O sol da manhã na sala de pequeno-almoço do The Views Baía é de uma omnipresença agressiva. Entra pelas vidraças amplas e espalha-se com uma espécie de fúria até nos entrar pelos olhos. Por mais que tentemos escapar-lhe, voltando as costas e a nuca à magnífica vista sobre a baixa do Funchal, este sol de vigor praticamente bélico ataca-nos por todos os lados, por todas as frentes.
"Tudo isto tem a ver com o meu caráter e o meu perfil", diz numa voz firme e com uma pronúncia profunda e orgulhosamente madeirense Octávio Freitas, chef do Desarma. "Desarma, tinha de ser esse o nome. Tem tudo a ver comigo." O chef encarna com grande naturalidade o espírito aguerrido necessário para travar grandes batalhas. A esta hora da manhã, fulminado pela mesma armada de sol que faz os demais semicerrar os olhos e franzir o semblante, apresenta uma energia e uma garra praticamente improváveis para as circunstâncias. Mas, muito provavelmente, são essa energia, essa garra e esse espírito de combate que lhe permitem chegar onde já chegou, com rapidez assinalável: uma estrela Michelin para o Desarma ao fim "de nove ou dez meses" de funcionamento, segundo as contas de cabeça do próprio.
Contragolpe: Octávio Freitas refuta a ideia de ter sido uma estrela que chegou rapidamente. "Foi costurada ao longo de dezenas de anos", afirma, e explica em seguida que começou a trabalhar aos 16 anos, em 1997. Primeiro como cozinheiro em eventos, no Terreiro da Luta (nem de propósito), depois no grupo The Views. Em 2022, no pós-pandemia, finalmente, abriu o Desarma. Octávio Freitas aceita que a estrela "veio de nada", no sentido em que foi uma surpresa completa para todos, ele incluído - quando recebeu o email, não percebeu logo o que era; só depois lhe explicaram que era um convite para a gala Michelin, o que significa, hoje em dia, que receberia uma distinção. Mesmo assim, não esperou que fosse logo uma estrela. Só que era e não caiu do céu. "A novela já estava montada e a produção pronta, só faltava o cenário", atira, numa analogia que significa exatamente isto: para aspirar a uma estrela Michelin só lhe faltava o restaurante. Existindo o Desarma, o trabalho já estava feito.
Octávio divaga um pouco acerca da importância da estrela - "Quem não tem, não quer saber, mas quando se trabalha para se ter e se tem, quer-se ter para sempre, nunca mais se quer perder" - e daquilo que acha que lhe permitiu chegar até ela. Identifica rapidamente o perfil madeirense que transborda dele mesmo para o Desarma. Essa é certamente uma das características - talvez a principal - que tornam o restaurante absolutamente distinto de todos os que estão ao mesmo nível (um nível muitíssimo elevado). "Nunca saí da Madeira [para trabalhar]. Isso dá personalidade." Uma personalidade vincada. "Nasci e cresci na Madeira", acrescenta, como se concretizasse com uma verdade que não carece de explicação. Mas que Madeira é essa?
Quando viajamos por estrada pela costa Sul da ilha da Madeira, entramos num caleidoscópio psicadélico onde se misturam paisagens de mar, encostas íngremes e verdejantes, túneis, túneis, túneis, asfalto, campos de cultivo, encostas íngremes e verdejantes, uma aberta para o mar, uma aberta para o céu, outro túnel, encosta verdejante, mar, escuro, túnel. Junto à Calheta, emergimos das entranhas das montanhas esventradas e seguimos à superfície em direção aos Prazeres. Esta é a primeira das paragens onde poderemos conhecer um pouco melhor a Madeira, essa entidade meio abstrata, meio concreta, que ajudou a formar o caráter do chef e a personalidade do Desarma.
