Estávamos bêbadas de sono, eu e a I. Naquela euforia parva de quem já entrou na reserva há muito. Nesse dia, o último que passaríamos no Dubai, acordámos às cinco da manhã para ir ao deserto e à noite fizemos um rally gastronómico no souk. À chegada ao hotel percebemos, com tristeza, que tínhamos acabado de percorrer sinuosas ruas com centenas de lojas e não comprámos nada. Quase nada – um potezinho de cristais de mentol cada uma, excelentes para desentupir narizes, disseram-nos. Mas queríamos mais. Queríamos especiarias. Queríamos tâmaras. E, mais que tudo, queríamos canela, depois de nos terem dito que a que se vende na Europa é fajuta e de nos terem mostrado paus de canela "como deve ser". E nem nesse momento nos ocorreu que queríamos levá-los connosco. Chegadas ao hotel, no elevador, cada uma saindo no piso que lhe competia, e parece-me que ouço alguém perguntar "I. sempre vais ao Dubai Mall?" A I., confirma, já com a porta do elevador a fechar-se. "Dubai Mall?! Eu também quero ir!" Só que disse-o dentro da minha cabeça. Vou ao meu quarto, tento ligar para o quarto dela a impingir a minha companhia. Não resulta. Tento mandar mensagem, não tenho internet – um problema que não era novidade porque nunca consegui ligar-me ao wifi do hotel e passei quatro dias off-grid. Encontro outra miúda do grupo – éramos cinco mulheres, quatro jornalistas e uma assessora de comunicação, todas portuguesas – e peço-lhe que mande mensagem à I. no nosso grupo de Whatsapp. Acabamos a trombar uma com a outra à saída do elevador. Ela vinha à minha procura, eu ia à procura dela.
E lá fomos, estafadas, mas entusiasmadas. Afinal, tinham-nos dito que dentro do Dubai Mall cabem 30 Centros Comerciais Colombos – não cabem, já confirmei, cabem três – e nós queríamos ver com os nossos próprios olhos. A informação, de resto, era credível. No Dubai é tudo à bruta, tudo em grande. Não é por acaso que o Burj Khalifa, o maior edifício do mundo, fica lá – tem 828 metros. Mas, sossegue, leitor, que este não é mais um artigo sobre o Dubai e os seus arranha-céus. Sucede que esta jornalista não acha a mínima a graça a mamarrachos envidraçados, ilhas artificiais e demais colossos da engenharia, pelo que foi com relutância que deu por si naquela parte do mundo. Mas foi com alegria e alívio que descobriu que o Dubai tem uma oferta histórica e cultural muito interessante. Vale a pena enfiar-se num avião oito horas e meia e pagar um balúrdio pelo bilhete? Talvez não. Por uma fração do preço pode ir a Marrocos, onde tem deserto, souks e mesquitas a dar com um pau – mas não dê com um pau em coisa nenhuma senão vai preso. Porém, se estiver a planear uma viagem à Ásia ou à Oceânia, vale a pena, sem dúvida, fazer uma escala de dois ou três dias no Dubai.
Não deixa de ser fascinante olhar em volta e pensar que há 100 anos não havia ali nada, excepto areia, um entreposto comercial, algumas casas, um forte datado de 1799, o edifício mais antigo do Dubai, e umas quantas palmeiras. Aquela a que hoje se chama a zona "velha" do Dubai remonta à década de 1960. Talvez faça falta um pouco de contexto histórico-geográfico antes de avançarmos mais. O Dubai é um dos sete emirados que compõem os Emirados Árabes Unidos (EAU), a saber, Abu Dhabi, Dubai, Xarja, Ajmã, Umm al-Quwain, Ras al-Khaimah e Fujeira. Os EAU foram fundados no início da década de 1970, quando aqueles territórios descobriram que tinham petróleo e acharam que estariam mais seguros de "interferências externas" se se unissem.
