Prazeres / Lugares

Desarma: uma fortaleza madeirense com estrela Michelin

Inaugurado em 2022 sob o comando do chef Octávio Freitas, o restaurante que ocupa o último piso do The Views Baía, no Funchal, conquistou uma estrela Michelin em menos de um ano. Mas o tempo é relativo e esta é uma estrela que não caiu do céu: nasceu da terra e do mar da ilha.

Foto: @Tiago Maya
03 de outubro de 2024 | Diego Armés
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O sol da manhã na sala de pequeno-almoço do The Views Baía é de uma omnipresença agressiva. Entra pelas vidraças amplas e espalha-se com uma espécie de fúria até nos entrar pelos olhos. Por mais que tentemos escapar-lhe, voltando as costas e a nuca à magnífica vista sobre a baixa do Funchal, este sol de vigor praticamente bélico ataca-nos por todos os lados, por todas as frentes.

Foto: @Henrique Seruca

"Tudo isto tem a ver com o meu caráter e o meu perfil", diz numa voz firme e com uma pronúncia profunda e orgulhosamente madeirense Octávio Freitas, chef do Desarma. "Desarma, tinha de ser esse o nome. Tem tudo a ver comigo." O chef encarna com grande naturalidade o espírito aguerrido necessário para travar grandes batalhas. A esta hora da manhã, fulminado pela mesma armada de sol que faz os demais semicerrar os olhos e franzir o semblante, apresenta uma energia e uma garra praticamente improváveis para as circunstâncias. Mas, muito provavelmente, são essa energia, essa garra e esse espírito de combate que lhe permitem chegar onde já chegou, com rapidez assinalável: uma estrela Michelin para o Desarma ao fim "de nove ou dez meses" de funcionamento, segundo as contas de cabeça do próprio.

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Contragolpe: Octávio Freitas refuta a ideia de ter sido uma estrela que chegou rapidamente. "Foi costurada ao longo de dezenas de anos", afirma, e explica em seguida que começou a trabalhar aos 16 anos, em 1997. Primeiro como cozinheiro em eventos, no Terreiro da Luta (nem de propósito), depois no grupo The Views. Em 2022, no pós-pandemia, finalmente, abriu o Desarma. Octávio Freitas aceita que a estrela "veio de nada", no sentido em que foi uma surpresa completa para todos, ele incluído - quando recebeu o email, não percebeu logo o que era; só depois lhe explicaram que era um convite para a gala Michelin, o que significa, hoje em dia, que receberia uma distinção. Mesmo assim, não esperou que fosse logo uma estrela. Só que era e não caiu do céu. "A novela já estava montada e a produção pronta, só faltava o cenário", atira, numa analogia que significa exatamente isto: para aspirar a uma estrela Michelin só lhe faltava o restaurante. Existindo o Desarma, o trabalho já estava feito.

Foto: @José Crispim

Octávio divaga um pouco acerca da importância da estrela - "Quem não tem, não quer saber, mas quando se trabalha para se ter e se tem, quer-se ter para sempre, nunca mais se quer perder" - e daquilo que acha que lhe permitiu chegar até ela. Identifica rapidamente o perfil madeirense que transborda dele mesmo para o Desarma. Essa é certamente uma das características - talvez a principal - que tornam o restaurante absolutamente distinto de todos os que estão ao mesmo nível (um nível muitíssimo elevado). "Nunca saí da Madeira [para trabalhar]. Isso dá personalidade." Uma personalidade vincada. "Nasci e cresci na Madeira", acrescenta, como se concretizasse com uma verdade que não carece de explicação. Mas que Madeira é essa?

Madeira pura

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Quando viajamos por estrada pela costa Sul da ilha da Madeira, entramos num caleidoscópio psicadélico onde se misturam paisagens de mar, encostas íngremes e verdejantes, túneis, túneis, túneis, asfalto, campos de cultivo, encostas íngremes e verdejantes, uma aberta para o mar, uma aberta para o céu, outro túnel, encosta verdejante, mar, escuro, túnel. Junto à Calheta, emergimos das entranhas das montanhas esventradas e seguimos à superfície em direção aos Prazeres. Esta é a primeira das paragens onde poderemos conhecer um pouco melhor a Madeira, essa entidade meio abstrata, meio concreta, que ajudou a formar o caráter do chef e a personalidade do Desarma.