Nos Prazeres, provamos um chá. Não é um chá qualquer. Este vem da Quinta Pedagógica dos Prazeres. O projeto, que ainda hoje é mantido pela paróquio dos Prazeres, foi criado pelo padre Rui Sousa com o objetivo de sensibilizar e educar para o meio rural, valorizando-o. É um projeto social rico, que inclui a recuperação e conservação de árvores, frutos e plantas, incluindo ainda a produção de chás, de sidras e de licores. Além disso, alberga um mini-zoo, onde se encontram animais de quinta, como porcos e ovelhas, e outros mais exóticos, como emas e lamas.
A viagem segue, ilha acima, serra acima, pelas franjas da floresta laurissilva - "laurissilva porque se compõe de diferentes espécies da família das lauráceas", ou seja, várias espécies da família do louro. Junto ao Paul da Serra, a comitiva é obrigada a fazer um desvio em direção ao mar. Os incêndios devastadores que torturaram a ilha estão, por esta altura (fim de agosto), em fase de extinção. O terreno ainda fumega. À beira da estrada, há barreiras, postes e pilares que simplesmente derreteram com o calor do fogo. "A maior exportação da Madeira é o eucalipto para fazer pasta de papel." A informação, qual gato de Schrödinger, é duas coisas antagónicas em simultâneo: uma completa surpresa e surpresa nenhuma. Viramos costas ao terreno ardido, descemos em direção ao oceano.
Por caminhos dificilmente imagináveis, faz-se a descida até Porto Moniz. A vista desde lá de cima é esplendorosa. Chegados junto ao mar, a imponência do horizonte é outra. Olhando para ocidente, as escarpas verticais, autênticas paredes de sombra e de verde, podem causar arrepios. A próxima paragem é no Seixal. Vamos comer peixe grelhado. Pode acompanhar com batata ou com semilha. "A batata é a doce, a semilha é a batata comum." Quem explica a diferença entre as duas é Rui Nelson, arquiteto, músico, amante da natureza e das caminhadas, filho da Madeira e seu profundo conhecedor. "A origem da semilha é fácil de explicar", acrescenta. "Vinha escrito nas sacas de sementes que chegavam de Espanha, semilla. Ficou." Está explicado. E logo adverte que "batata frita é batata frita, não se diz semilha frita". Certo.
Rui Nelson é uma figura ímpar com uma notável capacidade para conversar e para ouvir. Ao almoço, são abordados temas muito sérios, que vão da conservação da natureza - "a Madeira ainda tem muitos recantos preservados porque o maior dos problemas só chegou cá há 500 anos", afirma - até à extinção de grande parte das indústrias que fizeram da ilha um lugar próspero na produção de leite, de trigo, de aguardente, e que agora se resumem a uma só: turismo. Ou duas, se contarmos com os eucaliptos para fazer pasta de papel. Rui Nelson dá a conhecer o seu atelier à comitiva. Fica em pleno Seixal, debaixo de um miradouro construído por ele onde os turistas têm o hábito de tirar fotografias instagramáveis - há bancos, há uma mesa, há água corrente, copos e água aromatizada, para que cada um se sirva à vontade. Mal sabem esses transeuntes que, debaixo dos seus pés, há uma espécie de esconderijo onde um homem trabalha.
À saída do Seixal, visitamos o Chão da Ribeira. É ali que encontramos um viveiro de trutas com décadas de existência. Enfiado num vale cujas encostas, lembrando uma paisagem tailandesa ou havaiana, de paredes verticais e floresta laurissilva densa, são, quase de certeza, virgens de presença humana. Pelos caminhos estreitos, veem-se levadas e pequenos palheiros tradicionais. Quase todos foram transformados em casas para Alojamento Local.
Ao fim da tarde, chegamos finalmente às festas de Ponta Delgada, nos arredores de São Vicente. É um arraial famoso em toda a ilha e diz-se que há quem não durma enquanto dura. E há quem acampe em tendas nas imediações da festa.