Nota-se um grande orgulho patriótico no desenvolvimento estratosférico que ocorreu em meia dúzia de décadas. Por todo o lado há bandeiras e fotografias do sheik Mohammed bin Rashid Al Maktoum, muitas vezes acompanhadas de citações do próprio sobre sucesso, empreendedorismo e perseverança, mas a verdade é que ele próprio, o Dubai, e todos os Emirados Árabes Unidos, devem o seu sucesso ao petróleo. Se não houvesse petróleo, aqui continuaria a ser uma vastidão de deserto com aldeias de mercadores, pescadores e caçadores de pérolas, ao longo do Dubai Creek, como se diz em inglês, ou Khor Dubai, em árabe – um canal de água salgada oriunda do Golfo Pérsico que atravessa o Dubai e que foi o berço da sua civilização.
Para ficar a conhecer a fundo a história do Dubai, vale a pena visitar o Museu Al Shindagha, no bairro histórico com o mesmo nome, nas margens do Dubai Creek, e que foi, durante muito tempo, a zona residencial da família real. É possível fazer uma visita guiada, mas, a menos que queira muito ser soterrado em informação, não vale a pena. Ainda assim, reserve uma manhã ou uma tarde inteira para visitar o Al Shindagha que é, na verdade, um conjunto de museus, com várias casas temáticas que mostram o modo de vida tradicional dos emiratis.
Aqui poderá visitar a Casa da Tradição Marítima, que explora a importância do Dubai Creek para o comércio e a navegação, e a história da pesca de pérolas, que foi a base da economia local antes do petróleo; a Casa do Perfume, que mostra como os emiratis criavam perfumes tradicionais com ingredientes como oud, âmbar e rosa, e explica o significado cultural dos perfumes e da prática do uso do incenso; a Casa da Vida Social e Estilo de Vida, que conta como as pessoas viviam antes da era moderna; a Casa do Sheikh Saeed Al Maktoum, antiga residência do governante do Dubai, que foi restaurada e transformada numa exposição sobre a família real e o crescimento da cidade; a Casa dos Governantes e Sociedade, que explica o papel dos líderes de Dubai no desenvolvimento da cidade; e a Casa da Vida no Deserto, que apresenta a cultura beduína e como as tribos do deserto sobreviviam num ambiente árido. As três primeiras são as mais interessantes. Sobre a cultura beduína e a vida no deserto, o melhor é fazer uma expedição até lá – já lá vamos.
Uma advertência: as pessoas nestas partes do mundo têm muito medo do calor pelo que o ar condicionado tende a estar em modo ártico e isso foi particularmente verdade no Museu Al Shindagha, pelo que cada entrada e saída de edifício resultava em oscilações de temperaturas superiores a 10º, já para não falar das homicidas pontadas de ar gelado direcionadas para o peito e as costas do visitante – logo no primeiro dia íamos perdendo um elemento do nosso grupo por conta disso. Portanto, por muito calor que esteja, ande sempre com um casaco e uma écharpe para proteger o pescoço.
Se a visita guiada ao museu é desnecessária, há outras que podem valer a pena organizar. Uma delas consiste numa experiência em que cada pessoa faz o seu próprio perfume e que foi organizada por Khadija Behzad, uma guia turística certificada que criou a sua própria empresa, chamada Meet the Locals – "porque as mulheres no Dubai podem estudar, trabalhar e até ter os seus próprios negócios", sublinha a nossa guia –, que organiza eventos e experiências turísticas à medida de cada pessoa ou grupo. Na prática, é uma questão de explicar à Khadija quais são os interesses e objetivos e ela customiza uma experiência. No nosso caso, encontrámo-nos com ela no bairro histórico de Al Fahidi, onde tivemos uma masterclass sobre essências, óleos perfumados e fragrâncias típicas, antes de nos armarmos em perfumistas. De seguida, foi-nos servido um almoço tradicional, no restaurante Al Khayma, com pratos muito à base de vários tipos de arroz com frango, borrego, peixe ou marisco, um macarrão com natas e lulas e parece muitíssimo deslocado, mas que nos garantiram ser um prato costumeiro, sopa de lentilhas, pão achatado acabado de fazer, humus, coisas do género.