Foto: @Diego Armés

Nos Prazeres, provamos um chá. Não é um chá qualquer. Este vem da Quinta Pedagógica dos Prazeres. O projeto, que ainda hoje é mantido pela paróquio dos Prazeres, foi criado pelo padre Rui Sousa com o objetivo de sensibilizar e educar para o meio rural, valorizando-o. É um projeto social rico, que inclui a recuperação e conservação de árvores, frutos e plantas, incluindo ainda a produção de chás, de sidras e de licores. Além disso, alberga um mini-zoo, onde se encontram animais de quinta, como porcos e ovelhas, e outros mais exóticos, como emas e lamas.

A viagem segue, ilha acima, serra acima, pelas franjas da floresta laurissilva - "laurissilva porque se compõe de diferentes espécies da família das lauráceas", ou seja, várias espécies da família do louro. Junto ao Paul da Serra, a comitiva é obrigada a fazer um desvio em direção ao mar. Os incêndios devastadores que torturaram a ilha estão, por esta altura (fim de agosto), em fase de extinção. O terreno ainda fumega. À beira da estrada, há barreiras, postes e pilares que simplesmente derreteram com o calor do fogo. "A maior exportação da Madeira é o eucalipto para fazer pasta de papel." A informação, qual gato de Schrödinger, é duas coisas antagónicas em simultâneo: uma completa surpresa e surpresa nenhuma. Viramos costas ao terreno ardido, descemos em direção ao oceano.

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Foto: @Diego Armés

Por caminhos dificilmente imagináveis, faz-se a descida até Porto Moniz. A vista desde lá de cima é esplendorosa. Chegados junto ao mar, a imponência do horizonte é outra. Olhando para ocidente, as escarpas verticais, autênticas paredes de sombra e de verde, podem causar arrepios. A próxima paragem é no Seixal. Vamos comer peixe grelhado. Pode acompanhar com batata ou com semilha. "A batata é a doce, a semilha é a batata comum." Quem explica a diferença entre as duas é Rui Nelson, arquiteto, músico, amante da natureza e das caminhadas, filho da Madeira e seu profundo conhecedor. "A origem da semilha é fácil de explicar", acrescenta. "Vinha escrito nas sacas de sementes que chegavam de Espanha, semilla. Ficou." Está explicado. E logo adverte que "batata frita é batata frita, não se diz semilha frita". Certo.

Rui Nelson é uma figura ímpar com uma notável capacidade para conversar e para ouvir. Ao almoço, são abordados temas muito sérios, que vão da conservação da natureza - "a Madeira ainda tem muitos recantos preservados porque o maior dos problemas só chegou cá há 500 anos", afirma - até à extinção de grande parte das indústrias que fizeram da ilha um lugar próspero na produção de leite, de trigo, de aguardente, e que agora se resumem a uma só: turismo. Ou duas, se contarmos com os eucaliptos para fazer pasta de papel. Rui Nelson dá a conhecer o seu atelier à comitiva. Fica em pleno Seixal, debaixo de um miradouro construído por ele onde os turistas têm o hábito de tirar fotografias instagramáveis - há bancos, há uma mesa, há água corrente, copos e água aromatizada, para que cada um se sirva à vontade. Mal sabem esses transeuntes que, debaixo dos seus pés, há uma espécie de esconderijo onde um homem trabalha.

Foto: @Diego Armés
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À saída do Seixal, visitamos o Chão da Ribeira. É ali que encontramos um viveiro de trutas com décadas de existência. Enfiado num vale cujas encostas, lembrando uma paisagem tailandesa ou havaiana, de paredes verticais e floresta laurissilva densa, são, quase de certeza, virgens de presença humana. Pelos caminhos estreitos, veem-se levadas e pequenos palheiros tradicionais. Quase todos foram transformados em casas para Alojamento Local.

Ao fim da tarde, chegamos finalmente às festas de Ponta Delgada, nos arredores de São Vicente. É um arraial famoso em toda a ilha e diz-se que há quem não durma enquanto dura. E há quem acampe em tendas nas imediações da festa.