Começamos pelo princípio: uma poncha pescador e uns amendoins. A seguir, espetada em pau de loureiro, com a carne enfiada no espeto ali mesmo, na hora, diante dos nossos olhos. Depois, é levada à brasa e à labareda. Acompanha com pão, come-se à mão. No copo, vinho seco - "este vinho não existe", advertem. É proibido. É vinho novo, que se vende mas só por baixo da mesa. Pode-se misturar com laranjada, dando origem a uma espécie de "tinto di verano". E é ótimo.
Pausa. Momento para reflexão. Vim aqui para conhecer o Desarma, um restaurante com estrela Michelin. No entanto, ando num arraial a beber vinho seco e a comer à mão espetadas em pau de loureiro. Porquê? O momento contemplativo é interrompido pela chegada de uma comitiva efusiva e ruidosa. "Olha, quem é ele", diz alguém aqui ao lado. É o presidente do Governo Regional, o próprio, e vem sorridente. Miguel Albuquerque, já refeito do aborrecimento dos incêndios que lhe pertubaram as férias, chega com a sua grupeta. "Esta festa deve ser mesmo boa", penso. Diz o povo da Madeira que de festas percebe o presidente.
O chef Octávio Freitas faz questão de mostrar como se começa o dia na verdadeira tradição madeirense. Explica que, na ilha, no tempo em que a grande parte do trabalho era braçal, a jorna começava bem cedo, ainda antes de o sol nascer. E, assim, os homens tinham de se alimentar em condições, comendo um pequeno-almoço robusto ou, como lhe chama, "um pequeno-almoço de campeões".
Estamos aqui, numa tasca junto a uma das entradas do Mercado dos Lavradores, na baixa do Funchal. Começamos pela sandes de [peixe] espada. Há laranjada. Há vinho seco. Há quem, ao balcão, beba poncha pescador. As tascas típicas do Funchal, de que já não restam muitos exemplares, preservam a tradição do "dentinho", um petisco pequeno servido num palito, em tudo semelhante à prática andaluz de servir os "pinchos" a acompanhar as cervejas, que aqui também existem, pois claro: a Coral é mais um ex-libris madeirense.
Na pequena vitrine sobre o balcão, encontramos mais petiscos, escabeches, peixe-gata (a que, no continente, chamamos cação), carne de vinho e alhos, língua de vaca. Enfim, tudo menos sandes de queijo. O pequeno-almoço é um momento de afirmação de masculinidade para um madeirense de gema. À mesa, o chef vai falando das comidas que compõem o seu imaginário de infância e que fazem parte também da melhor tradição da ilha. Há destaque para o milho, frito em cubos ou feito em papas, que se comia com tudo, com favas, com torresmo, com uvas e até com cebola crua.
No fim da refeição, uma iguaria - mas uma iguaria daquelas só ao alcance dos estômagos fortes e dos espíritos aventureiros: cabeças de espada fritas. "As cabecinhas do espada são muito mais gostosas do que a lagosta", garante a cozinheira, que se abeira da nossa mesa. "E eu já tive a sorte de provar lagosta!", acrescenta. Pela minha parte, aceito a sua palavra. Sou mais pessoa de sandes de queijo e laranjada. "Não sabe o que perde." Não sei mesmo.
Depois da experiência gastronómica reveladora de uma Madeira que não vem nos postais, há tempo para uma visita ao Mercado dos Lavradores. É um festim para a vista, todo o colorido das frutas, e é também uma celebração de cheiros e aromas, com toda uma mistura exótica espalhada pelo ar. No mercado do peixe, podemos observar a arte do desmanche dos atuns. Não é que esse desmanche não se faça noutros mercados de peixe. O que acontece é que, aqui, há peixeiros a trabalhar os atuns em praticamente todas as bancas.
De regresso ao The Views Baía, há tempo para uma passagem pela Blandy’s, uma das mais célebres casas de vinho Madeira, bem no centro do Funchal. Entre o muito que haveria para descrever e sublinhar, deixa-se uma sugestão para visita: é preciso - no sentido em que cada um de nós, seres humanos providos de sentidos e de consciência, necessita deste tipo de experiências - contemplar o painel de frescos de Max Röhmer no interior da casa, onde o artista retrata com ímpar mestria as várias fases do vinho, desde a vinha até às garrafas. Impressionante.