Acima de tudo, os emiratis levam o seu café muito a sério, tão a sério quanto os marroquinos, o seu chá de menta. Café é, naquelas partes, algo que não se nega a ninguém e era costume os vizinhos serem guiados pelo seu nariz rumo a uma cafeteira acabada de fazer. Há até toda uma etiqueta em torno do consumo do café: é servido em pequenos copos que só se enchem até três quartos e assim que fica vazio é novamente enchido até à mesma medida. A única forma de quebrar este ciclo interminável é abanando o copo na mão, para a esquerda e para a direita – é esse o sinal de que já se está satisfeito e faz-se assim para não interromper a conversa. Há um único caso em que alguém serve ao seu visitante um copo cheio de café: quando está com pressa para sair. Ou seja, o visitante chegou de surpresa, o dono da casa precisa de sair e não se pode demorar à conversa, portanto, serve-lhe um copo cheio de café. Toda a gente sabe (e ninguém se ofende) que isto significa: "bebe e vai-te embora, falamos depois".
Ainda neste bairro fica o restaurante Arabian Tea House, um dos melhores sítios para experimentar a gastronomia local – os luqaimat, pequenas bolinhas fritas cobertas com xarope de tâmara são uma maravilha, bem como a khabisah, uma sobremesa tradicional feita à base de farinha de trigo torrada, manteiga, açúcar ou tâmaras e especiarias como cardamomo e açafrão, que fica com um aspeto de papa espessa e granulosa que não lhe faz justiça. O Arabian Tea House tem o menu online, com fotografias, portanto, pode planear melhor a refeição. Está aberto todos os dias, das sete da manhã às onze da noite, com serviço de pequeno-almoço, almoço, chá e jantar.
Se, ao contrário desta jornalista, é o lado mais moderno e cosmopolita do Dubai que o atrai, vale a pena visitar o restaurante Teible, com a sua estrela verde Michelin – atribuída aos restaurantes mais sustentáveis –, no Centro de Artes Jameel, quase em cima do Dubai Creek, em Al Jaddaf Waterfront, e diante do famoso hotel Palazzo Versace. Uma das sobremesas consiste num bolo de chocolate em forma de bulldog francês que foi selvaticamente decapitado e esquartejado por duas colegas jornalistas.
Outro restaurante que tem mesmo de conhecer é o recém-aberto Studio Frantzén, do famoso chef sueco Björn Frantzén, e que oferece o aclamado estilo gastronómico franco-asiático de Frantzén com influências nórdicas num ambiente confortável de luxuoso boudoir escandinavo. A comida é deliciosa e a carta de cocktails – sim, servem álcool! – é uma verdadeira maravilha. Na hora de escolher a sobremesa, pode ir a uma zona do restaurante que é uma espécie de loja de doces onde pode pedir o que quer, apontando para tudo o que o encantar, como uma criança. Parece que está no Dubai? Não. Podia estar em Londres, Amesterdão ou Estocolmo, mas não deixa de ser um restaurante magnífico. Só serve jantares e está aberto das seis da tarde à uma da manhã.
Outra coisa curiosa do Studio Frantzén é a sua localização no Atlantis, um resort de cinco estrelas que inclui o maior parque aquático do mundo e um dos maiores aquários do Médio Oriente, com mais de 65 mil animais marinhos, bem como inúmeros restaurantes e lojas e, claro, mais de 1500 quartos e suites luxuosos, situado no topo da Palm Jumeirah, uma das famosas ilhas artificiais em forma de palmeira. O Atlantis, que tivemos de calcorrear, durante largos minutos, para chegarmos ao restaurante, é qualquer coisa que só visto. Parece um exemplar de arquitetura do estilo gótico atlântico kitsch em modo desenho animado, como se duas famosas personagens da Disney, o génio da lâmpada do filme Aladino e a Pequena Sereia, tivessem passado uma louca noite de amor regada a alucinogénios e este tivesse sido o seu sonho mirabolante para palácio encantado.
(Leia a 2ª parte deste texto aqui.)