Foto: @Diego Armés

Começamos pelo princípio: uma poncha pescador e uns amendoins. A seguir, espetada em pau de loureiro, com a carne enfiada no espeto ali mesmo, na hora, diante dos nossos olhos. Depois, é levada à brasa e à labareda. Acompanha com pão, come-se à mão. No copo, vinho seco - "este vinho não existe", advertem. É proibido. É vinho novo, que se vende mas só por baixo da mesa. Pode-se misturar com laranjada, dando origem a uma espécie de "tinto di verano". E é ótimo.

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Foto: @Diego Armés

Pausa. Momento para reflexão. Vim aqui para conhecer o Desarma, um restaurante com estrela Michelin. No entanto, ando num arraial a beber vinho seco e a comer à mão espetadas em pau de loureiro. Porquê? O momento contemplativo é interrompido pela chegada de uma comitiva efusiva e ruidosa. "Olha, quem é ele", diz alguém aqui ao lado. É o presidente do Governo Regional, o próprio, e vem sorridente. Miguel Albuquerque, já refeito do aborrecimento dos incêndios que lhe pertubaram as férias, chega com a sua grupeta. "Esta festa deve ser mesmo boa", penso. Diz o povo da Madeira que de festas percebe o presidente.

Outro pequeno-almoço

O chef Octávio Freitas faz questão de mostrar como se começa o dia na verdadeira tradição madeirense. Explica que, na ilha, no tempo em que a grande parte do trabalho era braçal, a jorna começava bem cedo, ainda antes de o sol nascer. E, assim, os homens tinham de se alimentar em condições, comendo um pequeno-almoço robusto ou, como lhe chama, "um pequeno-almoço de campeões".

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Estamos aqui, numa tasca junto a uma das entradas do Mercado dos Lavradores, na baixa do Funchal. Começamos pela sandes de [peixe] espada. Há laranjada. Há vinho seco. Há quem, ao balcão, beba poncha pescador. As tascas típicas do Funchal, de que já não restam muitos exemplares, preservam a tradição do "dentinho", um petisco pequeno servido num palito, em tudo semelhante à prática andaluz de servir os "pinchos" a acompanhar as cervejas, que aqui também existem, pois claro: a Coral é mais um ex-libris madeirense.

Foto: @Diego Armés

Na pequena vitrine sobre o balcão, encontramos mais petiscos, escabeches, peixe-gata (a que, no continente, chamamos cação), carne de vinho e alhos, língua de vaca. Enfim, tudo menos sandes de queijo. O pequeno-almoço é um momento de afirmação de masculinidade para um madeirense de gema. À mesa, o chef vai falando das comidas que compõem o seu imaginário de infância e que fazem parte também da melhor tradição da ilha. Há destaque para o milho, frito em cubos ou feito em papas, que se comia com tudo, com favas, com torresmo, com uvas e até com cebola crua.

No fim da refeição, uma iguaria - mas uma iguaria daquelas só ao alcance dos estômagos fortes e dos espíritos aventureiros: cabeças de espada fritas. "As cabecinhas do espada são muito mais gostosas do que a lagosta", garante a cozinheira, que se abeira da nossa mesa. "E eu já tive a sorte de provar lagosta!", acrescenta. Pela minha parte, aceito a sua palavra. Sou mais pessoa de sandes de queijo e laranjada. "Não sabe o que perde." Não sei mesmo.

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Foto: @Diego Armés

Depois da experiência gastronómica reveladora de uma Madeira que não vem nos postais, há tempo para uma visita ao Mercado dos Lavradores. É um festim para a vista, todo o colorido das frutas, e é também uma celebração de cheiros e aromas, com toda uma mistura exótica espalhada pelo ar. No mercado do peixe, podemos observar a arte do desmanche dos atuns. Não é que esse desmanche não se faça noutros mercados de peixe. O que acontece é que, aqui, há peixeiros a trabalhar os atuns em praticamente todas as bancas.

Foto: @Diego Armés

De regresso ao The Views Baía, há tempo para uma passagem pela Blandy’s, uma das mais célebres casas de vinho Madeira, bem no centro do Funchal. Entre o muito que haveria para descrever e sublinhar, deixa-se uma sugestão para visita: é preciso - no sentido em que cada um de nós, seres humanos providos de sentidos e de consciência, necessita deste tipo de experiências - contemplar o painel de frescos de Max Röhmer no interior da casa, onde o artista retrata com ímpar mestria as várias fases do vinho, desde a vinha até às garrafas. Impressionante.

