinha, porque a nossa sociedade ainda é muito conservadora, mas já começa a ser cada vez mais normal, tal como muitas outras situações que há apenas poucos anos seriam impensáveis, como sair à rua sem ter a cabeça coberta, como hoje acontece", sustenta esta profissional da área das finanças, para quem a luta, agora, passa por retirar da lei as normas de vestuário, "como símbolo da subordinação feminina" imposta pelo regime. "É uma questão de princípio", defende.

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Enquanto pai de uma jovem de 18 anos, é impossível não admirar esta luta, mantida nos mais pequenos gestos do dia-a-dia; e mais ainda a coragem das mulheres que, olhos nos olhos com a brutal repressão das autoridades, conseguiram unir um país à sua volta. Se a minha filha fosse iraniana, o mais provável era que também aí estivesse, nessa primeira linha, a gritar "mulheres, vida e liberdade".

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