É hora do aguardado jantar. Subimos ao 11.º piso do The Views Baía. Octávio Freitas já havia explicado que, ali, antes da pandemia, ficavam as suítes do hotel. O chef conseguiu convencer a administração do grupo The Views, durante a paragem de quase dois anos, a acabar com todas as suítes e construir, em seu lugar, o restaurante com que sonhava. E assim nasceu o Desarma.
Ficamos ao balcão - ou bancada - para conversar com o chef. A vista lá para fora é deslumbrante, mas esta daqui não é menos impressionante. No centro da cozinha, no centro de tudo, o fogão Marrone, desenhado pelo próprio Octávio Freitas. Em redor, toda a parafernália de uma cozinha organizada ao detalhe, onde nada é deixado ao acaso. Foi tudo feito pensando na mobilidade de todos os que ali trabalham. A ideia é que nada possa ser difícil. Principalmente, cozinhar: o chef pega numa série de dossiers, que estão divididos por setores. Abre um deles. "Está aqui tudo, ninguém tem desculpa para falhar." Tudo é: temperaturas, tempos, métodos, enfim, informação detalhada e inequívoca acerca do que é importante para que qualquer cozinheiro consiga executar a sua tarefa seguindo as indicações. Não são apenas fichas técnicas dos pratos, são autênticos guias de cozinha.
En garde! Começa a refeição. E é um desfile inatacável de iguarias que, conservando as referências madeirenses e mantendo a fidelidade ao que é a essência da ilha, posicionam a degustação do Desarma seguramente entre o que de melhor se faz, hoje em dia, na Europa. A coerência do alinhamento é extraordinária, com tudo a fazer sentido, prato a prato, sabor a sabor, textura a textura. Logo na entrada de atum curado com folha de louro e alho assado chega a epifania: "Ah! Então, foi para chegarmos aqui que andámos a experimentar todas as outras coisas pela ilha!" Lapas secas, ovas de espada, salmonete, truta - ah, a truta! - cherne, carabineiro, com tudo o que, em cada um dos pratos, serve para os enaltecer e destacar o produto principal - o tártaro de novilho, o molho vilhão, a cebola em caracol e em redução, as texturas de funcho, a cevadinha de cogumelos: o menu foi um autêntico festim de diversidade e qualidade, sempre com sublinhado na identidade e na personalidade - no caso, a identidade regional e a personalidade do chef. E o zenite dessa expressão de identidade e personalidade ocorre quando são servidos os "presuntos do mar" e os enchidos do mar. Feitos a partir de rabos de peixe (quase sempre atum) e de outras partes menos nobres, consistem em peixe fumado e depois conservado em temperaturas controladas. Assemelham-se aos produtos fumados feitos a partir da carne de mamíferos, são delicatessen deliciosos.
Acompanhando este desfile de iguarias - um desfile que vai sendo desenhado à medida dos comensais, já que o chef vai tomando pulso à capacidade e à avidez de quem está ao balcão de modo a prevenir que haja desperdício ou que o convidado não fique saciado -, há uma panóplia de vinhos especiais à disposição. Bem a propósito, Octávio Freitas conta, à despedida, que certa vez, durante as comemorações de um 4th of July, em Washington, D.C., se deparou com um restaurante que tinha a maior carta de vinhos Madeira do mundo: eram mais de 60 vinhos. "Quando regressei ao Funchal, tratei de mudar isso. Como é que um restaurante americano tem a maior carte de vinhos Madeira do mundo?" Obviamente, tinha de fazer qualquer coisa. Então, fez: uma carta de vinhos Madeira com 100 entradas. Pronto. No Desarma é assim mesmo, não há batalha que não se trave. Principalmente quando o que está em jogo é a identidade madeirense.