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O Desarma

É hora do aguardado jantar. Subimos ao 11.º piso do The Views Baía. Octávio Freitas já havia explicado que, ali, antes da pandemia, ficavam as suítes do hotel. O chef conseguiu convencer a administração do grupo The Views, durante a paragem de quase dois anos, a acabar com todas as suítes e construir, em seu lugar, o restaurante com que sonhava. E assim nasceu o Desarma.

Foto: @Henrique Seruca
Foto: @Tiago Maya

Ficamos ao balcão - ou bancada - para conversar com o chef. A vista lá para fora é deslumbrante, mas esta daqui não é menos impressionante. No centro da cozinha, no centro de tudo, o fogão Marrone, desenhado pelo próprio Octávio Freitas. Em redor, toda a parafernália de uma cozinha organizada ao detalhe, onde nada é deixado ao acaso. Foi tudo feito pensando na mobilidade de todos os que ali trabalham. A ideia é que nada possa ser difícil. Principalmente, cozinhar: o chef pega numa série de dossiers, que estão divididos por setores. Abre um deles. "Está aqui tudo, ninguém tem desculpa para falhar." Tudo é: temperaturas, tempos, métodos, enfim, informação detalhada e inequívoca acerca do que é importante para que qualquer cozinheiro consiga executar a sua tarefa seguindo as indicações. Não são apenas fichas técnicas dos pratos, são autênticos guias de cozinha.

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Foto: @Tiago Maya
Foto: @Tiago Maya

En garde! Começa a refeição. E é um desfile inatacável de iguarias que, conservando as referências madeirenses e mantendo a fidelidade ao que é a essência da ilha, posicionam a degustação do Desarma seguramente entre o que de melhor se faz, hoje em dia, na Europa. A coerência do alinhamento é extraordinária, com tudo a fazer sentido, prato a prato, sabor a sabor, textura a textura. Logo na entrada de atum curado com folha de louro e alho assado chega a epifania: "Ah! Então, foi para chegarmos aqui que andámos a experimentar todas as outras coisas pela ilha!" Lapas secas, ovas de espada, salmonete, truta - ah, a truta! - cherne, carabineiro, com tudo o que, em cada um dos pratos, serve para os enaltecer e destacar o produto principal - o tártaro de novilho, o molho vilhão, a cebola em caracol e em redução, as texturas de funcho, a cevadinha de cogumelos: o menu foi um autêntico festim de diversidade e qualidade, sempre com sublinhado na identidade e na personalidade - no caso, a identidade regional e a personalidade do chef. E o zenite dessa expressão de identidade e personalidade ocorre quando são servidos os "presuntos do mar" e os enchidos do mar. Feitos a partir de rabos de peixe (quase sempre atum) e de outras partes menos nobres, consistem em peixe fumado e depois conservado em temperaturas controladas. Assemelham-se aos produtos fumados feitos a partir da carne de mamíferos, são delicatessen deliciosos.

Foto: @Tiago Maya
Foto: @Tiago Maya

Acompanhando este desfile de iguarias - um desfile que vai sendo desenhado à medida dos comensais, já que o chef vai tomando pulso à capacidade e à avidez de quem está ao balcão de modo a prevenir que haja desperdício ou que o convidado não fique saciado -, há uma panóplia de vinhos especiais à disposição. Bem a propósito, Octávio Freitas conta, à despedida, que certa vez, durante as comemorações de um 4th of July, em Washington, D.C., se deparou com um restaurante que tinha a maior carta de vinhos Madeira do mundo: eram mais de 60 vinhos. "Quando regressei ao Funchal, tratei de mudar isso. Como é que um restaurante americano tem a maior carte de vinhos Madeira do mundo?" Obviamente, tinha de fazer qualquer coisa. Então, fez: uma carta de vinhos Madeira com 100 entradas. Pronto. No Desarma é assim mesmo, não há batalha que não se trave. Principalmente quando o que está em jogo é a identidade madeirense.

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Foto: @Tiago Maya
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